«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

balada VI

hoje acordei e não reconheci o quarto
seria eu que desenhava os lençóis?
a roupa espalhada pelo chão: em rodilhas, do direito, do avesso
o sabor amargo de uma noite esquecida na boca ressequida
ouvi o silêncio do mês de dezembro a invadir a mente
senti o frio do mês de dezembro a rodear a pele

hoje acordei e não foi a teu lado

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

balada V

que a noite se segue ao dia: isso já sabíamos
que do verão se faz Outono: isso já conhecíamos
que as ondas se desfazem na linha da areia: isso já constatamos
que um céu de estrelas é caminho de navegadores: isso já aprendemos
que a tempestade antecede céus azuis: isso já vimos muitas vezes
que o fogo queima: isso já sentimos muitas vezes

que o abismo é ao virar da esquina: isso, ainda ninguém nos disse

Nick Cave & The Bad Seeds - Stranger Than Kindness (Live, HQ)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

conto curto made in Portugal

Maria sai de casa, com o filho ao colo, perfeitamente encaixado no início da anca. O dia ainda desconhece a luz pálida do sol. Hoje é o primeiro dia de inverno, de inverno a sério e não é preciso o calendário para o saber.
No mesmo instante em que entrega o filho aos cuidados da ama, o marido atravessa a fronteira entre a Alemanha e a França. O cansaço é muito, mas a vontade de chegar a casa é maior.
Na noite de consoada, mãe e filho partilham no mesmo prato, a pobre refeição, enganando mais tarde o estômago com uma guloseima natalícia.
Debaixo do pinheiro de plástico, comprado numa promoção com desconto em cartão, não há presentes. Desculpem-me os leitores, mas prefiro substituir por, nunca há presentes.
Não se sabe bem a hora, mas parece que o filho da Maria caminhou pela primeira vez, quando ouviu bater à porta. Quase que consigo imaginar que deve de ter aberto a porta ao seu pai, o seu Pai Natal.
Uns quilómetros mais à frente, numa outra casa, de pessoas com outras posses, João traquina pergunta, Ó mãe, o Pai Natal é made in China?

Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

balada IV

onde estás
procuro uma réstia de neve, mesmo que suja
que me devolva o sabor dos teus lábios
onde pousas o teu corpo
afago os lençóis frios testemunho de noites
longínquas de inverno
onde vertes o teu olhar
desenho montes e vales entre brumas
em cascas de árvores

onde estás
procuro os teus braços firmes
e descubro que a memória me atraiçoa

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

balada III

acordar, um céu cinzento estende-se a perder de vista
dezembro, mas qualquer outro mês serve
este frio cola-se aos ossos, corre debaixo da pele
procura-se a água que afogue a pele
procura-se roupa que esconda as cicatrizes

sair, o mesmo céu cinzento ameaça
dezembro, mas qualquer outro mês serve
os corajosos seguem entre caminhos perdidos
aperta-se o casaco, vestem-se as luvas
o último fôlego gelado da manhã

dezembro, mas qualquer outro mês serve
ainda sabes o que carregas, o que tens no bolso?


Blixa Bargeld waiting for the bus (Dandy)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

desAlinhados XI

XI
estremeço e este meu estremecer
é rio que corre seco de água,
é nau podre à deriva entre penhascos cinzentos
é pedra pisada sem nome de gente
é destino cumprido em lápide de mármore

estremeço e este meu estremecer
tem a forma de pássaro ferido,
gosto de sangue azedo
guarda-se na concha das mãos
de uma qualquer estátua esquecida de mármore

estremeço e este meu estremecer
é luz que se apaga
é porta que se fecha
é janela que se quebra
são sete palmos, gelados

"Virginie" - Einstürzende Neubauten

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

balada II

flores ordinárias no parapeito da janela
portas com tinta de cor esquecida
cortinas esfarrapadas esgueirando-se entre vidros partidos

a chuva que escorre entre paralelos imundos
linhas direitas, linhas tortas

mulheres de corpos desnudos em ruínas
de casas escancaradas,
o odor humano

a chuva inunda os pés dos aventureiros
o aço frio marca a têmpora gelada:
tens coragem

balada I

todo o oceano que me corre nas veias
todo o vento que sopra nos pulmões
todos os montes que se afundam na carne
todos os rios que correm nos cabelos
toda a escuridão que assola o peito
todo o silêncio guardado na garganta

todos os nomes, o teu nome, invisível

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Manifesto CXXXVII

se

a imagem reflectida não me é familiar: parto o espelho
as roupas caem largas ao longo de ossos e pele: rasgo as roupas
as roupas apertam a carne dolorosamente: tiro-as e esqueço-as
os sapatos apertam os dedos: faço-os voar janela fora
os cabelos não se alinham: arranco-os um a um
os dedos não obedecem: parto-os ruidosamente
as pernas não me obedecem: mergulho-as em água gelada
o coração teima, teima e teima, a mente insiste, insiste e insiste:
cuspo sangue, sal e suor, as lágrimas fizeram-se para serem esquecidas

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

desAlinhados X

X
[este ao menos será poupado]
não trará pesados sacos de viagem
desconhecerá a falta de água
e a fome será apenas palavra de dicionário

todos os órgãos estarão sempre perfeitamente alinhados
sem estremecimentos, sem entorpecimentos, sem aborrecimentos
falará das doenças que nunca sentiu
como se fossem sua criação

[este ao menos foi poupado]
habita num quarto de paredes infinitas
brancas
traça linhas com um lápis na janelas
transparentes

os outros, são pequenos pontos negros
que mudam, mudam e mudam de sítio
os rostos há muito que se esfumaram da sua memória
sim, este ao menos foi poupado
melhor que muitos, melhor que nada

José Moreira, fotografia de Raquel Mendes

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Manifesto CXXXVI

Silêncio

falas
do vento que bebes todas as manhas
das ondas que acariciam o teu corpo pelo entardecer
das andorinhas negras nos ninhos sobre o beiral da porta

falas
dos miúdos que correm pela estrada
dos dias que passam lentos e das horas que passam céleres
do sitio exacto onde nos iremos conhecer

eu deixo que fales
eu deixo que contes
e eu deixo que me deixes acreditar

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

E agora Bertolt?

[Prazeres

O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável.
Bertold Brecht, 'Do Pobre B.B.']

[escrito a partir do poema Prazeres de Bertolt Brecht]

e agora Bertolt,
tenho a pele limpa
visto roupa lavada
conheço de cor o lado de lá da minha janela
sei o nome
de muitas estrelas,
de todos os planetas e algumas galáxias,
das estações,
dos cães que cruzam o meu caminho,
das músicas que tocam no meu rádio,
de quase todas as terras dos outros continentes (que grande mentira)
dos que me dizem bom dia
dos que me desejam boa noite

e eu?
e eu sorrio Bertolt,
se fosse homem e o usasse, tirava o meu chapéu
a todos que me saúdam
a quem me engraxa os sapatos
a quem me coze o pão

e eu sei tudo Bertolt
só não sei de mim

LauraAlberto

I am a stranger here myself -Kurt Weill /One touch of Venus

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tendinites X

o céu pressiona os ombros,
o ar cinzento sufoca-nos e o peito
é pedra, peso e perda,
o peito é pó

damos pontapés na estrada,
esse plano inclinado
que nos leva ao ponto zero
inicial

calçada fora, neste granito cinzento
prisioneiros de sombras estendidas, líquidas,
esta chuva colada à pele
entranha-se na carne, queima-nos os ossos.

a humidade conquistou os pés.
tomou-nos as pernas, as coxas, o tronco.
só a cabeça quente nos evapora a inquietude.

cuspimos na sarjeta, continuamos:
o desconhecido, o medo
uma mão fria sobre o ombro
paramos, olhamos
a nossa figura disforme fita-nos
dentes arreganhados,
a viela ao lado mostra o caminho.

da face morna rolam-nos as lágrimas, desdobradas,
não lhes sabemos a temperatura, mas conhecemos-lhes o nome

João Miguel Ferreira e Laura Alberto
[com a pressa não publiquei os dois autores deste texto, desculpa João]

Victoria de Los Angeles - Thy Hand, Belinda

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

o jogo, sem peças, sem tabuleiro

já não há amanhã
partiram-se os relógios, arrancaram-se as paginas dos calendários
amanhã de manhã
nem o dia, nem a noite cumprirão a sua rotina
porque amanhã não será mais amanhã

apanham-se as roupas caídas à sorte pelo chão
abrem-se as janelas, abre-se o ar dentro do quarto
tiram-se os lençóis, fecham-se as gavetas
encerram-se os gritos nos armários ao fundo
lava-se a pele com água a escaldar
disfarçam-se os corpos com máscaras de seda

amanhã não será amanhã
nem hoje será ontem

desAlinhados IX


IX
fecho os olhos e sinto-me deslizar
líquida pelo mármore gelado
os teus dedos percorrem as minhas costas
num arrepio lunar

[sem tecto, sem paredes]

ouço a tua voz muda segredar-me ao ouvido
linhas tortas de contos esquecidos
é doce o teu hálito
que me embala na noite
é quente o teu toque
quando rouba um pedaço de pele

[sem ti, sem mim]
o meu pecado és tu

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

o meu amor tem asas de pássaro quando se esconde nos abetos
voa em círculos no azul e oferece presentes ao infinito
o meu amor tem forma de nuvem que se desfazem aos meus pés
e cai em gotas de açúcar pelo meu corpo
o meu amor sobe no dorso das ondas e desaparece no horizonte
enquanto durmo na noite
o meu amor tem a forma da areia nas minhas mãos
e escorre lânguido pela minha boca

o meu amor tem a frescura do relento quando me aquece na solidão
o meu amor traz o brilho de todos os sois que iluminam o silêncio
o meu amor gravou o meu nome na sua carne quando ardeu sozinho

