«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 10 de outubro de 2019


o cabo entrou pela sala a correr, a gritar e a esbracejar:
venha rápido o do colchão 7 está a morrer, está a morrer
mantive-me sentada, com a caneta na mão que, entretanto, tinha parado de rabiscar uma folha que por acaso estava por ali, perante a minha expressão de dúvida, repetiu:
é o do colchão 7, aquele das tripas presas por ligaduras, é esse, o das tripas
limpei o suor que se acumulava na testa, levei a mão ao queixo num acto involuntário de pensar, do outro lado ainda ouvia
está cheio de sangue, não pára de gritar, venha, venha rápido
levantei-me e segui pelo corredor escuro e pensava, pensava muito
não era disto que eu estava à espera e o raio da lâmina, ainda que afiada, nada corta e além do mais não nasci para fazer de Deus


entras aqui a fazer de conta que estás muito doente
que carregas um mal que não pode ver, mas que se irá remover
como uma nódoa na toalha de Natal
como uma pulga no lombo de um cão sarnento
não choras, não falas, não te lamentas
esboças um sorriso, ensaias um aperto de mão 

indico-te o colchão onde irás dormir, pelo menos tentar
como que à queima-roupa pergunto-te se tens alguém
olhas para o vazio do tecto enquanto percorres os dedos da mão esquerda
colocas os cinco dedos bem abertos, bem em frente aos meus olhos
e num repente fechas a mão, que guardas no bolso

viro costas e enquanto abandono a sala digo-te:
o teu tempo, a mim pertence agora e está contado até ao mais ínfimo segundo
olho por cima do ombro e descubro-te a dormir

terça-feira, 8 de outubro de 2019


dentro do sono, entre o espaço ocupado pelos monstros e pelo medo
restam pequenos pedaços de sonhos, que se desfazem como algodão ao vento
enquanto tento agarrar as palavras que se murmuram no peito
a mão é fraca e deixa que a gravidade se cumpra
entre um silêncio que se escapa da boca e um grito que se suicida
olho para dentro de mim
as piores cicatrizes são as que nunca foram visíveis, aquelas que marcam o interior da carne, bem debaixo da pele

amanhã tudo não passará de um sonho, não passará de um pesadelo
e um sorriso à queima-roupa, sem mortos, sem danos colaterais que não eu