«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

crimes amorosos

VII
se pudesse, acordava sempre a teu lado enroscada na espiral da tua carne
mas a noite cercou os nossos corpos, fria, gelada
roubou-nos os derradeiros suspiros e deixou-nos cercados
pela mortalha que chega com a alvorada

se pudesse, fazia teu o meu sangue para que o dia fosse eterno
brilhando como corre uma criança em círculos sobre a calçada

se pudesse, mandava parar o tempo
e dormia, finalmente


MoonSpell - Alma Mater


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Polaroid 44

a mesa

descansa, agora que a noite cerra as suas pálpebras
sobre os nossos ossos exaustos, descansa
deixa o relógio contar os segundos, os minutos, as horas
e permanece aqui, agora, em silêncio, imóvel
mesmo que chegue o vento e arranque as raízes dos nossos dedos
descansa, enquanto cobrimos a luz com a sombra dos passos

regresso

queridos Amigos:
as ferias afastaram-me dos blogues, do meu e dos vossos. Afastaram-me da escrita.
Regressei, com o corpo coberto de pó, queimado do sol e cansada.
Porém, a mala está cheia de saudade e de letras, dispersas, que eu espero juntar.
Em breve, espero ser recbida na vossa casa, nos vossos blogues!
Abraço!

domingo, 7 de agosto de 2011

Duas estações

Naquele tempo, os dias longos iam começar a minguar, a prova viva de que a Terra se aproximava cada vez mais de encontro ao Sol. Sabia isso, por que a minha sombra alongava-se pelo alcatrão quente e eu observava as minhas pernas ganharem um, dois, três, quatro metros, naquele pedaço preto que me prendia as passadas.
Os mesmos caminhos tinham ganho uma tonalidade diferente, como se de repente, sem contar, todas as cores brilhassem e o seu brilho fosse tal que era impossível não reparar num pequeno pedaço de papel, jogado ao acaso, por um miúdo travesso, da janela do carro do seu pai.
Todas as portas, que sempre conheci fechadas a sete ou oito chaves, estavam abertas, de par em par. Adivinhava os corredores, as salas, as cozinhas das casas que já não libertavam o seu odor a mofo.
Nessas mesmas portas escancaradas, dispunham-se pessoas, com os seus rostos sorridentes. Falavam com o vizinho da frente, do lado, o amigo, o familiar. Contavam as histórias do ano que tinha passado, longo e frio, enquanto bebiam os, para si escassos, minutos de tempo que sabiam ainda possuir. Seguravam os cães, que ladravam numa língua estrangeira, no seu colo. Enchiam o olhar com a neta, que pulava no quarto de rua, da qual a porta era apenas uma fronteira ganha.
Os campos encheram-se de erva verde, milho, flores silvestres. Juro mesmo que me cortei numa silva da qual nunca tinha dado conta. Tinha o ar perdido o seu odor saturado e pássaros de todas as espécies e mais uma riscavam o céu azul sem nuvens.
Maria Milagre acenou-me da sua janela. Gritou-me um olá, o primeiro de sempre e único. Consegui ver o seu rosto: não tinha mais quase cem anos, tinha agora talvez, no máximo, uns vinte e dois anos.
Nesse instante, o alcatrão que pisava transformou-se em paralelo gasto. E o paralelo gasto que pisaria uns quilómetros à frente, transformou-se em terra batida.
Compreendi que um dia mais à frente, começaria a nova estação: a ausência.

bala número treze

não perguntes pelo dia de amanhã, quando sabes que o mesmo Sol irá nascer exactamente
como hoje, atrás das nuvens e como
espadas de aço as rasgará, sem pedir, sem hesitar, em silêncio

e assim, deixamos as marcas dos pés na areia, impiedosos pés que destroem
torres imaginárias onde guardamos os sonhos nocturnos, são
agora as aves que voam alto no azul e nele mergulham eternamente, resta-nos
o seu último canto

não digas da estrada que começa, no preciso sítio onde pousamos
as velhas malas que carregamos, onde deixamos
que o vento embale o pensamento em orlas de pecado

e amanhã, um mesmo dia nascerá

Oráculo da memória

Cada vez mais tenho dificuldade em adormecer calmamente. Cada vez mais acordo de madrugada e conto as horas que se tornam vagarosamente longas, até ao Sol beijar o rosto de todos aqueles que se cruzam nas praças das aldeias e das cidades.
Cada vez menos passo as horas a dormir. Cada vez menos passo as horas acordada. Talvez durma quando tenho os olhos abertos e desperte precisamente quando cerro as pálpebras.
Acordo.
Passaram-se 100 minutos? Ou passaram-se 100 anos?
Ao certo não sei dizer, talvez o tempo não se conte de forma correcta. Talvez um ano seja apenas um segundo e cem anos caibam na palma da mão de uma criança.
Enquanto esfregava as pálpebras que me cobrem os olhos, recordei a minha infância, num esgar. Todo o passado cabia numa folha de papel, amarrotada dentro de uma garrafa de vidro à deriva no alto-mar.
Cá fora, as pessoas vestiam as mesmas roupas, calçavam os mesmos sapatos e exibiam os mesmos sorrisos, disfarçando o desdém que nutriam pela pessoa que se sentava à sua frente no autocarro, ou que, a seu lado, se preparava para atravessar a rua.
Olhei-me, de alto a baixo, de baixo a alto. Reconheci cada milímetro de pele, identifiquei cada marca nas mãos. Não conseguia observar a minha face, mas com a ponta dos dedos adivinhei, uma-a-uma as linhas, as rugas que se poderiam contar desde que sai do ventre da minha mãe, até àquela precisa oscilação do pêndulo do relógio. Dessem-me um pincel e tinta, que saberia colocar no meu rosto, todas as manchas, com mestria, ordenadamente até a tela estar completa.
Apesar de tudo, passava invisível entre as pessoas sozinhas, ou quando caminhavam em grupos impostos. Nenhuma me fitou uma só vez. Nenhuma me via. Seus rostos eram esboços: contornos de olhos, de lábios, de narizes, de orelhas. As suas figuras pareciam estátuas envolvidas em fumo.
De repente, o lusco-fusco que me envolvia tornou-se cada vez mais definido. Entre sombras, fumo e contornos esbatidos apareciam-me rostos familiares.
Caminhava na cidade, cada uma das pessoas apressadas era uma memória, da família, dos amigos, dos conhecidos, dos desconhecidos. Cada um deles, que estava encerrado em baús criteriosamente esquecidos, tornava-se agora mais claro, até o seu brilho ser impossível de suportar pelos meus olhos.
Quando me preparava para acenar a um deles, compreendi que tinha acabado de acordar e naquele segundo, minuto, hora, dia, sei lá, estava decididamente atrasada.