Jorge Palma - Estrela do mar

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

desAlinhados VIII

VIII
enrolo o corpo numa espiral, tentativa de me aquecer
lá fora o dia vai longo com a sua apagada luz cinzenta
sei que tenho que me levantar, que me vestir
tropeço constantemente na roupa, visto, dispo e visto
e continuo nua
olho-me ao espelho, que posso querer mais eu ainda?
com o indicador desenho o trilho esquecido
lá fora o dia segue, horas longas, escuras e frias
os meus olhos já estão habituados a esta escuridão
a minha pele conhece de cor os pálidos sorrisos
o sangue ainda corre, só que cansado

fico por casa, o erro é sempre menor

Jorge Molder Linha do Tempo/Time Line, 2000

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

desAlinhados VII

VII
subo e desço estas escadas, encontrões, ombros que desenham linhas imaginárias contra os meus braços, sinto uma dor ligeira, um rubor vermelho, uma aureola na pele branca
subo e desço estas escadas, alguém me chama, alguém grita o meu nome, não estou aqui
seguras a minha anca com as tuas mãos firmes, sou um pássaro que é capaz de voar com as tuas asas, bebo o ar do ponto mais alto onde me levas, arqueio as costas e ainda sinto a pele dos teus dedos na pele das minhas ancas
um toque nas pernas, leva-me de volta às escadas
o cheiro da tua boca sublima-me no ar
estou aí, enrolada no teu corpo enquanto lês a história dos meus ossos

a verdadeira perdição está guardada em sonhos inconfessáveis
ninguém me conhece integralmente, mas juntem-se todos os que partilharam a minha mesa e todos os eus perdem-se em fumo

se sorrio, não sorrio
se calo, não calo
se sou, não sou, eu

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

desAlinhados VI

aproxima-se o inverno
sei-o: pressinto-o na pele gelada, no vapor que sobe a partir dos gritos encerrados, nos olhos imóveis perante a neblina que se estende

estalam os ossos, a clavícula desalinhada, os dedos entorpecidos, o rosto engelhado de frio

uma chuva forte insiste em cair, escorre em grossos rios pelas casas, pelas estátuas, pelos candeeiros de luz amarela, pelo pêlo e pelas patas dos cães vadios, pelas latas de lixo, pela cidade

teimo em aqui ficar, como uma estátua
se me esquecer, também os outros de mim se esquecem

inverno: há já muito tempo
há muito tempo que me esqueci de quem era

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

desAlinhados V

V
tenho o direito de andar à chuva sem guarda-chuva
tenho o direito a beber a chuva com a boca aberta e sorrir
tenho o direito de saltar nas poças de água e molhar toda a minha roupa
tenho o direito de falar alto numa biblioteca
tenho o direito de me remeter ao silêncio quando me questionam
tenho o direito de correr quando todos estão imóveis
tenho o direito de ficar quieta quando por mim chamam
tenho o direito de sorrir, de chorar, de falar, de me calar quando o direito é meu, só por direito

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

desAlinhados

IV
de que me servem os sorrisos que me observam do outro lado da rua
de que me servem as palmadinhas calorosas que me dão nas costas
de que me servem os teus olhos apagados nestes dias negros
de que serve a tua voz do outro lado se não sei qual a forma do teu rosto

ao que parece estou condenada a caminhar entre sombras familiares que espreitam do outro lado da porta
não atendas o telefone quando te ligar

desAlinhados

III
não sei que montanha subir
quanto mais alto olho, mais se abre o abismo sob os meus pés
tenho as asas quebradas pelo vento das tuas mãos
quando voltar a nascer, serei um pássaro
se tiver que nascer, serei um pássaro de coração negro, outra vez

desAlinhados

II
este rio que corre do meu peito, que corre do nosso peito
é sangue vermelho, calor
faz arder a pele quando nele nos afogamos
arrasta os ossos quando nele nos lavamos

este de rio de sangue somos nós, à deriva

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Crimes amorosos

XVII
último crime: o ódio
deixámos estas paredes, deixamo-nos ficar nesta cal e as nossas botas pisam a terra e seguem separadas
outros virão habitar entre os fantasmas pálidos de tudo o que nos bastou, outros dormirão nos nossos lençóis, de suor, de sangue e sal, outros falarão também a mesma língua de falácia
será sempre inverno, teremos sempre frio
quando olhar o meu corpo no espelho reconhecerei o contorno da tua mão na minha pele, quando abrir os lábios procurarei sempre os teus e encontrar assim a tua língua nos dedos entorpecidos
um crime qualquer: a ignorância
primeiro crime: existirmos

[terminam aqui os crimes amorosos, escritos tendo por base uma história entre dois amantes, hoje é o dia em que finalmente se separam, obrigada]

desAlinhados I

descobri ontem a forma das tuas mãos
cobertos pela fina pele branca, dedos nem excessivamente grandes, nem excessivamente pequenos, os mesmos dedos com que sempre seguraste o cigarro

tenho andado muito, as pernas cansadas, a mente confusa
nem penso, nem sei, o que sei eu ainda?
a língua de alcatrão cansa-me com seu cansaço repetitivo

ouço as vozes, os outros
riem, falam, conversam, riem mais alto
mas não encontro as palavras, a voz encerrou-se há muito neste peito gelado
e o frio é tanto que tento o calor de mil verões e continuo a encontrar o frio

e as tuas mãos ficam guardadas nos bolsos das calças
para que mais ninguém se perca nelas

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Crimes amorosos

XVI
o dedo percorreu a parte exterior da coxa por cima da roupa, mas mesmo assim sabias que a pele é branca e que o arrepio percorreria todo o corpo
[tu sabes, tal como eu sei]
a mão deslizou suavemente pela parte interior da perna até ao preciso local onde tudo é proibido
[já sabemos, o que sempre soubemos]

todo o tempo, todo o escasso tempo que nos resta é aqui, escondidos entre estas paredes mudas, sobre estes lençóis frios que se mancham com o calor dos nossos corpos, todo o nosso sangue corre sobre o soalho do chão
somos vapor negro que se dissolve entre o silêncio do quarto
[sabemos, como sempre soubemos o que ninguém sabe]
amanhã, quando abrirem as portas perras, o vazio fugirá aos mortais

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

como o céu se desmorona em segundos inúteis a meus pés

hoje o céu olha-me com um ar jocoso, até a própria lua arreganha os dentes aguçados entre densas nuvens que a ocultam
e chove, tal como ontem choveu, e anteontem, e antes de anteontem, tal como amanhã irá chover e esta cruel realidade impede-me de contar o tempo

caminho, sei que caminho porque os pés se arrastam no alcatrão molhado, todos se afastam em figuras de contornos escuros, primeiro perfeitamente definidos e depois esbatidos, quero olhá-los, senti-los, dizer-lhes: estou aqui, mas somem-se entre os olhos cansados

ultimamente tenho a companhia das sombras que nascem na ponta dos sapatos e se estendem em fantasmas que assombram as próprias valetas, também elas habituadas à escuridão, aos escarros, ao lixo, ao sangue infecto

eu tenho uma navalha no bolso e não tenho coragem de a usar
eu tenho uma navalha no bolso e está cheia de ferrugem
eu tenho uma navalha no bolso e não sei onde a perdi


Sigur Ros - Gong

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Crimes amorosos

XV
abraça-me, como só tu o sabes fazer, assim com toda essa tua força
abraça-me, consigo sentir o cheiro que se solta do teu cabelo, o que manténs desgrenhado, caído sobre os ombros para que o sinta acariciar o meu rosto
aperta-me, como se hoje fosse o último dia, assim com toda a tua coragem
o meu peito cola-se ao teu e respirámos o mesmo ar, pausadamente
aperta-me com toda a tua força, não tenhas medo, porque eu também não tenho:
parte-me os ossos, aqueles que consegues sentir debaixo da roupa, parte-os todos um a um e não fales enquanto o fazes, sou outra vez menina nos teus braços, uma boneca que carregas com uma só mão e arrastas os cabelos pela rua suja
não digas nada, abraça-me só, enquanto as gavetas se esvaziam

Antony and the Johnsons - Frankenstein

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

bala número catorze

quem foi morto hoje?
algures, numa página de jornal alva, violada por suja tinta negra, rostos apagados de pessoas esquecidas, ladeadas por caixilhos pretos.
todos os nomes que me lembro, todos aqueles que consigo lembrar.
quem foi morto hoje?
Alzira, Joaquina, Humberto, Diogo, Josué, D. Albina, Sr. Ferreira, D. Luisinha, Sr. Joaquim: foram mortos ontem. e quem foi morto hoje?
outros nomes, que não estes, serão pintados numa outra página de um qualquer jornal, de uma qualquer outra terra, outra língua, outro povo, outra raça.
quem foi morto hoje?

e mesmo assim amanhã será amanhã

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Manifesto CXXXV

o caruncho invade a mortalha

e que sei eu ainda
finjo entre paredes que se erguem altas, brancas e sombrias
surda perante o canto de abutres cobrindo o azul, que quase não vejo, que quase esqueci

e que sei eu ainda
esta terra que assento com os pés está humedecida de sangue
e o caminho que se avista, precipita-se em abismos negros

e que sei eu ainda
este ponteiro que não pára afasta-me de mim
este ponteiro sem piedade aproxima-me do fim




Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

a torre do relógio caiu mas ele continua na sua função de dar as horas

perdi os dias, os meses, os anos no calendário

ninguém

uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito

toda a cidade é uma ruína que se estende dos meus pés até ao horizonte que consigo distinguir
nove, dez

ninguém

onze

passo a mão pelo ombro, todas as feridas cicatrizaram, sinto debaixo da pele a sua forma irregular

entro no café: eu deixei de fumar e tu nunca fumaste mas sei, que se te cravar um cigarro guardas um no bolso para mim

doze

FIM
(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

Crimes amorosos

XIV
enrolávamos as tardes nas pontas dos dedos,
voavam em círculos desajeitados no ar
abríamos o caminho entre raios diagonais de luz
e adivinhávamos as cores de lá de fora

adormecíamos, exaustos
para acordar, quando o frio da noite nos cobria a pele
e os nossos olhos brilhavam na penumbra
os meus olhos, os teus olhos: encontram-se

o meu corpo tem a forma das tuas mãos
a tua boca tem a forma da minha língua
a minha pele, veste a tua carne
a tua carne esconde-se na minha pele
somos: um

enrolo as tardes em espirais esquecidas

quinta-feira, 20 de outubro de 2011



quando finalmente me consigo mover: a perna direita, a perna esquerda, a mão esquerda, a mão direita, abro os olhos

estou numa fenda de terra, pedras, estilhaços que subo a custo
o primeiro raio de luz obriga os meus olhos a fecharem-se, habituo-me

à minha volta: ninguém, à minha volta carcaças retorcidas de ferro, pedras, cinzas, pó, cinzas e pó

também eu estou coberta de pó cinzento misturado com riscos de sangue que me escorrem pelos braços, pela face, pelo pescoço, pelos ombros

dor e ardência

(cont....)


(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

a cidade amanheceu com uma névoa que nasce no rio
pelas colinas sinuosas sobem lembranças da noite passada
mas não tarda alguém virá recolher os despojos abandonados
pela calçada, pelos bancos, no tronco das árvores, na tinta suja das paredes

estica suavemente os braços, move muito lentamente os dedos
vai agarrar os primeiros raios de luz que corajosos rasgam o nevoeiro cinzento
não vai sentir frio e não vai precisar de um casaco

estremecem os paralelos com a violência das rodas dos automóveis
abrem-se as portadas das casas: liberta-se o ar encarcerado entre vigas e andares
a água corre nas canalizações e termina no rio:
cornucópias azuis, cornucópias chumbo, remoinhos de espuma precipitam-se para a foz

fechou os olhos e continuou acordada
ao fundo o ruído da cidade
adormeceu no preciso instante em que fechou a porta:
à sua volta o silêncio das pessoas apressadas


NIN - 1 Ghosts I - Nine Inch Nails


percebia agora o silêncio, toda aquela imobilidade que me rodeou, que me rodeia ainda

estou diante de ti: só falas com o teu olhar perdido enquanto desenhas os prédios que outrora rasgavam o céu: azul, cinzento, negro

o teu dedo desenha um arco, desde a tua perna até ao meu ombro, sinto-o tocar-me a pele: quente e frio

[sempre esteve aqui]

imóveis: a praça move-se lentamente à nossa volta, a torre do relógio nas tuas costas, a torre do relógio nas minhas costas: as pedras descrevem círculos imaginários sobre os nossos pés

pela primeira vez ouvimos o relógio bater as horas: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete

um silvo agudo rasga o falso silêncio

oito, nove

ninguém tem tempo, ninguém sabe correr, ninguém sabe que devia de correr, ninguém corre

dez

o maior estrondo de sempre: sinto a terra debaixo dos meus pés tremer e a abrir-se em bocas esfomeadas

a arquitectura de cimento do homem começa a cair: voos vertiginosos até ao solo: cinzento, fumo, cinzas, pó

onze

fecho os olhos, num gesto involuntário
deixo-me ir

doze
(cont....)


(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

voo suicida para todos os instantes perfeitos e dois suspiros


Fotografia de Jorge Pimenta

[...] estou cansado de ser apenas um homem.
António Skarmeta, O carteiro de Pablo Neruda



I
abro-te estas mãos que não acabam no tempo.
serás tu quem me há de sepultar
assim que mirrem os crisântemos
e o homem esqueça toda a linguagem.
não sei quando, na verdade,
não sou deus
e a catequese está já à distância da memória
por isso espero pelo calendário que marca os dias até morrer
e uma cigana que adivinhe quantos soubemos viver
nos silêncios que esquecem todas as palavras
todas as bocas
e quase todos os beijos.
será que permanecerão em mim,
pelo lado de fora,
todos os ruídos lentos que me abandonaram,
essa máquina que separa os vivos dos vivos
e nos aproxima dos mortos?
jorge pimenta


Fotografia de Jorge Pimenta


[…]e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo.
Correr é estar absolutamente sozinho.
[…] na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.
José Luís Peixoto, Cemitério de pianos


II
parece que muros se erguem violando o céu sagrado
deixo que o grito se suma mudo
e a terra cubra quem tomba pelas valetas
se é no horizonte que se desenha o futuro,
ainda que a lápis, ainda que alguém o apague
eterno é tudo aquilo que nunca fui

no vasto rol de deuses que me fitam do alto,
com o dedo acusador
sei que há silêncio e gemidos ocultos na carne cansada
e olhos fechados sobre todos eles

eu sei que vou morrer
eu sei que vou, um dia, morrer
eu sei que as asas que me deram não me deixam voar
e eu sei que sei voar
e eu sei que vou voar, no dia que eu sei que vou morrer.
Laura Alberto

Crimes amorosos

não me quero cobrir, para que o frio que me cerca as costas permaneça
não me quero despir, será sempre o teu toque a percorrer-me

ainda sinto as costas serem invadidas pelo frio da parede:
a pele espalmada contra o branco dos azulejos, o gelo que queima a carne
a tua pele percorre cada pedaço da minha pele: a tua pele
cada um dos teus dedos aponta a estrada onde nos perdemos

o tempo pára

as tuas mãos percorrem o interior das minhas coxas como um fogo que cresce infinitamente
a minha boca na tua boca, a minha língua, a tua língua: uma só
enrolo as pernas e subo até ao teu tronco
o suor escorre pelos nossos corpos: calor
todo o meu interior é teu

escorregamos, líquidos pelo chão
e ficamos, assim: a respirar, a adormecer

e não queremos acordar


Fotografia de Man Ray

Manifesto CXXXIV

memória do presente virado passado tirado futuro

carrego o tempo viscoso que me ensinaram a contar
os minutos, as horas, os dias, os anos, as décadas
guardados em sulcos sob a pele
nas minhas costas estende-se o pó pela estrada
diante dos meus olhos a estrada de pó
[onde se bifurcou este trilho sem fim?]

a memória é veneno que consumo com lentidão
arde-me o sangue: sinto-o queimar as veias
sinto as veias que queimam a carne
e a pele estalar com violência

esta memória:
é mortalha que cobre o corpo
é pesadelo nas noites mal dormidas
é sono nos dias repetidos e repetidos
é um pedaço de carne:
que não consigo arrancar
que não consigo engolir
que não consigo cuspir

Man Ray, Profile and Hands, 1932

Salvador Dali e Gala

[cheguei cedo, cheguei cedo de mais]

sento-me numa das frias cadeiras de metal que aqueço com o corpo

à minha volta, um cortejo de pessoas: que esperam, que partem, que chegam, que não chegam, que tarde chegam, que desesperam

nenhum daqueles olhares é me conhecido, nenhum daqueles olhares me devolve um porto de abrigo

deixo-me embalar pelos corpos que dobram a esquina tentando equilibrar malas nas mãos e na dobra do cotovelo

adormeço ao som de peles queimadas, de peles brancas, de peles cansadas, de peles ansiosas, de crianças que correm e choram e riem, como é esperado de quem é criança

quando finalmente é o teu corpo que se destaca na multidão, reconheço a tua face, a tua boca, o teu olhar perdido e distante

[quanto tempo se passou?]

não espero resposta, ela surge nas rugas que agora aparecem quando sorris, quando franzes as sobrancelhas, desconfiado
[ainda a tens?]

levo a tua mão ao meu ombro, não preciso de responder porque acabaste de a sentir

[anda, vamos]
finalmente posso pousar a cabeça no teu colo

[tu sabes que eu gosto de vir aqui de vez em quando]
[sei, porque aqui nós conhecemo-nos ]

(cont....)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011



uma moeda reluziu diante dos meus olhos, ora, aqui está uma grande mentira, uma mentira poética: é impossível que uma suja moeda de cobre reflicta a luz do sol

[é o meu dia de sorte]

guardei-a no bolso, mais tarde colocá-la-ia numa qualquer gaveta em qualquer lado, daquelas que só se abrem para guardar aquilo que outros chamariam de inutilidades inúteis

riscava a areia que se acumula nos espaços dos paralelos juntamente com beatas, papeis e, perdoem-me a sinceridade, um ou outro escarro

alguém me pergunta as horas, sem olhar e sem errar, disparo
[dez horas]

estava de novo na minha mesa de café: ontem fui a última pessoa que aqui se sentou, hoje sou a primeira pessoa que aqui se senta

aqui, e isto porque as leis não passam da porta, pode-se fumar, pode-se fumar, pode-se voar com o fumo que sai de um cigarro em espirais incontroláveis

ninguém: o café está vazio: o Sr. Sebastião e eu
na cadeira vazia de fronte a mim, onde muitas vezes pouso um ou outro pé, uma caixa rectangular embrulhada em papel mata-borrão abraçado por um atilho de fio norte

[ei, está aqui um embrulho]

perante um encolher de ombros pouco interessado, desfaço o atilho, desembrulho o papel, abro a caixa:

uma pequena pedra cinzenta e um cigarro

[Sr. Sebastião, traga um cinzeiro]
(contínua...)

