«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

notas para advertência fugaz


I
se por essa porta
entrarem
que os vossos olhos lhes sejam fieis

II
há muito mais aqui
do que aquilo que julgam sentir
do que o odor que vos provoca náusea

III
o ar já não circula aqui
o tempo perdeu-se na esquina da sala
as bocas coseram-se em desespero

IV
se a vossa teimosia em tudo superar, relembrem
estamos cada vez mais distantes do esquecimento
estamos muito mais do que mortos

Fotografia de Laura Alberto

notas para acidentes meticulosamente encetados


I
de tanto afiar
o fio da faca
perdi o medo sob o balcão da cozinha

II
o sangue que alastrava
impregnava os móveis
deixei que o odor se alastrasse

III
uma mão no bolso
a outra perdida
o sono viria por fim

IV
restava a marca
no livro de notas
como matar a cobardia?

balada XVIII

[o próximo texto poderá chocar algumas pessoas, pelas ideias pela linguagem, resta sempre a opção de não o ler]


como destilar ódio

os vossos sorrisos cravejados de dentes amarelos
as vossas palmadinhas nas costas
os vossos apertos de mão
os vossos cumprimentos melodiosos
a vossa urgência
as vossas mensagens sem sentido
as vossas frases feitas copiadas
os vossos abraços
as vossas esquecidas lembranças
as vossas tragédias
os vossos problemas sem solução
a catástrofe das vossas vidas
as vossas casas que vos abrigam
os vossos deuses que vos protegem
as vossas orações que não me salvam
os vossos rostos enganadores
as vossas máscaras gastas

fodam-se todos vocês

Marcel DuchampBuenos Aires Chess pieces, 1918-19, Set of 36 wooden chess pieces 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

desAlinhados XXXII

venho aqui
com o toque dos teus dedos na minha pele
a lembrança dos teus lábios no meu corpo
e a carne talhada pela tua navalha cruel

sou aquela
que empurras contra a parede fria, nua
que jogas sobre os lençóis infectos
que embate violenta no chão do teu quarto

só mais uma vez
abro as pernas sem pudor
consentindo ser tua meretriz
e tu percorres as estradas esquecidas, as tuas estradas
em carne viva, sangrando por ti

sonhamos uma vez
enquanto aprendíamos a dizer adeus

 

purgatorium XXXV


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

Talvez do outro lado existam sorrisos, gargalhadas e gritos de crianças. Talvez elas corram em estradas de terra batida, com as faces sujas de pó. Quando caem levantam-se e continuam a correr com os seus arcos de metal envelhecido.
Talvez exista um pacífico oceano de águas azuis onde se mergulha sem medo, sem frio, onde se sabe nadar mesmo sem ter aprendido a tal.
Talvez do outro lado exista algo, mas quando saio dou por mim numa estrada que se fecha em círculo.



terça-feira, 11 de setembro de 2012

bala número dezanove

a madeira das escadas que range sem que ninguém a pise. as portas que se abrem, portas que batem ruidosas, ainda que não vislumbre ninguém. o vento gelado correndo com promessas assassinas. as cortinas que se reviram, em vão.
os passos mudos no piso inferior, passos perdidos no piso superior. ninguém virá, é tarde ou cedo demais.
a coruja liberta o canto piedoso, lobos uivam em desespero.
debaixo das cobertas tudo está bem.
para quem se guarda o juízo final?

e um pequeno coração teimando em bater.

 

notas para crentes embusteados

I
nem os vossos pensos
rápidos de plástico
cobrem os lanhos infestados que tentam ignorar

II
a rapidez com que
galgam as valetas
não escondem os cadáveres que nela se amontoam

III
as missas que rezam
os cânticos que entoam
não vos salvam nunca

IV
não serei
uma flor de plástico
uma pedra envelhecida


V
dorme, dorme meu menino
amanhã continuarás
a dormir

VI
vale mais
uma mentira na mão
e um lugar divino no peito, não?