«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 28 de junho de 2012

desAlinhado XXIX



a mesma rua estreita de sempre
paralelos gastos, imundos
passeios longos onde pessoas não se cruzam

[para qualquer assunto ligue…]

mães indesejadas de cabelos platinados
fumam cigarros sem marca
enquanto os filhos adormecem nos carros empurrados pelos pais, possíveis

[trespassa-se para o mesmo ou para outro ramo]

pele escurecida pelo amargo do tempo
barrigas flácidas exibindo estrias
pinturas foleiras sobre rostos pesados, sorrisos escancarados

[aqui podia morar uma família]

número 264, ou outro número qualquer
procuro o meu reflexo num qualquer olhar parado
já nem sei de cor o meu numero, o meu tipo sanguíneo

[barreira de tijolos em umbrais sem porta
sujidade, teias de aranha, as marcas de que o tempo escorre para todos]

já fui um esboço a carvão no teu bloco de desenhos
casas escuras, varandas em queda abrupta
vasos de terra queimada, ervas torcidas ressequidas

[para qualquer assunto dirija-se ao número…]

rua mártires da liberdade
aposentados sem carne nos braços, pele pálida desgarrada dos ossos
tronco oculto por velhas camisolas brancas onde o sujo é cor

e eu já fui um nome, um suspiro preso na tua boca
rua mártires da liberdade, os mártires aqui somos nós
o calor infernal é substituído por uma aragem marítima

e eu já fui a pedra da tua escultura
lâminas frias oriundas de longe
264 ou outro número qualquer, esqueci-me

quarta-feira, 27 de junho de 2012

bala número dezassete

não, não precisas de dizer que me amas enquanto tiras a roupa que espalhas pelo quarto
não, não precisas de dizer que me amas enquanto me jogas nos teus lençóis imundos
não, não precisas de dizer que me amas enquanto roubas o sabor da minha pele
não, não precisas de dizer que me amas enquanto te afogas na minha carne
não, não precisas de dizer que me amas enquanto esterilizas o meu desejo 


 e meu corpo é o teu templo sagrado

 

terça-feira, 26 de junho de 2012

Polaroid 54

fêmea 


talvez traga a noite encarcerada no peito,
os pesadelos emaranhados no cabelo
e o vento tenha deixado cicatrizes na pele


mas hoje prometo-te que não beberei
desse meu veneno moroso,
visto o vestido de seda que me ofertaste
disfarço as olheiras, alinho os cabelos
embebedo o corpo de perfume
encho o copo e espero te


talvez esteja condenada
a dias sombrios, gelados e densos,
as trevas como companhia única


quando chegares serei carne, a tua carne
seremos carne arrefecida pela espera
feridas secas que ardem debaixo do teu corpo em chamas


[trespassa-me com a língua, viola as pétalas que existem em mim
canso-me com facilidade de ser um trapo de cor]


 

desAlinhado XXVII



a cidade adormeceu por fim
ruas vazias, ecos dobrando as esquinas
os detritos do dia, o lixo do tempo roído

uma luz doentia cobre a calçada
e os que nela dormem,
veste-nos a pele de amarelo
a doença é um engano mascarado

esvaziam-se os corpos, almas sem destino
fecho das pálpebras, ouvidos encurralados
pele fresca repousando sobre os lençóis

serenos, todos dormem
que faço eu aqui?
com um livro que não sei ler
amaldiçoada pelo teu corpo que não sei se conheço

Fotografia de Ed Van der Elsken ‘Love on the Left Bank’ 1954

quinta-feira, 21 de junho de 2012

esventrado XVI

não escolhi roupa alguma com que cobrir o corpo
afinal esta minha pele transpira
ávida pelas tuas mãos rudes


bebi todo o teu vinho
fumei todos os teus cigarros
droguei-me com todos os comprimidos que guardavas


espero-te num qualquer quarto
carne quente em combustão
suores frios sobre a espinha
imagino, ensaio uma e outra vez
dedos na boca seca, dedos no ventre arrepiado
uma e outra vez 
as pernas abertas, viciadas em ti