Crimes amorosos

XII
hoje
cada um de nós dorme:
nos lençóis, na cama, no quarto a que pertence
hoje
cada um de nós:
apaga a sua luz e cobre-se com o seu cobertor

esta pele, não é nossa
estes lábios, não são nossos
a minha boca na tua boca, a tua boca na minha boca: estas bocas não são as nossas
estas pernas, não são nossas
este peito que arde, não é nosso

nosso é:
este suspiro que resta
este grito abafado na carne
esta lágrima que se disfarça
esta multidão onde nos escondemos

quinta-feira, 6 de outubro de 2011


[Gala e Salvador Dali]

voltei a página, a folha que se seguia estava em branco
bem como todas as outras, cosidas com uma linha preta

conseguia ouvir o silêncio que ficava entre o espaço das vozes que se sentavam a meu lado

conseguia ver a sombra das pernas cruzadas estender-se no chão, o mesmo que eu martelava com a ponta da sapatilha

uma mão de dedos esguios pousou-me no ombro

no mesmo instante senti o calor que atravessava a camisola que vestia e senti o frio que me gelou os ossos

a outra mão, também de dedos esguios e tortos segurava um isqueiro que pousou na mesa onde se acumulavam papeis, duas chávenas, um copo com água da torneira e pó

não controlava os meus gestos e a caneta que segurava bateu contra o chão e escorreu pelo pavimento sujo

quando ergui a cabeça e olhei, olhei apenas para ausência: estava sozinha, naquela mesa, naquele café:

eu e um isqueiro
(... continua)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Crimes amorosos

XI

deixa que escorra pelos teus dedos,
que a última gota de sangue caia nos ladrilhos bancos
e invada o ar com seu barulho ensurdecedor
sem pensar, sem medo
esconde as mãos dentro dos bolsos

amanhã descobrimos os nossos nomes

David Bowie - Strangers When We Meet


[Gala e Salvador Dali]

eu deixei de fumar de tu nunca fumaste

mas sei, que se te cravar um cigarro
guardas um no bolso para mim
que se te pedir lume, encontras no fundo do bolso do teu casaco um isqueiro sem gás

[lamento, não funciona]

continuas a insistir, a riscar, sem efeito, a pedra do isqueiro

[obrigada à mesma, alguém ao dobrar da esquina terá lume]

mas tinha a noite caído, sobre os candeeiros esguios de gélido metal

uma luz negra cobria agora as minúsculas pessoas, que corriam: fugiam entre os túneis do metro, entre autocarros repletos de sonhos desfeitos

a mesma luz negra, descia sobre a nossa pele, dobrava o teu rosto pálido e caia a meus pés

[será um risco percorrer esta calçada sozinha, agora…]

em bicos de pés bebia a tua voz

[agora que todos se vão e o café fechou]

à volta, apenas o silêncio e uma praça vazia

e uma vontade incontrolável de fumar um cigarro
um cigarro que nem sequer trazia

(... continua)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Crimes amorosos

X
guarda bem a navalha: de nada vale assassinar um morto
guarda bem o manual: de nada serve quando a cegueira é o olhar
guarda bem o lenço: aqui desconhece-se o sabor do sal

guardai bem os lençóis: foram roubados da vossa cama
(silêncio)

Fotografia de Pedro Polónio, http://www.club-silencio.blogspot.com/

Crimes amorosos

IX
o mar esqueceu o teu nome, a areia perdeu a tua forma,
que sei eu ainda
olho o horizonte e canso-me, olho o céu e o tédio invade-me
que sei eu ainda

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XL
naquele tempo comíamos os frutos das árvores, bebíamos a água dos charcos.
naquele tempo caíamos, arranhávamos os joelhos, sangrávamos e corríamos pela linha do caminho-de-ferro.
naquele tempo contávamos os números à nossa maneira, falamos as nossas palavras, gritávamos ao vento.
naquele tempo, todo o universo éramos nós.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Polaroid 46

quatro mulheres vestidas de negro

quatro mulheres vestidas de negro
quatro mulheres vestidas de negro, caminham nos trilhos sinuosos da montanha, agasalham-se com seus negros xailes, espreitam entre a bruma da manhã, bebem o frio da noite e chamam os seus antepassados

quatro mulheres vestidas de negro
quatro mulheres vestidas de negro, de rostos marcados pelos dias, rugas ásperas, testemunho das horas longas, das horas frias, das longas horas frias e solitárias, arrastam-se pelo tempo que lhes resta

quatro mulheres vestidas de negro
quatro mulheres vestidas de negro, de rostos apagados, de nome que já não se ouve
carregam troncos de eucalipto, carregam galhos de árvores

quarto mulheres de negro
caminham, sem força, sem destino, sem amanhã
quatro mulheres de negro
sobrevivem em círculos fechados

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Crimes amorosos

VIII
amanheceu, uma luz pálida acaricia o teu corpo nu
ainda que a penumbra nos cerque o olhar,
adivinho a forma do teus ombros, do teu peito espalhado
sinto o odor do teu suor e deixo-me perder na tua pele fresca

amanheceu:
sinto o calor que ainda resta
entre cigarros queimados somos meros navios à deriva
nesta louca tentativa de sermos deuses

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

"O coração é um vasto cemitério" Heiner Muller

XXXIX
fechar os olhos. abrir os braços. sentir o vento na pele, o vento que hoje finalmente dorme.
rodar, rodar, rodar.
sentir o chão que foge. entrar no solo que se abre violentamente sobre os pés.
rodar, rodar, rodar, rodar.
amanhã, esquecemos o nome de quem coloca o alimento sobre a mesa.
amanhã, esquecemos a mão que embalou o berço.
amanhã nascemos, se amanhã houver amanhã.

Beirut @ Glastonbury-Carousels

Polaroid 45

Fotografias

observam-me do outro lado do quarto, na outra parede
sempre oposta, sempre presente, a outra parede
rostos parados no tempo, numa qualquer folha que poderia ter sido outra ou outra
marcam o tempo que vai correndo, escorrendo lento pelos dias que sobejam
testemunham o vento que não pára e todo o ar encarcerado em fitas de pó
podiam ter sido um rio, podiam ter sido um oceano
e são apenas pedaços
pedaços de um passado escrito
pedaços de um instante esquecido

estranhas, miram na esguelha do olho
assombram na penumbra da noite quando o silêncio sussurra o fim anunciado
e são apenas fotografias, à deriva

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Crimes amorosos

VII
se colocar o pé no soalho descubro que estou descalça:
não te quero acordar para ver um corpo que não me pertence
deixo que a escuridão tape os nossos rostos assim
os beijos sentem-se frios entre os corredores da memória

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

crimes amorosos

VII
se pudesse, acordava sempre a teu lado enroscada na espiral da tua carne
mas a noite cercou os nossos corpos, fria, gelada
roubou-nos os derradeiros suspiros e deixou-nos cercados
pela mortalha que chega com a alvorada

se pudesse, fazia teu o meu sangue para que o dia fosse eterno
brilhando como corre uma criança em círculos sobre a calçada

se pudesse, mandava parar o tempo
e dormia, finalmente


MoonSpell - Alma Mater


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Polaroid 44

a mesa

descansa, agora que a noite cerra as suas pálpebras
sobre os nossos ossos exaustos, descansa
deixa o relógio contar os segundos, os minutos, as horas
e permanece aqui, agora, em silêncio, imóvel
mesmo que chegue o vento e arranque as raízes dos nossos dedos
descansa, enquanto cobrimos a luz com a sombra dos passos

regresso

queridos Amigos:
as ferias afastaram-me dos blogues, do meu e dos vossos. Afastaram-me da escrita.
Regressei, com o corpo coberto de pó, queimado do sol e cansada.
Porém, a mala está cheia de saudade e de letras, dispersas, que eu espero juntar.
Em breve, espero ser recbida na vossa casa, nos vossos blogues!
Abraço!

domingo, 7 de agosto de 2011

Duas estações

Naquele tempo, os dias longos iam começar a minguar, a prova viva de que a Terra se aproximava cada vez mais de encontro ao Sol. Sabia isso, por que a minha sombra alongava-se pelo alcatrão quente e eu observava as minhas pernas ganharem um, dois, três, quatro metros, naquele pedaço preto que me prendia as passadas.
Os mesmos caminhos tinham ganho uma tonalidade diferente, como se de repente, sem contar, todas as cores brilhassem e o seu brilho fosse tal que era impossível não reparar num pequeno pedaço de papel, jogado ao acaso, por um miúdo travesso, da janela do carro do seu pai.
Todas as portas, que sempre conheci fechadas a sete ou oito chaves, estavam abertas, de par em par. Adivinhava os corredores, as salas, as cozinhas das casas que já não libertavam o seu odor a mofo.
Nessas mesmas portas escancaradas, dispunham-se pessoas, com os seus rostos sorridentes. Falavam com o vizinho da frente, do lado, o amigo, o familiar. Contavam as histórias do ano que tinha passado, longo e frio, enquanto bebiam os, para si escassos, minutos de tempo que sabiam ainda possuir. Seguravam os cães, que ladravam numa língua estrangeira, no seu colo. Enchiam o olhar com a neta, que pulava no quarto de rua, da qual a porta era apenas uma fronteira ganha.
Os campos encheram-se de erva verde, milho, flores silvestres. Juro mesmo que me cortei numa silva da qual nunca tinha dado conta. Tinha o ar perdido o seu odor saturado e pássaros de todas as espécies e mais uma riscavam o céu azul sem nuvens.
Maria Milagre acenou-me da sua janela. Gritou-me um olá, o primeiro de sempre e único. Consegui ver o seu rosto: não tinha mais quase cem anos, tinha agora talvez, no máximo, uns vinte e dois anos.
Nesse instante, o alcatrão que pisava transformou-se em paralelo gasto. E o paralelo gasto que pisaria uns quilómetros à frente, transformou-se em terra batida.
Compreendi que um dia mais à frente, começaria a nova estação: a ausência.

