XXXIV
entregue ao bolor que desenha nas paredes
figuras imperceptíveis
que me assaltam as horas
ouço a cidade que se estende fora dos altos muros
onde guardo o pouco que resta
os homens urinam nos cantos
entre alvenarias de casas abandonadas
procuram as putas nos becos
sossegados, empestados de dejetos de gatos
e satisfazem os seus desejos de carne
é noite, assim o diz
a luz pálida dos candeeiros
a chuva miudinha que cai sem parar
[os tolos, só os tolos se molham]
e os automóveis no seu regresso a casa
fogem os pássaros da surdez da cidade
em voos indecisos
até ao horizonte, sem meta
o ultimo cão roí um osso imundo
e tomba envenenado
o manto negro cobre a cidade
invade a janela do meu quarto, deixo
os vagabundos, as putas, os chulos, os mafiosos
ganharem o seu lugar em toda a casa
inundada com os seus odores pestilentos
nada sobrevive em mim
nada se vislumbra em mim
restam os renegados
uma côdea de pão para disfarçar
uma unha imunda
a última gota de água perdida no chão
«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Balada XXIII
um
fio de sangue escorria
pelo
interior das coxas
fio
fino esse, depois largo rio
pés
descalços pisavam
o
solo ainda húmido da noite passada
os
primeiros raios de luz
os
primeiros sons de vida
o
eterno frio colado ao corpo
parcas
roupas cobrindo a nudez
cabelos
desgrenhados colados à testa
comidos
com apetite voraz
acentuado
odor almiscarado
corria
louca pela estrada que desconhecia
pés
em ferida, pele suja
o
sangue corria, o fio engrandecia
marcava-se
o trilho dos seus passos ao acaso
mergulhou
num lago
tentativa
de se expurgar
e
aí ficou esquecida
domingo, 9 de dezembro de 2012
desAlinhado XXXII
com o tempo
o seu grosso escorrer pelas paredes
fui-me desfazendo
dos objectos inúteis que acumulei
em estantes, em baús
pelos cantos da sala
na penumbra dos corredores
ainda ouvi os seus ecos
roucos, as vozes geladas
penetrando a solidão da noite
um-a-um
dois-a-dois
todos se acumularam por fim na lixeira
regressei para uma casa vazia
e hoje colecciono as memórias dos outros
afogando a minha própria em quartos de hotel
o seu grosso escorrer pelas paredes
fui-me desfazendo
dos objectos inúteis que acumulei
em estantes, em baús
pelos cantos da sala
na penumbra dos corredores
ainda ouvi os seus ecos
roucos, as vozes geladas
penetrando a solidão da noite
um-a-um
dois-a-dois
todos se acumularam por fim na lixeira
regressei para uma casa vazia
e hoje colecciono as memórias dos outros
afogando a minha própria em quartos de hotel
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
notas para epílogo
I
aponta estrelas
uma a uma
sem medo
II
não é o céu cinzento
que tombará
ante os nossos pés
III
afaga o trigo
dourado
áspero na seara ondulante
IV
as entranhas da terra
não se abrirão de par em par
jamais
V
o aço frio
o tambor oleado
o beijo fatal
VI
e o dia nascerá amanhã
e depois, e depois
igual a todos
VII
é apenas um ser
um ser, mas é
humano, sem asas
aponta estrelas
uma a uma
sem medo
II
não é o céu cinzento
que tombará
ante os nossos pés
III
afaga o trigo
dourado
áspero na seara ondulante
IV
as entranhas da terra
não se abrirão de par em par
jamais
V
o aço frio
o tambor oleado
o beijo fatal
VI
e o dia nascerá amanhã
e depois, e depois
igual a todos
VII
é apenas um ser
um ser, mas é
humano, sem asas
domingo, 2 de dezembro de 2012
purgatorium XLI
Demora sempre tempo em exagero, tanto que chego a adormecer e a julgar que sonho, e talvez sonhe mesmo.
Do outro lado do oceano, num continente estranho, desconhecido por mim. O tempo? O tempo agora é outro, sou outra. O vento afaga as searas, o dourado enche-me os olhos, o pó faz-me chorar e há sol, um sol imenso que não queima, que não faz arder. Podem voar os abutres que quiserem, sobre a minha cabeça, pois sinto que o ar me enche os pulmões, o coração bate, calmo. Não, esta não será talvez a hora, a minha hora.
Acordo, ainda não chegou mas ouço-lhe os passos no corredor, adivinho-lhe o bafo gelado.
Preferia estar a dormir, sempre.
Do outro lado do oceano, num continente estranho, desconhecido por mim. O tempo? O tempo agora é outro, sou outra. O vento afaga as searas, o dourado enche-me os olhos, o pó faz-me chorar e há sol, um sol imenso que não queima, que não faz arder. Podem voar os abutres que quiserem, sobre a minha cabeça, pois sinto que o ar me enche os pulmões, o coração bate, calmo. Não, esta não será talvez a hora, a minha hora.
Acordo, ainda não chegou mas ouço-lhe os passos no corredor, adivinho-lhe o bafo gelado.
Preferia estar a dormir, sempre.
praesens V
[para o Marco Bettencourt]
e aqui estamos nósesfomeados, cansados
pele imunda, coberta de cicatrizes e pústulas
cobertos com roupa ainda mais imunda
sem ter horizonte que se vislumbre
entregues à escuridão que aperta o cerco
fomos o sonho alto esfumado em abismos
hoje somos os senhores do nada
à espera dos falecidos
e aqui estamos nós
e ninguém nos avisou
e não, não vai ser fácil
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