«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

balada VI

hoje acordei e não reconheci o quarto
seria eu que desenhava os lençóis?
a roupa espalhada pelo chão: em rodilhas, do direito, do avesso
o sabor amargo de uma noite esquecida na boca ressequida
ouvi o silêncio do mês de dezembro a invadir a mente
senti o frio do mês de dezembro a rodear a pele

hoje acordei e não foi a teu lado

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

balada V

que a noite se segue ao dia: isso já sabíamos
que do verão se faz Outono: isso já conhecíamos
que as ondas se desfazem na linha da areia: isso já constatamos
que um céu de estrelas é caminho de navegadores: isso já aprendemos
que a tempestade antecede céus azuis: isso já vimos muitas vezes
que o fogo queima: isso já sentimos muitas vezes

que o abismo é ao virar da esquina: isso, ainda ninguém nos disse

Nick Cave & The Bad Seeds - Stranger Than Kindness (Live, HQ)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

conto curto made in Portugal

Maria sai de casa, com o filho ao colo, perfeitamente encaixado no início da anca. O dia ainda desconhece a luz pálida do sol. Hoje é o primeiro dia de inverno, de inverno a sério e não é preciso o calendário para o saber.
No mesmo instante em que entrega o filho aos cuidados da ama, o marido atravessa a fronteira entre a Alemanha e a França. O cansaço é muito, mas a vontade de chegar a casa é maior.
Na noite de consoada, mãe e filho partilham no mesmo prato, a pobre refeição, enganando mais tarde o estômago com uma guloseima natalícia.
Debaixo do pinheiro de plástico, comprado numa promoção com desconto em cartão, não há presentes. Desculpem-me os leitores, mas prefiro substituir por, nunca há presentes.
Não se sabe bem a hora, mas parece que o filho da Maria caminhou pela primeira vez, quando ouviu bater à porta. Quase que consigo imaginar que deve de ter aberto a porta ao seu pai, o seu Pai Natal.
Uns quilómetros mais à frente, numa outra casa, de pessoas com outras posses, João traquina pergunta, Ó mãe, o Pai Natal é made in China?

Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

balada IV

onde estás
procuro uma réstia de neve, mesmo que suja
que me devolva o sabor dos teus lábios
onde pousas o teu corpo
afago os lençóis frios testemunho de noites
longínquas de inverno
onde vertes o teu olhar
desenho montes e vales entre brumas
em cascas de árvores

onde estás
procuro os teus braços firmes
e descubro que a memória me atraiçoa

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

balada III

acordar, um céu cinzento estende-se a perder de vista
dezembro, mas qualquer outro mês serve
este frio cola-se aos ossos, corre debaixo da pele
procura-se a água que afogue a pele
procura-se roupa que esconda as cicatrizes

sair, o mesmo céu cinzento ameaça
dezembro, mas qualquer outro mês serve
os corajosos seguem entre caminhos perdidos
aperta-se o casaco, vestem-se as luvas
o último fôlego gelado da manhã

dezembro, mas qualquer outro mês serve
ainda sabes o que carregas, o que tens no bolso?


Blixa Bargeld waiting for the bus (Dandy)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

desAlinhados XI

XI
estremeço e este meu estremecer
é rio que corre seco de água,
é nau podre à deriva entre penhascos cinzentos
é pedra pisada sem nome de gente
é destino cumprido em lápide de mármore

estremeço e este meu estremecer
tem a forma de pássaro ferido,
gosto de sangue azedo
guarda-se na concha das mãos
de uma qualquer estátua esquecida de mármore

estremeço e este meu estremecer
é luz que se apaga
é porta que se fecha
é janela que se quebra
são sete palmos, gelados

"Virginie" - Einstürzende Neubauten

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

balada II

flores ordinárias no parapeito da janela
portas com tinta de cor esquecida
cortinas esfarrapadas esgueirando-se entre vidros partidos

a chuva que escorre entre paralelos imundos
linhas direitas, linhas tortas

mulheres de corpos desnudos em ruínas
de casas escancaradas,
o odor humano

a chuva inunda os pés dos aventureiros
o aço frio marca a têmpora gelada:
tens coragem

balada I

todo o oceano que me corre nas veias
todo o vento que sopra nos pulmões
todos os montes que se afundam na carne
todos os rios que correm nos cabelos
toda a escuridão que assola o peito
todo o silêncio guardado na garganta

todos os nomes, o teu nome, invisível

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Manifesto CXXXVII

se

a imagem reflectida não me é familiar: parto o espelho
as roupas caem largas ao longo de ossos e pele: rasgo as roupas
as roupas apertam a carne dolorosamente: tiro-as e esqueço-as
os sapatos apertam os dedos: faço-os voar janela fora
os cabelos não se alinham: arranco-os um a um
os dedos não obedecem: parto-os ruidosamente
as pernas não me obedecem: mergulho-as em água gelada
o coração teima, teima e teima, a mente insiste, insiste e insiste:
cuspo sangue, sal e suor, as lágrimas fizeram-se para serem esquecidas

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

desAlinhados X

X
[este ao menos será poupado]
não trará pesados sacos de viagem
desconhecerá a falta de água
e a fome será apenas palavra de dicionário

todos os órgãos estarão sempre perfeitamente alinhados
sem estremecimentos, sem entorpecimentos, sem aborrecimentos
falará das doenças que nunca sentiu
como se fossem sua criação

[este ao menos foi poupado]
habita num quarto de paredes infinitas
brancas
traça linhas com um lápis na janelas
transparentes

os outros, são pequenos pontos negros
que mudam, mudam e mudam de sítio
os rostos há muito que se esfumaram da sua memória
sim, este ao menos foi poupado
melhor que muitos, melhor que nada

José Moreira, fotografia de Raquel Mendes

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Manifesto CXXXVI

Silêncio

falas
do vento que bebes todas as manhas
das ondas que acariciam o teu corpo pelo entardecer
das andorinhas negras nos ninhos sobre o beiral da porta

falas
dos miúdos que correm pela estrada
dos dias que passam lentos e das horas que passam céleres
do sitio exacto onde nos iremos conhecer

eu deixo que fales
eu deixo que contes
e eu deixo que me deixes acreditar