bala número treze

não perguntes pelo dia de amanhã, quando sabes que o mesmo Sol irá nascer exactamente
como hoje, atrás das nuvens e como
espadas de aço as rasgará, sem pedir, sem hesitar, em silêncio

e assim, deixamos as marcas dos pés na areia, impiedosos pés que destroem
torres imaginárias onde guardamos os sonhos nocturnos, são
agora as aves que voam alto no azul e nele mergulham eternamente, resta-nos
o seu último canto

não digas da estrada que começa, no preciso sítio onde pousamos
as velhas malas que carregamos, onde deixamos
que o vento embale o pensamento em orlas de pecado

e amanhã, um mesmo dia nascerá

Oráculo da memória

Cada vez mais tenho dificuldade em adormecer calmamente. Cada vez mais acordo de madrugada e conto as horas que se tornam vagarosamente longas, até ao Sol beijar o rosto de todos aqueles que se cruzam nas praças das aldeias e das cidades.
Cada vez menos passo as horas a dormir. Cada vez menos passo as horas acordada. Talvez durma quando tenho os olhos abertos e desperte precisamente quando cerro as pálpebras.
Acordo.
Passaram-se 100 minutos? Ou passaram-se 100 anos?
Ao certo não sei dizer, talvez o tempo não se conte de forma correcta. Talvez um ano seja apenas um segundo e cem anos caibam na palma da mão de uma criança.
Enquanto esfregava as pálpebras que me cobrem os olhos, recordei a minha infância, num esgar. Todo o passado cabia numa folha de papel, amarrotada dentro de uma garrafa de vidro à deriva no alto-mar.
Cá fora, as pessoas vestiam as mesmas roupas, calçavam os mesmos sapatos e exibiam os mesmos sorrisos, disfarçando o desdém que nutriam pela pessoa que se sentava à sua frente no autocarro, ou que, a seu lado, se preparava para atravessar a rua.
Olhei-me, de alto a baixo, de baixo a alto. Reconheci cada milímetro de pele, identifiquei cada marca nas mãos. Não conseguia observar a minha face, mas com a ponta dos dedos adivinhei, uma-a-uma as linhas, as rugas que se poderiam contar desde que sai do ventre da minha mãe, até àquela precisa oscilação do pêndulo do relógio. Dessem-me um pincel e tinta, que saberia colocar no meu rosto, todas as manchas, com mestria, ordenadamente até a tela estar completa.
Apesar de tudo, passava invisível entre as pessoas sozinhas, ou quando caminhavam em grupos impostos. Nenhuma me fitou uma só vez. Nenhuma me via. Seus rostos eram esboços: contornos de olhos, de lábios, de narizes, de orelhas. As suas figuras pareciam estátuas envolvidas em fumo.
De repente, o lusco-fusco que me envolvia tornou-se cada vez mais definido. Entre sombras, fumo e contornos esbatidos apareciam-me rostos familiares.
Caminhava na cidade, cada uma das pessoas apressadas era uma memória, da família, dos amigos, dos conhecidos, dos desconhecidos. Cada um deles, que estava encerrado em baús criteriosamente esquecidos, tornava-se agora mais claro, até o seu brilho ser impossível de suportar pelos meus olhos.
Quando me preparava para acenar a um deles, compreendi que tinha acabado de acordar e naquele segundo, minuto, hora, dia, sei lá, estava decididamente atrasada.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Tendinites IX

avança a estrada sobre mim
sinto a sua língua quente penetrar
sem pudor, sem desculpas, sem pensar
o calor entra pelos poros, invade a alma e aí fica:
um parasita que se alimenta até a carne ser apenas uma memória

apetece-me porém agradecer
o pó que me preenche
e o cheiro das pessoas que me cercam
estou vivo

desenho o corpo, sobre o pó pousado
o meu corpo tem a forma das nuvens
e adivinha o suor dos deuses
[estou viva, sim e adivinho o teu sorriso]

João Miguel Ferreira e Laura Alberto

crimes amorosos

VI
fecho os olhos e finjo dormir embalada pelo ar que libertas
acendo um cigarro, que não fumo, só pelo prazer de ver o fumo azul subir até ao tecto e perder-se em rolos de loucura
abro as mãos e com os dedos percorro a estrada estendida sobre os lençóis

não consigo dormir, o sangue ferve sobre a pele em ânsia
na penumbra, finjo fingir, sem te acordar

terça-feira, 19 de julho de 2011

Polaroid 43

nocturno

receio que a manhã acorde e a escuridão seja o manto que cobre a terra
uma luz negra desenhando o contorno das arvores, das fragas, dos desfiladeiros
e no ar pó, pó e mais pó

toda a vida apagada por um denso nevoeiro,
espesso, como o sangue coagulado nos moribundos

todo o calor bebido pelas entranhas da terra
sofregamente até se tornar uma memória, distante e esquecida

temo que a manhã invada os olhos errantes
com a sua escuridão, fria e negra escuridão
um dedo pousado sobre os lábios. silêncio

crimes amorosos

V
anoitece:
a luz abandona as formas perfeitas entregues ao silêncio
a penumbra desenha estátuas imóveis de mármore branco, de olhos arregalados como misteriosos seres deformados pela ausência de luz

anoitece:
o vento pára, a terra pára, o tempo pára
arrastam-se os corpos vivos, todos adormecem, fingem dormir enquanto agasalham a carne com promessas impossíveis

anoitece:
é hora, é esta a hora
lá fora, a noite, o silêncio, o negro
chamam-nos

segunda-feira, 18 de julho de 2011

crimes amorosos

IV
deitava-me a teu lado
no tempo em que as tardes começavam quando a luz rasgava o horizonte e terminavam nas longas horas da madrugada
ali, imóvel a teu lado:
deixávamos que o vento nos perturbasse a pele em promessas mudas
e sob as nossas cabeças o céu rodava cansativamente azul

bebíamos sofregamente os segundos marcados na palma das mãos
mordíamos selvaticamente o canto dos pássaros negros

deitavas-te a meu lado
quando a areia corria no leito nos rios
e a foz era apenas uma miragem delirante
eu, imóvel a teu lado
éramos estátuas de mármore onde corria o sangue
com que traçávamos o dia seguinte à noite eterna

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Manifesto CXXXIII

de ti:
quis saber onde mora o vento
que molda a pele que me cobre,
corri entre escarpas afiadas
e no mar lavei o sangue
mas o vento tinha parado e tu sorrias distante


de ti:
ouvi contar, como doce melodia,
que cavalgavas no dorso das ondas
e bebes dos lábios das algas,
despi a túnica que vestia
e procurei-te na linha do horizonte

de ti:
descobri que os deuses não existem,
pisando o pó, a terra, a areia
com que enchemos as nossas casas

Manifesto CXXXII

queda em espiral sobre manto branco

acordei para descobrir que o tempo tinha parado
ali sobre a mesa, entre o pó branco que se acumula, repousa: fechado, calmo, perante lábios semiabertos
encontro o sopro quente, fugaz interior, como a escaldante areia que se teima agarrar, para de pois se perder
e sei que ainda assim, entre o estender da noite sobre o quarto e o desenho da luz nos corpos desnudos, ainda assim, despertarei no armário das recordações, no armário escondido e cerrado da nossa memória

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Crimes amorosos

III
este sol marca a pele, como o giz sobre uma ardósia
procuro a água onde banhar o corpo e descubro que os rios carregam as palavras mudas sussurradas ao ouvido
o calor usurpa a pele, a carne e dentro, o sangue ferve como água pronta a desinfectar

e o frio que não chega, não chega a tempo para que me vista com o teu manto negro
e o frio que não chega a tempo de acabar com este ardor que sai do peito

Einstuerzende Neubauten - The Garden

quarta-feira, 13 de julho de 2011

crimes amorosos

II
na carne branca, pintadas de azul, veias exaustas carregam o sangue e a alma é lavada
na pele fria, dedadas de Minotauro cravam-se sem piedade
no ventre, habita a ruína: negra, gelada, pedras e pedras, tombadas, derrubadas

moonspell- Wolfshade (A Werewolf Masquerade)

crimes amorosos

I
um dia, quando a manhã acariciar os nossos corpos banhados na escuridão fria
sairei a correr, pelas pedras cinzentas, para mergulhar nos teus braços
e descobrir que todos os rios terminam nos pés ensanguentados dos amantes

Moonspell "Scorpion Flower"

terça-feira, 12 de julho de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXVII
atravessada sobre os lençóis brancos, deixo a minha cabeça pender. da janela do quarto, observo a luz amarela do candeeiro filtrar-se entre o nevoeiro que se espalha na neblina. ténues pedaços de luz amarela dissolvem-se na escuridão da noite, pequenos pedaços de algodão desfeito.
os teus dedos desenham mapas na minha pele, a tua boca bebe o rio sem foz, na carne cravam-se os dentes.
uma gota de suor cai, sobre o chão de madeira e a lua acaricia os corpos com a sua luz fria de gelo.
o tempo parou, para que se pudesse dormir, assim, pausa.

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXVI
um instante, um breve segundo: sentir que o coração parou e o sangue é uma poça adormecida, onde crianças saltam de pés descalços.
se abrir um corte na pele, se cortar em duas linhas simétricas o peito, jorrará sangue em golfadas tímidas, lágrimas virão limpar a face e o sal adivinha esculturas disformes na linha do rosto
sentir este estremecimento, sentir-me assim, sentir-te assim, dentro de mim

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Polaroid 42

as tardes à beira-mar

a tarde pousou a sua cortina nos nossos olhos. abafado
nos nossos olhos fechados, sob o sol impiedoso
descubro o teu peito, move-se lentamente para deixar o ar ser
apenas uma réstia de vento que náufraga na tua pele

fechamos os olhos perante a tarde que se estende. abafado
pela areia suja, pelos gigantes dos rochedos que escondem o mar salobro
os primeiros passos de uma criança, os seus pés delicados no cimento rude:
pára, imóvel, silenciosa e aponta

a tarde cai aos nossos pés e um dedo de criança aponta o céu azul
o primeiro odor do sargaço a secar provoca-me náuseas
e um dedo de criança aponta o céu azul
digo. não, penso: descobriu a linha que nos separa


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Polaroid 41

degrau

as escadas são os pés que as pisam: todas as horas, todos os dias, todas as noites
e as folhas caem dos calendários suspensos nas paredes
os pés pisam os degraus, um a um, dois a dois, um saltinho e chega o fim, o fim no início
e o pó vai-se acumulando nos cantos de onde o gigante sorri

em silêncio, cruzamos as pedras de granito
enquanto os ombros se tocam e os olhos se fecham
enquanto os pés, cansados na sua passada, arrastam os corpos mirrados

as escadas são os pés que as pisam: todas as horas, todos os dias, todas as noites
e o lixo acumula-se, mas:
não são papeis
não são beatas de cigarros
não são pratas
não são pedras, areia e cinza

e o lixo vai-se acumulando


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quinta-feira, 7 de julho de 2011

bala número onze

enrola-se na língua, aperta a carne com o seu fio fino
e aperta, aperta
já não é uma língua só, são duas divididas pelo fio invisível
que aperta e aperta
já não são os braços que rodeiam o corpo
e a pele cai em escamas pesadas diante dos pés
a voz some-se entre lábios que se movem violentos
se provares o sangue receio que encontras
a lápide que enfeitará a tua tumba

e a mentira sublima de encontro aos deuses

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Manifesto CXXXI

Creonte chega de noite

franzes as sobrancelhas, um sulco entre a carne coberta de pele envelhecida suavemente
o cabelo retrai-se sobre a testa e as tuas orelhas continuam paralelas
intocáveis, entre a linha do rosto que separa a face do pescoço robusto

de olhos fechados consigo ver o teu rosto
de mãos paradas sinto o teu corpo nu

deixas os lábios entreabertos e deles se escapa o fumo do cigarro
que seguras entre dois dedos da mão esquerda
a mesma mão com que afagas os dias marcados no calendário

sei o caminho, reconheço cada curva entre a escuridão da noite
hoje, já nem a tua fotografia consigo beijar
e no chão do quarto acumulam-se os nossos cadáveres

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Manifesto CXXX

sob o clarão dos dias

debaixo da copa dos carvalhos fugirão pardais de asas partidas
rasgando o azul do céu e deixando-o a sangrar sobre as nossas cabeças

desconfio, alguém se esqueceu de nós
e cá ficamos, entregues, parados, a correr
fugindo dos dias, perseguidos pelo passado, à procura do inútil amanhã

no ventre da terra, cortada pela lâmina do coveiro
as borboletas vão cair, leves, esqueletos sem ossatura

[alguém roubou as nossas asas]

o vidro filtra a mentira
e nem a verdade invade o olhar
pois a cegueira é a sombra que caminha nas costas dos homens

bala número dez

a tua roupa dobrada no cabide: observo-a do outro lado do quarto
daquele mesmo ponto onde a parede se funde com as tábuas do soalho

a tua roupa, religiosamente dobrada, guardada como relíquia de boticário
acumulou ao longo dos dias, dos dias longos, dos dias curtos, das noites frias, das noites solitárias:
todos os risos, todos os choros
todos os silêncios, todos os gritos
todos os abraços, todo o frio

e agora está lá, queda e silenciosa
a roupa que cobriu o teu corpo, agasalhou a tua pele, abafou o teu sorriso distante

e agora:
perdeu a sua cor, desbotada pelos anos
e agora, a tua roupa já não tem a forma do teu corpo

e o silêncio habita no armário fechado


Uma Taxidermia de Papel, 1989 - Jorge Molder

terça-feira, 28 de junho de 2011

Concurso

Amigos: resolvi concorrer a um concurso literário, via internet. Para conseguir passar à final preciso de ficar entre os vinte trabalhos mais votados. Como conseguir? Com o voto de todos, na página do concurso. Só precisam de estar registados no facebook, depois é só votar no meu trabalho: Cemitérios.
Podem votar todos os dias, apenas num trabalho. Votando todos os dias, o meu trabalho consegue subir no ranking.
A todos o meu sincero OBRIGADA!
http://www.conteconnosco.com/trabalho-detalhe.php?id=848

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Polaroid 40

naufrágio

um dia, mando as estrelas procurar o teu corpo
e sigo o rasto de pó pintado ao leme do navio de pedra
nesse dia, ouvirei a tua voz gritar do fundo do oceano como um farol guia
e a escuridão será o lastro da minha viagem
nesse dia então, descobrirei que as vagas guardam as tuas mãos
e o frio é memória fresca dos teus lábios

Fotografia de Gerard Castello Lopes

terça-feira, 21 de junho de 2011

até amanhã

amanhã acordo nos teus braços com a frescura da tua pele a tocar a minha
amanhã observo o meu reflexo nos teus olhos como nas águas de um lago adormecido
amanhã o vento entrará e arrastará as cortinas com as quais escondemos os segredos
amanhã, de manhã bem cedo, estarei deitada a teu lado e as horas podem escorrer
e as horas acenam-nos lânguidas enquanto imóveis deixamos que os lençóis nos tapem

amanhã, amanhã sei que vou acordar nos teus braços e toda a solidão, todo o silêncio morrem nas esteiras do teu abraço, ainda que distante, amanhã vou acordar nos teus braços

Manifesto CXXIX

crónica de uma idade anunciada

I
quando acordo, mesmo de olhos fechados
há verdades que dormitam à espreita, não é preciso despertá-las
pois flutuam entre os dias e as noites

abro os olhos: o céu ainda é azul, as flores nascem da terra
e os tordos, os pássaros, as andorinhas, os pardais ainda sabem voar

não me atraso, outras vezes atraso-me
as ruas e as casas que as ladeiam permanecem
desenham duas linhas, duas margens nas quais navego

os mesmos rostos fechados
as mesmas mão paradas
os mesmos pés assentes em terra seca
o mesmo velho chapéu abrigando do sol, da chuva
o mesmo minuto gelado, imóvel, arrumado na alta estante

II
o tempo, esse maldito, atraiçoa a memória
esfuma os contornos do teu rosto
dilui as curvas do teu peito, das tuas pernas
e as tuas mãos sublimam em pensamentos distantes

III
a tua fotografia, assim pousada
a surpresa de a encontrar, de a reencontrar
adivinha a certeza de te esquecer


David Lynch Directing Charlotte Stewart Through a Window on the Set of Eraserhead

sexta-feira, 17 de junho de 2011

memória de um rio seco

todo este pó, cola-se à pele, entranha-se na carne, corre louco dentro do sangue
todo este pó enche os pulmões e lá permanece, sossegado

[acaso saberão os deuses onde se esconde a fonte para buscar a água preciosa?]

uma impressão na garganta recorda-me que não é sede, não é fome:
é apenas pó, que fica colado ao corpo
pó, com contornos de uma sombra indefinida caminhando ao nosso lado

terça-feira, 14 de junho de 2011

Manifesto CXVIII

monólogo do astrolábio partido

de uma lágrima fiz o oceano nascido entre os nossos pés
com um grão de areia moldei continentes suspensos no ar
parti um copo para te ver do outro lado, mesmo que longe, mesmo de costas
um quadrado de pele serviu-me de nau, uma gota de sangue deu forma às suas velas

tive frio, tive calor, tive frio, tive calor
tive escorbuto, tive sede, tive fome
tive medo, tive medo, tive medo

não sabia das estrelas porque se apagavam à minha passagem
não conheci os peixes em cardumes, escondidos que estavam no abismo
não ouvi o cantar do vento com os ouvidos surdos

