«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 28 de maio de 2012

notas para homicídio improvável

I
observo-te pelo canto do olho
imóvel
de pernas dobradas contra o peito


II
as engrenagens bem oleadas
o silêncio do tambor
o pano religiosamente pousado


III um tremor, um temor
o sinal da cruz
por ti são todos os santos enterrados


IV
vento
temporal
sepulcro 


V
ofereço-te o corpo
que te ensinou a fúria dos mares
aqueço o ventre onde anseias mergulhar
VI
rápido, rápido
não vá a lua
tombar

domingo, 27 de maio de 2012

Polaroid 52

Cárcere


[não precisas de procurar a chave]
sou
a carne que pesas nos teus braços
a pele que despes antes de dormir
o suor que escorre pelo teu peito


[não precisas de guardar segredo]
sou a voz que geme ao teu ouvido
a língua que faz arder as tuas cicatrizes
a boca que te sorve sem pensar


[não precisas de fingir]
sou o animal que sonhas,
de pernas abertas à tua espera, domar
a poça no chão do teu quarto

 

bala número dezasseis

escolho a melhor roupa, guardo algum dinheiro num velho envelope escondido atrás de um armário.
escrevo uma carta, escrevo varias cartas, ensaio uma despedida, formalizo um adeus.
entre riscos e rabiscos, entre fotografias velhas, fotografias rasgadas, fotografias que nunca foram tiradas, caminho de pés descalços.
esqueci o tempo, mas há muito que ele de mim se esqueceu.
desconheço a ordem das estações mas sei que lá fora é chuva que cai.
bebo um gole de água para disfarçar a secura que se instalou na minha boca, sussurro o teu nome

e esqueço-te com a cor das chamas

notas tácteis para poema de possível amor


I
lavo a pele com água a escaldar,
preparo o terreno
onde os vermes farão pousio

II
procuro as vestes perfumadas
com que ornamentarei o corpo,
mapa de urgências mudas

III
corto pedra, faço um trilho
abismo fundo
de nossos corpos descartáveis

IV
cerro os olhos, busco agulhas
se não enxergar,
o amanhã nunca chegará


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

purgatorium XXVIII

Seria capaz de pegar numa mala enchê-la com roupa, ainda que velha e desbotada, ainda que larga.
Seria capaz de pagar um bilhete sem destino, sem regresso.
Seria capaz de sair, de fechar a porta e esquecer o meu nome, o teu nome.
Seria capaz de seguir para qualquer lado que não este, sentir algo que não isto.
Seria capaz de recomeçar e seria capaz de ser tudo igual de novo e de novo até ao cansaço.
 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

balada XVI

todos os dias contam-se:
números, pessoas, casas, os minutos que restam
todos os dias arrumam-se:
livros, folhas, velhos bilhetes
todos os dias esquecem-se:
datas, números, dias, anos
todos os dias lembram-se:
locais, números, pessoas, instantes
todos os dias escolhem-se:
nomes, estátuas, lápides

todos os dias, todos os dias
os dias todos, esquecidos:
não te preocupes, eu estou bem

 

purgatorium XXVII


Os pensamentos surgem-me em catadupa, atropelam as linhas tortas do tempo imóvel e acumulam-se na mente. Comprimem os ossos do crânio do lado de dentro.
Uma dor aguda que cresce sem parar sobre a linha das sobrancelhas. