XXXIV
entregue ao bolor que desenha nas paredes
figuras imperceptíveis
que me assaltam as horas
ouço a cidade que se estende fora dos altos muros
onde guardo o pouco que resta
os homens urinam nos cantos
entre alvenarias de casas abandonadas
procuram as putas nos becos
sossegados, empestados de dejetos de gatos
e satisfazem os seus desejos de carne
é noite, assim o diz
a luz pálida dos candeeiros
a chuva miudinha que cai sem parar
[os tolos, só os tolos se molham]
e os automóveis no seu regresso a casa
fogem os pássaros da surdez da cidade
em voos indecisos
até ao horizonte, sem meta
o ultimo cão roí um osso imundo
e tomba envenenado
o manto negro cobre a cidade
invade a janela do meu quarto, deixo
os vagabundos, as putas, os chulos, os mafiosos
ganharem o seu lugar em toda a casa
inundada com os seus odores pestilentos
nada sobrevive em mim
nada se vislumbra em mim
restam os renegados
uma côdea de pão para disfarçar
uma unha imunda
a última gota de água perdida no chão
«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Balada XXIII
um
fio de sangue escorria
pelo
interior das coxas
fio
fino esse, depois largo rio
pés
descalços pisavam
o
solo ainda húmido da noite passada
os
primeiros raios de luz
os
primeiros sons de vida
o
eterno frio colado ao corpo
parcas
roupas cobrindo a nudez
cabelos
desgrenhados colados à testa
comidos
com apetite voraz
acentuado
odor almiscarado
corria
louca pela estrada que desconhecia
pés
em ferida, pele suja
o
sangue corria, o fio engrandecia
marcava-se
o trilho dos seus passos ao acaso
mergulhou
num lago
tentativa
de se expurgar
e
aí ficou esquecida
domingo, 9 de dezembro de 2012
desAlinhado XXXII
com o tempo
o seu grosso escorrer pelas paredes
fui-me desfazendo
dos objectos inúteis que acumulei
em estantes, em baús
pelos cantos da sala
na penumbra dos corredores
ainda ouvi os seus ecos
roucos, as vozes geladas
penetrando a solidão da noite
um-a-um
dois-a-dois
todos se acumularam por fim na lixeira
regressei para uma casa vazia
e hoje colecciono as memórias dos outros
afogando a minha própria em quartos de hotel
o seu grosso escorrer pelas paredes
fui-me desfazendo
dos objectos inúteis que acumulei
em estantes, em baús
pelos cantos da sala
na penumbra dos corredores
ainda ouvi os seus ecos
roucos, as vozes geladas
penetrando a solidão da noite
um-a-um
dois-a-dois
todos se acumularam por fim na lixeira
regressei para uma casa vazia
e hoje colecciono as memórias dos outros
afogando a minha própria em quartos de hotel
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
notas para epílogo
I
aponta estrelas
uma a uma
sem medo
II
não é o céu cinzento
que tombará
ante os nossos pés
III
afaga o trigo
dourado
áspero na seara ondulante
IV
as entranhas da terra
não se abrirão de par em par
jamais
V
o aço frio
o tambor oleado
o beijo fatal
VI
e o dia nascerá amanhã
e depois, e depois
igual a todos
VII
é apenas um ser
um ser, mas é
humano, sem asas
aponta estrelas
uma a uma
sem medo
II
não é o céu cinzento
que tombará
ante os nossos pés
III
afaga o trigo
dourado
áspero na seara ondulante
IV
as entranhas da terra
não se abrirão de par em par
jamais
V
o aço frio
o tambor oleado
o beijo fatal
VI
e o dia nascerá amanhã
e depois, e depois
igual a todos
VII
é apenas um ser
um ser, mas é
humano, sem asas
domingo, 2 de dezembro de 2012
purgatorium XLI
Demora sempre tempo em exagero, tanto que chego a adormecer e a julgar que sonho, e talvez sonhe mesmo.
Do outro lado do oceano, num continente estranho, desconhecido por mim. O tempo? O tempo agora é outro, sou outra. O vento afaga as searas, o dourado enche-me os olhos, o pó faz-me chorar e há sol, um sol imenso que não queima, que não faz arder. Podem voar os abutres que quiserem, sobre a minha cabeça, pois sinto que o ar me enche os pulmões, o coração bate, calmo. Não, esta não será talvez a hora, a minha hora.
Acordo, ainda não chegou mas ouço-lhe os passos no corredor, adivinho-lhe o bafo gelado.
Preferia estar a dormir, sempre.
Do outro lado do oceano, num continente estranho, desconhecido por mim. O tempo? O tempo agora é outro, sou outra. O vento afaga as searas, o dourado enche-me os olhos, o pó faz-me chorar e há sol, um sol imenso que não queima, que não faz arder. Podem voar os abutres que quiserem, sobre a minha cabeça, pois sinto que o ar me enche os pulmões, o coração bate, calmo. Não, esta não será talvez a hora, a minha hora.
Acordo, ainda não chegou mas ouço-lhe os passos no corredor, adivinho-lhe o bafo gelado.
Preferia estar a dormir, sempre.
praesens V
[para o Marco Bettencourt]
e aqui estamos nósesfomeados, cansados
pele imunda, coberta de cicatrizes e pústulas
cobertos com roupa ainda mais imunda
sem ter horizonte que se vislumbre
entregues à escuridão que aperta o cerco
fomos o sonho alto esfumado em abismos
hoje somos os senhores do nada
à espera dos falecidos
e aqui estamos nós
e ninguém nos avisou
e não, não vai ser fácil
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
esventrado XXVI
a tua cama
é o abismo onde gosto de me perder
os teus lençóis
carregam a sujidade que me viciam
o teu quarto
abriga os meus ossos partidos
oferta-me
o gelo do teu toque
o odor a alfazema dos teus lábios
o punhal que cravas na carne
que o veneno, o teu veneno
seja a última coisa que conheço
o teu quarto: frio, o teu quarto: vazio, o teu quarto: assombrado, o teu quarto: o vicio, o teu quarto: o fim
não importa a dor, tudo acaba em si
é o abismo onde gosto de me perder
os teus lençóis
carregam a sujidade que me viciam
o teu quarto
abriga os meus ossos partidos
oferta-me
o gelo do teu toque
o odor a alfazema dos teus lábios
o punhal que cravas na carne
que o veneno, o teu veneno
seja a última coisa que conheço
o teu quarto: frio, o teu quarto: vazio, o teu quarto: assombrado, o teu quarto: o vicio, o teu quarto: o fim
não importa a dor, tudo acaba em si
domingo, 25 de novembro de 2012
Balada XXII
sem
mais delongas
é
chegada a hora de me despedir
amigo
que te sentas comigo
nesta
mesa esquecida num canto qualquer
esvaziamos
as garrafas
enchemos
os copos
fumamos
todos os cigarros
medimos
o tempo
olhando
pela lupa
enquanto
riscávamos os dias em dobras na pele
lá
fora a noite
lá
fora o dia
em
nós as trevas
encerradas
no peito húmido
saturadas
de ar bafiento
lá
fora o dia
lá
fora a noite
em
nós o vazio
que
cresce dentro dos ossos
e
queima o que resta das entranhas
há
muito que fomos
há
muito que esquecemos o que somos
esqueletos
sorridentes, histórias de assombrar
despeço-me
de ti, querido amigo
sem
mais delongas
tu
que há muito não te sentas à minha mesa
que
há muito me ensinaste o sabor amargo da partida
e
que sei eu ainda
amanhã
alguém me virá buscar
mas
muito antes de o caixão sair do umbral da porta
talvez
tudo arda num ápice, talvez as paredes restem em pé
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
notas e só isso: notas
I
quantas valas
arrancadas ao ventre da terra
para conter toda a humanidade
II
quantas são ainda
as pedras que encerram
os homens que restam
III
fogo permanente
em falsas cruzes de pau
onde se assassinam os justos
IV
quantas palavras
quantas pedras
quanto tempo que nos resta
V
ventres vazios
vísceras no solo imundo
somos todos nados-mortos
quantas valas
arrancadas ao ventre da terra
para conter toda a humanidade
II
quantas são ainda
as pedras que encerram
os homens que restam
III
fogo permanente
em falsas cruzes de pau
onde se assassinam os justos
IV
quantas palavras
quantas pedras
quanto tempo que nos resta
V
ventres vazios
vísceras no solo imundo
somos todos nados-mortos
domingo, 18 de novembro de 2012
esventrado XXV
ensaio a frio como cortar os pulsos
sentada num frio banco de ferro
a cidade adormecida
pelo menos finge que não vê
e o tempo cola-se nas espaldas
curva as costas, desenha sulcos no rosto envelhecido
uma moeda perde-se aos meus pés
não sou, não estou
não me olhem:
sou trecho fosco absorvido
pelos vossos olhos apressados
há muito que abandonei o banco
onde ainda me julgam
onde ainda juram me ver
há muito que deixei de ser
a suja estátua de pedra
contudo os pássaros ainda pousam na minha mão
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
quinta-feira, 15 de novembro de 2012
esventrado XXIV
amanheceu em nós
a madrugada da vasta solidão
sobre corpos tombados
de pele arrepiada
de carne fria
de sangue inerte
o pesar do tempo líquido
que os afasta
de nada adianta jurar
que o mundo irá parar
que o céu não será um denso manto pendendo sobre nós
pois a escuridão caminha
lado-a-lado
a teu lado
a meu lado
e nós já aqui não estamos
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
domingo, 11 de novembro de 2012
esventrado XXIII
não ouço os meus pesados passos
sobre o chão
não sinto o peso do casaco
pendendo sobre os ombros
não vejo o meu reflexo cansado
no nevoeiro cinzento
e um manto de folhas amarelecidas
raspa o alcatrão
e um vaso com flores de plástico
é esquecido sobre o mármore imundo
cansaste-te de ler o meu o nome
deixaste-o preso em letras de bronze
sobre o chão
não sinto o peso do casaco
pendendo sobre os ombros
não vejo o meu reflexo cansado
no nevoeiro cinzento
e um manto de folhas amarelecidas
raspa o alcatrão
e um vaso com flores de plástico
é esquecido sobre o mármore imundo
cansaste-te de ler o meu o nome
deixaste-o preso em letras de bronze
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
purgatorium XXXIX
Desenham-se umas olheiras fundas debaixo dos meus olhos cansados. Uma tosse violenta acorda-me nas noites negras, abafa as corujas, abafa os lobos, abafa os ecos emaranhados na mente.
Aproxima-se o pesado inverno, ouço os seus passos moribundos, pressinto a sua respiração rouca do outro lado da janela. Aperto a gola do casaco, disfarço o medo.
Eu também já tive sonhos, mas isso foi em tempos, por agora esqueci-me.
Imagino o meu rosto do espelho: quem sou eu?
Porra, quem sou eu?
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
notas para fundo de mala
I
encontro uma caixa de fósforos
esquecida entre o forro da mala
e há tanto tempo que deixei de fumar
II
deito o corpo sobre a cama
vazio de ti, disforme
pele enrugada à espera
III
sinto o hálito doce
o teu corpo debruçado
perante a nudez arrepiada
IV
tardes frias de primavera
hotéis esquecidos
quartos imundos repletos de odores nauseabundos
V
grossos dedos, língua quente
molda-se a carne
pelos ossos que não lhe pertencem
VI
elevam-se montanhas de feno
afundam-se vales de sangue
mergulho no profundo de mim
VII
acendo um cigarro
prometo que será o último
não tarda encontro-te novamente
VIII
sim, não tarda encontro-te novamente
ou finjo que te encontro
no fim desta estrada
encontro uma caixa de fósforos
esquecida entre o forro da mala
e há tanto tempo que deixei de fumar
II
deito o corpo sobre a cama
vazio de ti, disforme
pele enrugada à espera
III
sinto o hálito doce
o teu corpo debruçado
perante a nudez arrepiada
IV
tardes frias de primavera
hotéis esquecidos
quartos imundos repletos de odores nauseabundos
V
grossos dedos, língua quente
molda-se a carne
pelos ossos que não lhe pertencem
VI
elevam-se montanhas de feno
afundam-se vales de sangue
mergulho no profundo de mim
VII
acendo um cigarro
prometo que será o último
não tarda encontro-te novamente
VIII
sim, não tarda encontro-te novamente
ou finjo que te encontro
no fim desta estrada
terça-feira, 6 de novembro de 2012
desAlinhado XXXIII
caminho sobre a noite
não a que já caiu sobre a cidade
mas a que a mim me assola
o frio instalou-se no espaço entre as costelas
entre a carne e os ossos
não agora, mas há muito tempo
restam-me
um rio poluído que desagua sem saber
as luzes de néon rosa de uma pensão
faróis amarelos de automóveis com rostos de estranhos
as vozes que vou calando em mim
procuro o mar que me inunda o olhar
alargo o nervo que me consome o corpo gasto
talvez amanheça em mim
outra vida, outra cidade, outro ser
que não se me consuma no peito
não a que já caiu sobre a cidade
mas a que a mim me assola
o frio instalou-se no espaço entre as costelas
entre a carne e os ossos
não agora, mas há muito tempo
restam-me
um rio poluído que desagua sem saber
as luzes de néon rosa de uma pensão
faróis amarelos de automóveis com rostos de estranhos
as vozes que vou calando em mim
procuro o mar que me inunda o olhar
alargo o nervo que me consome o corpo gasto
talvez amanheça em mim
outra vida, outra cidade, outro ser
que não se me consuma no peito
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Balada XXI
então, mandaram vir os médicos
mil médicos vieram e nada disseram
então, mandaram vir os físicos
mil físicos chegaram e rastos de nada encontraram
então, chegou a mensagem aos alquimistas
mil alquimistas morreram pelo caminho
as mulheres carpiam, soluçavam
no frio quarto adjacente ao seu
durante todo o tempo chovia
e o frio ganhava lugar no pele, na carne e por fim nos ossos
deixaram então de procurar
primeiro veio o silêncio da sua voz
os gemidos desapareceram debaixo do cantar da chuva
acenderam-se as lareiras
as mulheres cobriam o corpo com sujas mantas de lã
abafavam o rosto com negros véus
na solidão dos corredores:
o estalar da pele
o mirrar da carne
os ossos torcendo-se
rasgando músculo, deslaçando tendões
os lábios secos num sorriso moribundo
o sangue escorrendo lento pelo que resta do rosto
então a chuva parou
e os sinos tocaram
chamaram os coveiros
chamaram os padres
chamaram os bruxos
chamaram as beatas
todos foram chamados, mais de mil
pesadas pás ferrugentas
jogaram-lhe mais de mil pazadas de terra
uma a uma ouviu-as cair
um baque surdo sob as tábuas
depois terra sobre terra sobre pedras sobre terra
de olhos bem abertos abraçou a escuridão
afagou o fato preto de fazenda: esperava
o meu homem
cessou no passado
mil médicos vieram e nada disseram
então, mandaram vir os físicos
mil físicos chegaram e rastos de nada encontraram
então, chegou a mensagem aos alquimistas
mil alquimistas morreram pelo caminho
as mulheres carpiam, soluçavam
no frio quarto adjacente ao seu
durante todo o tempo chovia
e o frio ganhava lugar no pele, na carne e por fim nos ossos
deixaram então de procurar
primeiro veio o silêncio da sua voz
os gemidos desapareceram debaixo do cantar da chuva
acenderam-se as lareiras
as mulheres cobriam o corpo com sujas mantas de lã
abafavam o rosto com negros véus
na solidão dos corredores:
o estalar da pele
o mirrar da carne
os ossos torcendo-se
rasgando músculo, deslaçando tendões
os lábios secos num sorriso moribundo
o sangue escorrendo lento pelo que resta do rosto
então a chuva parou
e os sinos tocaram
chamaram os coveiros
chamaram os padres
chamaram os bruxos
chamaram as beatas
todos foram chamados, mais de mil
pesadas pás ferrugentas
jogaram-lhe mais de mil pazadas de terra
uma a uma ouviu-as cair
um baque surdo sob as tábuas
depois terra sobre terra sobre pedras sobre terra
de olhos bem abertos abraçou a escuridão
afagou o fato preto de fazenda: esperava
o meu homem
cessou no passado
terça-feira, 30 de outubro de 2012
purgatorium XXXVIII
Escrevo.
Escrevo porque nada
mais me resta no frio da noite solitária.
Escrevo, antes que
a minha carne seja pó, antes que a pele se suma.
Escrevo, pois nada
mais tenho a fazer do que esperar, do que ter coragem.
Escrevo e a lâmina
repousa na mesa diante de mim, inerte, ameaçadora.
E enquanto escrevo
esqueço-me de mim, deixo que a pele entre na carne, a carne desapareça nos ossos
e os ossos se partam nas mãos de um desconhecido.
Não acendam velas,
queimem apenas aquilo que eu escrevo.