 

terça-feira, 19 de junho de 2012

desAlinhado XXVI



hoje há alguém
que sobe, que desce pelas ruas
atrasado, adiantado, sem destino
apressado, cansado, para uns braços abertos

hoje há alguém
que chega a casa, que parte de casa
que se esquece, que quer esquecer
que foi esquecido, que foi recordado

hoje há alguém
que encontra um olhar onde se perder
que descobre um corpo a proteger
que revolve a terra do seu tumulo

hoje há alguém
que repete os mesmos minutos, as mesmas horas
a passada decorada sobre a cidade adormecida

hoje há alguém
que dorme tranquilo

e eu aqui, à espera
e a palavra que teima em não sair

Polaroid 53



devoluto

a última chávena repousa no lava-louça
no fundo um circulo desenhado pelo café
pelo balcão sobejam pedaços do que fomos

nem as formigas se alimentam das migalhas secas
nem os armários abrigam as traças

um último olhar ao longo das paredes esquecidas
o último sentir do frio do balcão de mármore
a réstia da lembrança das manhas perfumadas de verão

quem vier que pinte as paredes, forre as gavetas, encha os armários
quem vier que conte as histórias que lhe ocorram
quem vier que trate do nosso enterro

[estivemos sempre afastados, vivemos sempre sozinhos]

segunda-feira, 18 de junho de 2012

notas para epigrafe funerária



I
os outros morrem
saberás ao menos o seu nome
ou vais carpir um desconhecido?

II
os outros morrem
o sinal da cruz, abençoados
deixá-los ir em paz

III
os outros morrem
dê-lhes alguém o céu
que descansem em paz

IV
os outros morrem
e tu finges que choras
e tu finges que sabes

V
os outros morrem
e tu pensas,
ainda bem que não fui eu

VI
os outros morrem
e tu como eles
um dia vais morrer
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

purgatorium XXXI



E agora? O resto da folha horrivelmente branca e a tinta assustadoramente negra. Nenhuma voz ganha corpo suficiente para deixar o seu trilho, nenhum corpo me chega para assentar a alma.
E agora? Deixar que o abismo aumente violento debaixo das minhas passadas, ou fingir que finjo, que acredito que sei voar.
E agora? A verdade escrita diante de mim. Moldada. Berrada. E os ouvidos surdos de dor.
E agora? No fundo, o denso rio imóvel. No passado a promessa, mas também ninguém a ouvi outrora, ninguém a saberá no futuro.
E agora? Só me resta conseguir saltar.
Estas pausas, esta inércia: este tudo ou nada? Nenhuma imagem é digna dos meus olhos. Pausa.

balada XVII



talvez sejamos os que caminham
de olhos bem arregalados
com orelhas afinadas,
de braços erguidos no alto
e de punhos fechados

talvez sejamos os que caminham
na noite e fingem ser dia,
os que desconhecem as cores do amanhecer
de cansados que estão da escuridão

talvez sejamos aqueles
de olhos raiados de sangue
com ossos quebrados
e pele coberta de nódoas negras

talvez sejamos os que tentam calar
e morrem a estrebuchar

talvez sejamos os ninguém
sem número, sem lapide

 Fotografia de Laura Alberto

esventrado XVI



talvez resista
ao vento cortando as suas arestas
e nem a humidade encontrará onde deixar o seu testemunho

talvez permaneça
intocável, inabalável
cortando o céu azul triunfante

talvez seja imortal
atravessando o tempo, comandando as estações
e de nós nem uma ínfima lembrança

[e não é isto que querias? uma casa:
pedra sobre pedra sobre pedra
sobre nós]

Fotografia de Laura Alberto

quinta-feira, 14 de junho de 2012

notas para corpo sobre a mesa


I
célere
lamber os ponteiros do relógio
balancear a imagem pelo canto do olho

II
ânsia de moldar a carne
desejo de provar o sabor
das palavras proibidas escondidas aos soluços

III
o segredo que se guarda
entre pernas semiabertas,
afogar a moralidade recortada no horizonte

IV
enganar
a espera
e desesperar

V
talvez seja a puta
que te espera
na penumbra da tua mente
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

desAlinhado XXV

dispo pele onde fui cárcere
vejo-a enrugada no chão do quarto
um reflexo ténue de carne, músculos, tendões, artérias, veias


imagino um novo corpo
traços confusos sobre a parede branca
tingida de sangue


construo a nova figura
similar à que sonhei nas noites sem sono
a pele é a mesma, o fim um dialogo solitário


