«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 18 de março de 2013

notas para amanhã ou para o petiz

I
não se escolhe com certeza
a hora em que tudo
muda , abruptamente

II
contornam-se os dias
contam-se os passos
mas a chegada não se anuncia

III
medos crescem, sem cessar
semeiam abismos
no peito dorido

IV
mas uma manhã
um estalo violento
de quente lucidez

V
venham então os gigantes
com as maldições eternas
venham os sábios de mentes deturpadas

VI
venham os ventos
venham as tempestades
abra-se a terra em valas sombrias

VII
no orvalho da madrugada
aprenderemos
a reconhecer o nosso reflexo

VIII
no silêncio da noite
saberei sempre
ouvir a tua voz

IX
podes vir
sempre
e hoje sei disso

terça-feira, 12 de março de 2013

esventrado XXVIII


espreita do outro lado da janela
com dentes cariados e hálito pérfido
marca os segundos no vidro embaciado
deixando o riso escapar

fecho os olhos e vejo
cerro os dentes e falo

ah, maldito sejas tu
com tuas vestes brancas
com tua voz de candura
torcendo os ponteiros
ameaçando a carne que envelhece

cubro o corpo e tremo de frio
esqueço o tempo e as pragas cumprem-se

tira-me as medidas
compra-me um belo par de sapatos
tece-me o fato que sonhaste
prende os pregos nas tábuas lisas de pinho
pois sabes bem que daqui não me é possível sair

[no fundo todos estamos realmente frios]

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

terça-feira, 5 de março de 2013

Polaroid 55


Estrada nacional 105

alguém lhe tirou as medidas
altura, largura
ombros, pés
provável rosto desfeito, cicatrizes incontáveis

e naquele entroncamento
plantam-se flores de plástico
acendem-se velas todas as semanas
a recordação incessante do que se perdeu

amanhã ou depois
mando gravar o teu nome no passeio
mando apagar a borracha que marca o asfalto
amanhã ou depois: passo sem te ver

mas as flores continuam lá
as velas são substituídas
o tempo teima em não passar
pelo menos para ti