à deriva fui, fui, fui, fui e vou


Marcantonio, Melancolia 20, Técnica Mista 89×154 cm, Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/

domingo, 12 de junho de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXV
o fumo do cigarro sobe em espiral, entre as línguas de luz que fintam os estores fechados. sigo-lhe o percurso contorcido entre pequenas partículas de pó. é provável que o sol queime as searas esta tarde e se abrigue no beiral da porta, mas aqui o frio permanece, imóvel, gelado, irrepetível.
de olhos abertos, de olhos fechados a escuridão rodeia o meu corpo e as papoilas ardem mais quentes do que a luz que as finta.
inspiro o fumo, o pó, o frio, o negro dos olhos e expiro em golfadas geladas.
algures o gancho enterra-se no peito e conto os dias, os meses, os anos que aqui me trouxeram.
a culpa existe: é a pele que cobre a carne, as rugas que sulcam a cara, o sangue que desliza pelos dedos, os olhos que fugiram das órbitas.
adivinho a tarde, lá fora: a tarde parou nos pés das crianças sem forças para a pontapear, a tarde parou nos olhares pasmos dos pais, a tarde parou no dia em que o meu cigarro se apagou.

sábado, 11 de junho de 2011

bala número nove

ninguém disse, entre os carreiros caminhamos sozinhos, quando ao nosso lado se estende a sombra
ninguém disse, com a chuva cai a voz rouca daqueles que se escondem nas nossas costas
ninguém disse, num sorriso mascara-se a infelicidade do mundo pintada de vermelho
ninguém disse, um passo à frente é o abismo

e as pás fazem-me calos nas mãos quando decido cavar o tumulo

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Manifesto CXVII

Entretanto

os minutos escorrem até aos oceanos destes dias cinzentos
pelas mãos escapam-se os teus cabelos ondulados
em segredo finjo beber a água com que lavas as mãos, pisar a terra seca onde foges em liberdade

[passo as noites a imaginar que me deito no teu corpo, que me cubro com a tua pele, que são as minhas pernas que tocam as tuas pernas, sempre, num qualquer lugar]

é dia, outra vez, entra ruidoso pelas janelas e afasta as cortinas
a luz que me toca as pálpebras é escuridão, é a noite que continua, eterna a meu lado
são metros e metros, quilómetros e mais quilómetros, entre nós, sobre nós
todo o silêncio, todas as palavras, escritas, ditas, gritadas, caladas

entretanto a areia cai sobre o vidro fosco:
somos um segundo à deriva sobre o calcário da rua, afogados na chuva fria e ficamos

terça-feira, 7 de junho de 2011

Manifesto CXXVI

a música que embala e chega na noite

sabes agora que vou ouvir
as palavras que encerras no peito
nada receies, elas chegam mudas pelas janelas entreabertas,
deixei-as assim para que viesses, entre as agulhas dos pinheiros pela noite sombria

[deixa-me tocar esse teu corpo que outrora me pertenceu,
beber dos teus lábios os beijos que me arrasam]

parece que regresso dos mortos, com o pó na alma
e o medo caminha comigo, ao meu lado
observo o espelho, sinto-me estremecer por dentro

[já não é o suor que me corre na pele nua
e descubro que os lençóis são frios de mais]

afio os ouvidos, deixo que o silêncio me retalhe, lentamente

Tendinites VIII

as árvores suspiram nos ramos agitados
a sua prisão eterna.
fosse árvore e também agitaria os ramos.

mas este vento cola-se aos ossos
afaga a carne e gela o sangue
ouso morder-lhe a língua num aviso de insanidade declarada

quando vestir de inverno o esqueleto
como hei-de gritar o podre e a finitude?

ao dobrar a esquina, sinto-lhes o bafo acre
adivinho a linha da gengiva a sangrar o seu veneno
são inúteis estes vermes onde assento os pés
e lá fora agitam-se as bandeiras desbotadas

sou um galho seco
pleno de humanidade boiando sobre o lodo

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

Bala número oito

afirmam apreciar a minha letra, a que desenho com a mão direita. observo-a sem notar o que nela vive de tão especial. esboço um sorriso, é da caneta, quanto à letra, perdi no tempo onde começou a enrolar-se na mão, no pulso, em mim, desde sempre foi assim.
tens uma letra bonita, já não ouvi.
a branca folha repousa sobre a mesa, um ligeiro tremer de mão, há que ser firme e agarrar a caneta. a folha continua virgem, a mão imóvel.
ouço o aparo a rasgar o papel, a tinta espalha-se entre as fibras do papel. silenciosa a folha deixa que a tinta a penetre. diante dos meus olhos, os primeiros riscos, a primeira letra, depois outra, mais outra, um hífen seguido de duas letras, uma palavras, outra, outra e mais outra.
os olhos não conseguem agora beber toda a folha, todas as palavras dispostas, arrumadas sigilosamente.
é minha esta letra, tem o sangue que me corre nas veias, o suor que se acumula nos dedos.
e esborrata-se com o sal das ondas

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Bala número oito

Batalhão de cavalaria

vesti hoje a tua roupa que adivinhava não me servir
passei as mãos pelos ombros, a costura assentava no antebraço
provavelmente pensarás, tempo houve em que a carne cobria o meu esqueleto e as calças não transpunham a linha do ventre

se tentar, sinto o pó que se liberta das fibras e adivinho o odor bafiento que se emana aquando das primeiras gotas de água

fecho os olhos, abro os olhos, um trilho de veredas constrói-se desde os meus pés até à linha do horizonte onde começa o céu, o caminho onde correste, onde soubeste o que é ter medo, onde descobriste a coragem, onde te deixaste ficar

a roupa teimosa, sobra ao longo do tronco, dos braços, das pernas
esta é a tua roupa, comida por traças, esquecida numa velha mala arrumada no sótão, as tuas memórias, os teus dias, os teus anos, enterrados no esquecimento, noutros anos que se seguiram

e os elefantes brancos abatem-se na savana distante

sábado, 4 de junho de 2011

Manifesto CXXV

arquitectura de uma sombra

(para o José Luís Peixoto)

fundi-me na cal da parede, alva, intocável.
ali, colei as costas à parede e deixei que o meu corpo fosse sugado pela cal, a pele, a carne, os ossos, uma massa que se misturou na pedra.
os pés entraram dentro da terra, o pó são os meus pés, os meus pés são de pó.

em silêncio, adivinhei a sombra crescendo, desde o rés da parede, um ténue traço contornado de penumbra, depois um rectângulo, depois um quadrado de sombra perfeito e depois continuou a crescer, a fugir entre a terra e a calçada escondida, um gigante pedaço de sombra a diluir-se, grande, grande.

alguém limpa o quadrado e a sombra permanece
alguém perde um sapato e não há contos que possam ser escritos
alguém cai e o sangue escorre entre os espaços do paralelo, as ervas secas, ressequidas, o pó pesado
alguém chora lágrimas que desaparecem
alguém fica prisioneiro naquele quadrado

cai a noite, a sombra invade toda a rua, todas as casas, todos os quartos, todos os corpos, todos os espaços vazios, todos os espaços cheios

a noite deita-se em lençóis extremosamente asseados, ao lado da solidão
a noite é o quadrado de sombra que dorme ao nosso lado

Fotografia de António Nunes

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Bala número sete

as mãos cansadas seguram o pano laranja, sinto as suas fibras prenderem-se na pele seca.
limpo o pó, o pó branco deitado sobre os moveis, as estantes, os livros, as recordações que acabaram por ir ficando, como prova de um passado, cada vez mais arredado, arrumado nas folhas que se viraram, ao sabor do vento, amareladas.

se abrir a janela, outro pó branco acabará por entrar, invadir as falhas do ar saturado que paira e cobrir os móveis, as estantes, os livros, e eu voltarei a segurar o mesmo pano, imóvel entre um segundo e outro, entre uma eternidade e um instante.

e o pó voltará para cobrir as molduras vazias da tua face


Sigur Ros - Viorar Vel Til Loftarasa
Amigos e seguidores do blogue: por motivos que desconheço, não consigo comentar nos vossos blogues, após várias tentativas fracassadas, acabei por desitir.
Espero que isto não passe de uma doideira informática!
Beijos

terça-feira, 31 de maio de 2011

deslocamento orbital sobre graal em sangue seco


Fotografia de António Nunes

hoje acordei com nicotina nos lábios e a garrafa entornada ao lado da cama.
o espelho tem a face queimada pelas linhas brancas que embaciam o olhar.
Ah, inspiração, és o sexo do poeta guardado pelo trifauce da obscuridade. é verdade, procurei seduzi-lo, comprar o poema, vender-lhe o corpo – a sobrevivência da plêiade é aquela côdea de pão bolorento que serve de festim às moscas. mas a ambição do inferno é apenas um balde negro e vazio que nem a faísca do olhar prostituto consegue acender.
não soube encontrar o fogo dentro de casa, mas a pólvora persiste em bordejar as pontas dos dedos enquanto o corpo áspero é muito menos que lixa a aguardar pela fricção. não havia fogo cá em casa mas todo o homem é o seu poema, mesmo que inflamável.
malditas, malditas que escorrem negras pela face, as letras que fogem aos dedos entorpecidos, moribundos sobre o papel!
malditas, malditas que me roubam as horas dos dias, as horas das noites!
e a corda enrola-se no pescoço, aperta a pele, comprime os músculos e o sangue em golfadas, pelas veias, assassina as palavras sobre a areia imunda.
às escuras, adivinho a sentença. sei que preciso do meu castigo no intervalo do meu desejo, no interlúdio da minha peça, nas letras vazias do meu poema. mas a música deixou de me tocar e os deuses, do alto da sua torre, mijaram-me em cima.

