«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

balada XXX



que venha daí um deus, que nos salve
[amém]
que exista esse ser, omnipotente
e sobre nós derrame a absolvição
[amén]
que exista, esse ser, esse senhor, esse deus
que se lembre de nós
que exista para nós
[amém]

e as histórias são apenas palavras
tecidas, formando mantas de arrependimento
e nós estamos sozinhos na noite
e nós continuamos sós no dia
e as orações são frases
que entoamos sem o seu sentido saber

e esse deus não existe
assim parece
e nós aqui tão abandonados
e nós somos o abismo que nos consome

e a loucura é o amigo que nos aconchega

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

notas para presente efémero

I
quantos serão os homens
necessários
para uma montanha mover

II
quantas são ainda
as montanhas
que o homem não soube ver

III
quantos são os mapas
pintados a gosto
do rei, cego

IV
quantos serão os degraus
que nos restam
até ao cume

V
quantos são os degraus
que já descemos
até ao nosso fim

VI
quantos serão os homens
que sabem
que afirmam

VII
quantos são os homens,
o número exacto,

que sabem da vida

segunda-feira, 23 de junho de 2014

estilhaço X

deixa que o tempo continue a cobrir
a memória do que fomos, a sombra do que somos
os olhos já não sabem o horizonte
quedaram-se noutras paragens
o vento que corre já não tem o sabor de outrora
ainda o sei sentir: é amargo, quando de ti esboça notícias

deixa que a terra seja bem pesada
sete, setenta palmos de terra
bem seca, bem molhada
não procures o instante, ele foi-se
como tu e eu já cá não estou

fomos o sonho que nunca soube existir
e hoje somos o pesadelo das noites frias

deixa morrer, deixa-nos morrer

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Balada XXIX

[balada para a mãe que tenho]

nunca me apercebi que
as flores brotassem por esta altura,
as flores do vaso que sempre disseste
que iria morrer cedo
nunca vi, talvez nunca as quisesse ver
da mesma forma que não vejo as rugas
que no teu rosto se acumulam
da mesma forma que minimizo
o cansaço de que falas
e obrigo que sejas
aquela menina nas fotografias de família
em aniversários, férias
a mãe de cabelo curto e ruivo

quando para ti olho
o que vejo é a mãe de uma menina
que brincava e sonhava com a vida que viria
não te quero ver assim
não te quero sentir assim
então engano-me a mim e a ti
já não vivemos nessas fotografias
já não existem os negativos
vejo me ao espelho, tal como sou
a envelhecer, a crescer
como nunca julguei que o faria
e vejo-te a ti como sempre

e para toda a eternidade que a vida me der

quinta-feira, 5 de junho de 2014

eatilhaço X

quis ser o chão do teu quarto
o lençol da tua cama
os retratos na tua parede

deitei-me debaixo dos teus pés
fiz da minha pele os restos do teu prato
prendi te os braços
agarrei-te os lábios
adocei-te a tua boca

esqueci-me que afinal tens asas
e a tua língua buscava outros lugares

fiz do meu corpo teu corpo
e agora relembro o que não tive

e sinto saudades do que não vivi

quinta-feira, 29 de maio de 2014

notas para esconjurados

I
a escolha vai se fazendo
de dias vazios, de noites frias
cabides vazios em armários

II
partimos os espelhos
riscamos os números
perdemos os mapas

III
deixamos de ficar
desistimos de partir
e de esquecer fizemos o verbo


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

quarta-feira, 30 de abril de 2014

estilhaço IX

olho para o meu rosto de relance
um olhar furtivo
o olhar derradeiro
sobre a pele, os olhos, as rugas
o tempo marcado a cinzel

procuro a água
que tudo faça desaparecer
a cura eficaz
para os males que se guardam
mas os remédios, esses foram criados

para que a nossa doença permaneça

terça-feira, 25 de março de 2014

estilhaço número VIII

carrego talvez o cansaço
destes poucos anos de existência
consigo ainda encontrar espaço
uma réstia de pele
onde marcar as ausências
um fio de cabelo a arrancar
uma lágrima perdida pronta a sair
um sorriso que se dá e não se sente