Foto de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
notas para luxuria servida ao fim da tarde
I
dedos frios
dedos nervosos
dedos açucarados
II
lábios carnudos
lábios abertos
lábios expectantes
III
mãos ásperas
mãos em fuga
mãos que violam
IV
pele virgem
pele arrepiada
pele em chama
V
língua que embala
língua que desbrava
oceano que afoga
V
corpo tentado
corpo jogado
corpo violado
dedos frios
dedos nervosos
dedos açucarados
II
lábios carnudos
lábios abertos
lábios expectantes
III
mãos ásperas
mãos em fuga
mãos que violam
IV
pele virgem
pele arrepiada
pele em chama
V
língua que embala
língua que desbrava
oceano que afoga
V
corpo tentado
corpo jogado
corpo violado
Man Ray, The fantasies of Mr. Seabrook, 1930
domingo, 21 de outubro de 2012
notas para a desconhecida em mim
I
já não sei onde me levam
estes passos perdidos
por entre a cidade que me esquece, lentamente
II
fecho os olhos
perante o meu reflexo
nas montras sujas
III
se me encontrar
se me vir
nem sei se me reconheço
IV
o ar frio invade
a pele
aloja-se na carne
V
já houve sangue
nestas veias
vida neste peito
VI
caminho
sem destino
ao meu encontro
VII
repousa na mesa
o veneno
a lâmina afiada
já não sei onde me levam
estes passos perdidos
por entre a cidade que me esquece, lentamente
II
fecho os olhos
perante o meu reflexo
nas montras sujas
III
se me encontrar
se me vir
nem sei se me reconheço
IV
o ar frio invade
a pele
aloja-se na carne
V
já houve sangue
nestas veias
vida neste peito
VI
caminho
sem destino
ao meu encontro
VII
repousa na mesa
o veneno
a lâmina afiada
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
esventrado XXI
amaldiçoo o dia que nasce
enchendo o tempo de luz
tocando de leve no rosto dos mortais iludidos
trilho a noite entre abismos
profundos que me crescem no peito
ouço os ecos roucos dos mortos
ateio fogo ao corpo
que sempre viveu viciado
pelo calor do inferno que ergueu
vejo-me arder
vejo-me ser cinzas
vejo-me obrigada a viver tudo de novo
todo este céu azul
causa-me náuseas
e o vomito cresce incontrolável
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
balada XX
olhou
para ela de soslaio, pelo canto do olho
esvoaçava
em trapos negros
vulto
de formas imprecisas e odor quente
quis
oferecer-lhe uma mão
ainda
que desfalecida
ainda
que cravada de sulcos fundos
-não
preciso as asas chegam-me bem
ele
mexeu os lábios mostrando uma fileira de dentes amarelos
tornava-se
impossível respirar
olhou
de novo para ela enfrentando-a
desenhou
um futuro em linhas invisíveis
e
cravou-lhe o punhal com mestria entre os espaços das costelas
ainda
sentiu a lamina tocar-lhe no coração
[há
mortes que precisam ser ensaiadas]
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
terça-feira, 2 de outubro de 2012
esventrado XX
gostaria de ter sido mais
do que uma mulher deitada na tua cama
acorrentada pelo toque da tua pele
viciada no sabor acre da tua boca
amaldiçoada sob o teu corpo quente
poderia ter sido mais
do que um corpo nu à tua mercê
onde cidades ruíram, onde templos se ergueram
e todos os mares banharam a península de nossos corpos torcidos
poderíamos ter feito mais, muito mais
do que uma melodia gasta num velho gira discos
e um promessa esquecida no tempo
[os copos continuam vazios]
do que uma mulher deitada na tua cama
acorrentada pelo toque da tua pele
viciada no sabor acre da tua boca
amaldiçoada sob o teu corpo quente
poderia ter sido mais
do que um corpo nu à tua mercê
onde cidades ruíram, onde templos se ergueram
e todos os mares banharam a península de nossos corpos torcidos
poderíamos ter feito mais, muito mais
do que uma melodia gasta num velho gira discos
e um promessa esquecida no tempo
[os copos continuam vazios]
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
esventrado XIX
as mãos escondidas nos bolsos, inquietas
permiti-me invadir o teu espaço dissimulado
sem aviso, sem falar, sem nada esperar
assim como assim, como fomos de rompante
há uma mão que é a primeira a sair, a perder o medo
a conquistar a sua batalha
o toque da pele quente, o esfriar do pensamento na nuca