Bala número seis

já não lembrava a cor do sangue que me corre nas veias
o cheiro a ferro que emana quando corre pelo rosto

a pele arde, a mistura de suor e sangue cobre-me a pele
não vou chorar, há muito que as lágrimas se dissolveram,
para secarem nas cinzas do teu nome

é vermelho vivo, quando morre sobre o paralelo sujo
gotas e gotas e mais gotas pairam sobre o ar, imóveis
gotas perfeitas, redondas de sangue, de suor

reconheço esta vida que corre, que me foge
entre as feridas que despontam
como flores quando chega a primavera

e quando caí adivinhei o pó que me cobria

Manifesto CXXIV

A certeza




talvez o oceano se cale abrupto sobre as rochas
talvez o amanhã seja uma nuvem que vem acariciar os olhos
talvez hoje dispa este corpo gasto cobrindo o esqueleto
talvez a tua voz navegue pelo tempo para me sussurrar as palavras esquecidas, as palavras amargas
talvez o tempo seja o tempo que se passa guardado num segundo
e talvez esse tempo corra a eternidade

talvez o mundo termine amanha na palma da minha mão
talvez jorre sangue do interior da terra e ela fale até não mais se calar
talvez ouça o silêncio que guardas no teu peito
talvez os braços existiam para correr entre folhas, folhas e mais folhas alvas envelhecidas pelos dias que se demoram
talvez a vida seja um pedaço de algodão a voar no asfalto
e talvez esse voo dure o tempo de todo o tempo

talvez a saudade possa ser guardada em cofres fortes, esquecida, divina

talvez amanhã se esvazie o copo sobre a toalha que cobre a mesa
talvez amanhã não exista mesa, toalha, copo
talvez amanhã nada valha a pena, porque o amanhã é apenas um talvez

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/



segunda-feira, 30 de maio de 2011

Manifesto CXXIII

Cegueira ou não cegueira


já não observo o meu rosto ao espelho
conheço de cor todas as manchas que me cobrem a pele
navego nas suas rugas vincadas e sou um naufrago na tua boca

se eu me olhar no espelho
sei do pó que me cobre a face:
é o mesmo que resta da longa espera

talvez encontre uma saída
talvez parta o espelho em milhões de formas geométricas, sem forma

já não reconheço o crânio e a pele que o cobre,
todos os vasos sanguíneos onde ainda circula o sangue,
a boca seca, fechada
o nariz dilatado

talvez os polegares me cubram as orbitas
onde deviam estar os olhos
e eu descubra dois fossos vazios

Marcantonio, Cinco Monotipias 2001

Se eu te dissesse

[e o cheiro que a terra liberta nas primeiras águas
é o mesmo quando o sol teima em permanecer]

escrevo deste lugar distante, entre as horas que passam
que se passam sobre nós
e entre nós, o que se ergueu foi o silêncio

[e o cheiro que a terra liberta nas primeiras águas
é o mesmo quando o sol teima em permanecer]

adivinho o segundo que se segue, como uma tempestade anunciada
entre as paredes nuas
e desconheço o dia que surgirá, quando a noite se apagar

procuro o lugar onde dormir e não encontro uma cama
para adivinhar os sentidos que perdi,
procuro o lugar para ficar e não encontro os braços
que seguram o meu corpo arrasado de cansaço,
procuro o amanhã
mesmo que trazido cambado pela porta

e é o teu cheiro que ainda resta
entre gavetas, estantes, armários, vazios

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Polaroid 38

Objectos inanimados

amanhã abraço as ondas salgadas e navego nos braços da corrente
do asfalto quente, pintado de traços, de linhas, de abismos, de montes de lixo guardo:

as folhas derrotadas que voam sobre o pó
a areia que enterra as ruínas das cidades
a água serpenteando entre fragas esquecidas
os restos de plástico acenando quando é o vento que corto

amanhã, à deriva num qualquer oceano,
procuro o farol de Alexandria e durmo de olhos abertos

Bala número cinco (Para a Alexandrina)

há quem tome banho de água fria e sorria
há quem tome banho de água quente e vomite escuridão
há quem abrace molhos de flores e respire
há quem colha o vazio, num suicídio interminável
há quem observe os riscos brilhantes do granito
há quem sangre sobre as pedras quentes
há quem flutue entre papas de sujidade
há quem se esconde na deriva

e ainda assim, há quem seja

terça-feira, 24 de maio de 2011

Tendinites VII

os cavalos arrastam-me pela cidade
as cordas atravessam-me a pele
e o meu corpo a terra

o sangue escorre pela armadura
para encontrar o seu lugar no pó
que piso, que me calca, que se aloja no peito

os que olham férvidos sorriem
e escoam lava e lama pela boca

malditos, adivinho-lhes os dentes putrefactos
e o cheiro nauseabundo das entranhas

permito as cicatrizes das estradas
não os dentes nem as garras dos malditos

amanhã saio para dar uma volta de bicicleta
entre as escamas da sua pele

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

Pedrada LXIV

inho

os homenzinhos com as suas bonitas camisinhas engomadinhas
as mulherezinhas com os seus lindos vestidinhos floridinhos
os homenzinhos e as mulherezinhas do cimo dos seus engraxadinhos sapatinhos, enrolam as palavrinhas nas suas linguazinhas de serpentes;
agitam os seus bracinhos branquinhos e brincam com os seus documentozinhos prioritários de inutilidade;
lancham as suas comidinhas gourmet nas mesinhas redondas, onde deixam ficar a sua imundice;
fumam os seus cigarrinhos nas esquinas, escondidos do sol enquanto falam, falam e falam
os homenzinhos e as mulherezinhas, com as suas lindas roupinhas e seus gestos lixivados, metem-me cá um grande nojinho

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Polaroid 37

O homem que não ri

o homem que não ri abafa os risos dos pássaros debaixo do seu casaco negro, arrasta os pés no alcatrão fresco enquanto a noite se aproxima ao fundo, pela cortina do horizonte.
o homem que não ri abre os olhos na escuridão, bebe de copos vazios o medo dos procurados, sacode a chuva dos ombros nos dias afogados
o homem que não ri dorme de pé, de olhos abertos, guarda o silêncio, a noite no seu peito
o homem que não ri, um dia riu.
o homem que não ri, nunca ri, assalta as noites frias com os seus braços esguios,
e mudo ri, na bruma onde se esconde

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cores: Laranja

esperei, esperei até que o dia se estendeu
ao longo da linha que separa o céu da terra
o dia entrava dentro da noite, a noite entrava dentro do dia

a linha ficou lá, ténue esboço, negro, silencioso
a separar o céu da terra, a apartar a terra do céu

o vento moldava os farrapos presos em mastros
escancarava as portas de casas vazias, esquecidas, frias

o vento com os seus gritos mudos, dentro da minha cabeça
de mim, a cortar as entranhas, retalhar a carne, a gelar o sangue
e aquela linha, a linha que separa o céu da terra, dos mortais queimava-me o olhar lentamente

Bala número quatro

quando o tempo começou a apoderar-se do tempo que sobrava, na beira do prato, no fundo da rua, na sombra do carvalho; a enxada revolvia a terra; a pá carregava as pedras, meticulosamente ocultando os olhos daqueles que ainda arrastavam os pés.
quando o tempo cerrou os dentes entre lábios descolorados enfeitados por saliva seca, os ossos quebravam sob a suspeita do fogo e o nome queimava no dorso dos cavalos a abater.
quando o tempo foi o tempo, em círculos sobre si mesmo, a pá revolvia a terra, escavava valas, valas e mais valas, o feno abafava-se pelo pó seco, valas e mais valas, abrindo caminho sobre campos de papoilas, valas e mais valas, diante dos olhos de pássaros, tordos, andorinhas.
quando o tempo se cumpriu, aos meus pés, aos nossos pés, enterrava os amigos perante o olhar abafado de um gigante esquecido.
e o gigante caminha dia e noite, noite e dia com o seu saco de pano no braço

Fotografia de Laura Alberto

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tendinites VI

estou à tua espera, neste pedaço de tempo
entre os cinzentos do teu olhar
fecho os olhos
as mãos imóveis acariciam a tua pele

o desejo força-me a vencer o sono
e as nuvens tomam forma
e os dedos ganham vida
e estás onde te não vejo

abraço o teu corpo cansado
displicente sobre a cama
entre os fios de luz baça
que violam a escuridão do quarto

porque te vejo a olhares-me assim
quando é a tua ausência que nos preenche
falamos algumas vezes, lançamos o riso pelo mundo
e regressamos cada um ao seu lugar vazio

o remoinho perpétuo deita-me sobre as casas
e em pedaços escorro pelas traves
a porta, se estiver, deixa-a aberta

Laura Alberto / João Miguel Ferreira



Paula Rêgo

Manifesto CXXII

Abutres

não me servem as botas nos pés
as botas que correram; que pararam; que esperaram
as mesmas botas de sempre, não cabem nos meus pés

olho as extremidades das pernas
não reconheço estes pés, secos, cansados
os dedos alongam-se, entrelaçados e dobram-se na biqueira

quis fugir e não tive estrada
fiquei e não encontro onde dormir

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXIV
a navalha repousa no balcão, romba, cansada da pele seca que a cobre. o pó cobriu-a ao longo dos dias que correram, que ficaram quedos nos raios de luz entre frinchas da madeira.
até os ratos desistiram de procurar a carne
até as aranhas se cansaram das suas teias
até as moscas secaram entre o cotão das roupas
até as centopeias rastejaram sobre a luz do dia
a navalha espera, a ferrugem apanhou-a

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/