«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 30 de outubro de 2012

purgatorium XXXVIII

Escrevo.
Escrevo porque nada mais me resta no frio da noite solitária.
Escrevo, antes que a minha carne seja pó, antes que a pele se suma.
Escrevo, pois nada mais tenho a fazer do que esperar, do que ter coragem.
Escrevo e a lâmina repousa na mesa diante de mim, inerte, ameaçadora.
E enquanto escrevo esqueço-me de mim, deixo que a pele entre na carne, a carne desapareça nos ossos e os ossos se partam nas mãos de um desconhecido.
Não acendam velas, queimem apenas aquilo que eu escrevo.

Foto de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

notas para luxuria servida ao fim da tarde

I
dedos frios
dedos nervosos
dedos açucarados

II
lábios carnudos
lábios abertos
lábios expectantes

III
mãos ásperas
mãos em fuga
mãos que violam

IV
pele virgem
pele arrepiada
pele em chama

V
língua que embala
língua que desbrava
oceano que afoga

V
corpo tentado
corpo jogado
corpo violado
Man Ray, The fantasies of Mr. Seabrook, 1930

domingo, 21 de outubro de 2012

notas para a desconhecida em mim

I
já não sei onde me levam
estes passos perdidos
por entre a cidade que me esquece, lentamente

II 
fecho os olhos
perante o meu reflexo
nas montras sujas

III
se me encontrar
se me vir
nem sei se me reconheço

IV
o ar frio invade
a pele
aloja-se na carne

V
já houve sangue
nestas veias
vida neste peito

VI
caminho
sem destino
ao meu encontro

VII
repousa na mesa
o veneno
a lâmina afiada

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

esventrado XXI


amaldiçoo o dia que nasce
enchendo o tempo de luz
tocando de leve no rosto dos mortais iludidos

trilho a noite entre abismos
profundos que me crescem no peito
ouço os ecos roucos dos mortos

ateio fogo ao corpo
que sempre viveu viciado
pelo calor do inferno que ergueu

vejo-me arder
vejo-me ser cinzas
vejo-me obrigada a viver tudo de novo

todo este céu azul
causa-me náuseas
e o vomito cresce incontrolável

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

balada XX


olhou para ela de soslaio, pelo canto do olho
esvoaçava em trapos negros
vulto de formas imprecisas e odor quente

quis oferecer-lhe uma mão
ainda que desfalecida
ainda que cravada de sulcos fundos

-não preciso as asas chegam-me bem
ele mexeu os lábios mostrando uma fileira de dentes amarelos
tornava-se impossível respirar

olhou de novo para ela enfrentando-a
desenhou um futuro em linhas invisíveis
e cravou-lhe o punhal com mestria entre os espaços das costelas
ainda sentiu a lamina tocar-lhe no coração
[há mortes que precisam ser ensaiadas]

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

terça-feira, 2 de outubro de 2012

esventrado XX

gostaria de ter sido mais
do que uma mulher deitada na tua cama
acorrentada pelo toque da tua pele
viciada no sabor acre da tua boca
amaldiçoada sob o teu corpo quente

poderia ter sido mais
do que um corpo nu à tua mercê
onde cidades ruíram, onde templos se ergueram
e todos os mares banharam a península de nossos corpos torcidos

poderíamos ter feito mais, muito mais
do que uma melodia gasta num velho gira discos
e um promessa esquecida no tempo
[os copos continuam vazios]
 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

esventrado XIX

as mãos escondidas nos bolsos, inquietas
permiti-me invadir o teu espaço dissimulado
sem aviso, sem falar, sem nada esperar
assim como assim, como fomos de rompante

há uma mão que é a primeira a sair, a perder o medo
a conquistar a sua batalha
o toque da pele quente, o esfriar do pensamento na nuca
[por ti dobrei o tronco e toquei as profundezas húmidas]

quando a outra mão saiu impaciente, ávida
arqueei as costas, toquei o soalho frio do teu quarto
deixei que a pele fosse tua, como sempre o fora
entreguei-te a carne que devorarias sem pesar, sem pensar
fui o teu brinquedo
atirada vezes sem conta para os lençóis viciados da tua cama
fui a tua pedra bruta
que moldaste, fizeste e refizeste
de pernas abertas, de pernas fechadas
seios perdidos nas tuas mãos
lábios em orgia de carmim
corpo afogado pelo suor
lagos de sémen onde flores jazem
tardes sombrias estendendo-se pelo quarto, sobre nós

hoje, a tua mão assenta em cima da mesa, serena
acorrentada
e teus dedos já não se mostram impacientes enquanto o sono te invade
 

balada XIX


distantes estão já os dias passados a fumar
de pernas cruzadas no chão da sala
hoje distraio o tempo contando as horas
na nicotina que mancha de vida os dedos

fecho os olhos e tudo se torna mais clarividente
os papeis esquecem-se pela casa, amontoados
perdidos entre mesas, prateleiras, soalho
a maldição de carregar nas mão tinta que não se pode limpar

cheguei aqui com o desejo de vos cumprimentar
saber das vossas histórias, partilhar os vossos sorrisos
mas deste ponto já nem encontro o caminho de regresso
e a memória languida atraiçoa o pensamento mordaz

desaparecem os corpos, as figuras
calam-se as vozes, fecham-se as portas
a realidade escancarada diante de olhos pálidos
a solidão que toca no ombro enquanto se procura um cigarro perdido

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/