[por ti dobrei o tronco e toquei as profundezas húmidas]
quando a outra mão saiu impaciente, ávida
arqueei as costas, toquei o soalho frio do teu quarto
deixei que a pele fosse tua, como sempre o fora
entreguei-te a carne que devorarias sem pesar, sem pensar
fui o teu brinquedo
atirada vezes sem conta para os lençóis viciados da tua cama
fui a tua pedra bruta
que moldaste, fizeste e refizeste
de pernas abertas, de pernas fechadas
seios perdidos nas tuas mãos
lábios em orgia de carmim
corpo afogado pelo suor
lagos de sémen onde flores jazem
tardes sombrias estendendo-se pelo quarto, sobre nós
hoje, a tua mão assenta em cima da mesa, serena
acorrentada
e teus dedos já não se mostram impacientes enquanto o sono te invade
permiti-me invadir o teu espaço dissimulado
sem aviso, sem falar, sem nada esperar
assim como assim, como fomos de rompante
há uma mão que é a primeira a sair, a perder o medo
a conquistar a sua batalha
o toque da pele quente, o esfriar do pensamento na nuca
[por ti dobrei o tronco e toquei as profundezas húmidas]
quando a outra mão saiu impaciente, ávida
arqueei as costas, toquei o soalho frio do teu quarto
deixei que a pele fosse tua, como sempre o fora
entreguei-te a carne que devorarias sem pesar, sem pensar
fui o teu brinquedo
atirada vezes sem conta para os lençóis viciados da tua cama
fui a tua pedra bruta
que moldaste, fizeste e refizeste
de pernas abertas, de pernas fechadas
seios perdidos nas tuas mãos
lábios em orgia de carmim
corpo afogado pelo suor
lagos de sémen onde flores jazem
tardes sombrias estendendo-se pelo quarto, sobre nós
hoje, a tua mão assenta em cima da mesa, serena
acorrentada
e teus dedos já não se mostram impacientes enquanto o sono te invade
balada XIX
distantes
estão já os dias passados a fumar
de
pernas cruzadas no chão da sala
hoje
distraio o tempo contando as horas
na
nicotina que mancha de vida os dedos
fecho
os olhos e tudo se torna mais clarividente
os
papeis esquecem-se pela casa, amontoados
perdidos
entre mesas, prateleiras, soalho
a
maldição de carregar nas mão tinta que não se pode limpar
cheguei
aqui com o desejo de vos cumprimentar
saber
das vossas histórias, partilhar os vossos sorrisos
mas
deste ponto já nem encontro o caminho de regresso
e
a memória languida atraiçoa o pensamento mordaz
desaparecem
os corpos, as figuras
calam-se
as vozes, fecham-se as portas
a
realidade escancarada diante de olhos pálidos
a
solidão que toca no ombro enquanto se procura um cigarro perdido
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
notas para advertência fugaz
I
se por essa porta
entrarem
que os vossos olhos lhes sejam fieis
II
há muito mais aqui
do que aquilo que julgam sentir
do que o odor que vos provoca náusea
III
o ar já não circula aqui
o tempo perdeu-se na esquina da sala
as bocas coseram-se em desespero
IV
se a vossa teimosia em tudo superar, relembrem
estamos cada vez mais distantes do esquecimento
estamos muito mais do que mortos
Fotografia de Laura Alberto
notas para acidentes meticulosamente encetados
I
de tanto afiar
o fio da faca
perdi o medo sob o balcão da cozinha
II
o sangue que alastrava
impregnava os móveis
deixei que o odor se alastrasse
III
uma mão no bolso
a outra perdida
o sono viria por fim
IV
restava a marca
no livro de notas
como matar a cobardia?
balada XVIII
[o próximo texto poderá chocar algumas pessoas, pelas ideias pela linguagem, resta sempre a opção de não o ler]
como
destilar ódio
os
vossos sorrisos cravejados de dentes amarelos
as
vossas palmadinhas nas costas
os
vossos apertos de mão
os
vossos cumprimentos melodiosos
a
vossa urgência
as
vossas mensagens sem sentido
as
vossas frases feitas copiadas
os
vossos abraços
as
vossas esquecidas lembranças
as
vossas tragédias
os
vossos problemas sem solução
a
catástrofe das vossas vidas
as
vossas casas que vos abrigam
os
vossos deuses que vos protegem
as
vossas orações que não me salvam
os
vossos rostos enganadores
as
vossas máscaras gastas
fodam-se
todos vocês
Marcel Duchamp, Buenos Aires Chess pieces, 1918-19, Set of 36 wooden chess pieces
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