e vou seguindo
iludindo e iludindo-me

rostos, rostos, rostos, rostos, rostos, rostos, rostos
e rostos
abraços, abraços, abraços, abraços, abraços, abraços, abraços
e abraços


e no fim a solidão de estar entre a multidão

estilhaço número VII

os amigos
enumero-os um-a-um
dedos das mãos e siga para os pés

os amigos
seus abraços
suas palavras preciosas

os amigos
tão depressa os sei
tão depressa os perco

os amigos
tão rápido a chegar
e num ápice a partir

os amigos
encontram outros rostos
acolhem novos corpos

os amigos
sentem asco e fingem
odeiam e fecham

os amigos
tantos são

e tanta é a solidão

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

estilhaço número VI

os sonhos que se guardam
aqueles que fazem chorar
aqueles que nos deixam em claro
aqueles que deixamos cair
e aqueles que teimamos agarrar

as palavras que se aprendem
como são difíceis no primórdio
como se tornam fáceis no último sopro
como perdem o seu sentido
como ganham novos significados

e essa palavra
que vou apreendendo, dia após dia
escrevo-a com mão tremula
humedeço-a com o olhar
deixo que cresça nos gritos surdos

e estes dias cinzentos
que fogem e correm
de mim, sem mim
que se cumprem frios e solitários
entre sorrisos, verdadeiros e falsos
entre bom dia e até logo

este tempo que não me pertence
e que fora de mim

se ausenta do meu ser

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

estilhaço número V

Saberemos cada vez menos
O que é um ser humano.
Livro das previsões

que conheço eu
da imagem que me olha
quando conto as rugas
num qualquer espelho

as roupas que trago
escolhi-as eu
e agora são me largas
e outras são-me apertadas

já não sei quem vejo
quem procuro em gavetas
vazias de sonhos

os riscos que fiz
as palavras que disse
as palavras que por dizer
foram ficando esquecidas

os outros reconhecem-me
o meu corpo, o meu rosto
dizem o meu nome
e saúdam-me com um caloroso sorriso

que sou eu ainda
caminho em terrenos inóspitos
em vertigem sobre mim
os fios cortei-os há muito
e agora é deles que preciso

esta espiral aperta-se
ao menos que o ar teimasse em falhar
morrer não me custa

viver é que se torna doloroso

notas para viagem interminável

I
dizem que o tempo
não espera por mim,
por ninguém

II
toma as precauções
necessárias
não se sabe quando ela chega

III
mas essas folhas
ainda não
foram por mim viradas

IV
enganada
confio
que os dias não passam

V
iludida
acredito
que amanhã será diferente

VI
velocidade vertiginosa
passo
sem saber olhar, minto

VII
lá vai o pastor
com o seu escasso
rebanho, incomum

VIII
ajeito as costas
olho em frente
o horizonte quer-se distante

IX
o mesmo homem
à mesma hora
sem os mesmos sonhos

X
alguém que passa
saúdam-se
e o céu precipita-se em mim

XI
miúdo novo
de cajado na mão
mais um guardador de rebanhos

XII
de quando em vez
um acidente
um cadáver de um animal que ninguém quer

XIII
a linha termina aqui
posso respirar

e o tempo vai passando, para mim

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

estilhaço número IV

todas as tempestades
terminam em ti
guardadas no pequeno peito
que descobre golfadas de ar

todos os vendáveis
correm doces
entre as curvas involuntárias
dos teus dedos frágeis

e todos os nomes
escondem o teu em silêncio
e todos os sonhos
são agora tua pertença
e todos os medos
são agora tão pequenos, aos teus pés

um dia saberás ver
os pássaros que cruzam o céu
e deixarás que passem sem notar

um dia a chuva será
apenas água fria
que te gela o corpo

um dia o vento
trará
a memória dos que perdeste

um dia os teus sonhos
serão de outros,
e que tu sejas sempre tu

e o sorriso a ti pertença