 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

purgatorium XXX

Desconheço como abrandar a velocidade do veiculo onde me desloco. Não sei como ordenar aos meus pés uma marcha lenta, parada.
Passo pelas estradas, ruas e caminhos cruzados. Por subidas e descidas, muito acima do nível médio das águas dos mares, muito abaixo da linha do céu azul.
Mistura de cores informe, contornos esbatidos ao sabor da passagem.
Tento distinguir as pessoas, os seus rostos, adivinhar-lhes os dedos das mãos, moldar a forma dos seus corpos. Tudo me surge como pequenas figuras numa maquete universal.
Pressinto o seu odor, descubro os desejos escondidos, profano as suas vidas. Quero brincar de imortal neste jogo de peões onde me desoriento, e afinal sou eu a figura incolor.
Fotografia de Laura Alberto

domingo, 10 de junho de 2012

esventrado XV

[de nada]
pesados passos que baptizam o ar
com a mensagem sem destinatário
[de pouco]
a salvação no salto cego
sobre o abismo crescente
[de mediano]
braços oscilantes
rasgando ondas de mar gélido
[de tudo]
de olhos fechados, braços bem abertos
acreditar que se sabe voar

 

notas para remorso em cima da mesa

I
como pedras suspensas sobre a cabeça
sustentadas por fios invisíveis
emaranhados na garganta
II
a boca seca
o palato arranhado
a face deformada


III
caminho de pedras aguçadas
farol cego
sirene abafada, aquém, incorruptível


IV
sabor obliterado de veneno
olhos vazados
e um martelo com que partir os ossos


 

terça-feira, 5 de junho de 2012

notas para assustar fantasmas

I
sabei vós que o relógio não espera:
arregalai os olhos
e vede o tempo que escorre pela boca

II
podeis procurar a chave misteriosa
nos anais da história
mas essa porta há muito que está encerrada 

III
e de nada vos adianta ranger os dentes
procurar o sangue que apodreceu nas entranhas
a vossa imagem é tumulto em lápides sem nome

IV
está na hora de fingir,
fingir que se dorme
de olhos escancarados de temor

 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

esventrado XIV

por hoje é tudo
já não consigo apanhar os bocado de mim
espalhados pelas mãos viciadas
encontrarei outras brasas, outros dedos
que me dêem forma


por hoje é tudo
o meu olhar reflecte o vazio do ar
onde caminho sozinha no tempo que resta
agora que está vazio o frasco dos analgésicos 


por hoje é tudo
aperto a gola do roupão contra o pescoço
num pesadelo real: o que não se consegue assassinar


é tudo por hoje

domingo, 3 de junho de 2012

notas para um breve verão

I
o suor escorre pela testa
a alcatifa áspera provoca comichão no meu corpo
o formigueiro de um fogo que não se esquece

II
os rios têm um fim próximo
onde não encontro o meu lugar
e a distância cresce com violência debaixo dos meu olhar

III
as luzes mantêm-se apagadas
não vá o quarto ser invadido
se o tempo parou, os gritos esses continuam eternos

IV
a janela aberta, as cortinas em rebuliço
o ar abafado a criar as suas raízes
debaixo de nós estamos todos moribundos

[para a Joelma Bittencourt]

 

notas para isolamento

“As ruínas são perigosas, …, debaixo delas algo ainda se mexe.” Gonçalo M. Tavares

I
se acreditar nas vozes
se realmente as vozes existirem
então devo preparar as vestes finais

II
ruídos abafados que rodeiam o cérebro
martelo pneumático
que teima em visitas nocturnas

III
rastejo pela lâmina afiada
da tua língua bífida
a fundura do silêncio penetra nas entranhas desesperadas

IV
querer ou não querer
o barulho oculto de verme
rastejando ao longo das paredes

V
não querer ou querer
quedas abafadas sobre o chão
de novo se erguem os vermes viciados 

VI
lábios arqueados:
dentes e enxofre no hálito 
e estes silêncios que não se calam 

VII
a continuidade da ruína 
estendida diante dos pés
procuro a salvação na surdez

 

purgatorium XXIX

O fresco da tarde chega por fim e arrefece-me o corpo febril. Ainda sinto a dor na carne rubra sob a lembrança da língua em brasa.
Lânguida, ordeno aos meus dedos que oscilem entre raios de luz, raios de escuridão: linhas a direito no ar da sala. A inércia do silêncio invade-me os tímpanos.
Tanta estrada, tantos quilómetros: sem memória, sem lembranças.
Pouso os membros, sinal de cansaço: estar aqui ou não estar é igual. Ficar ou partir? Ainda assim nenhum sopro de vento lembrará o meu nome.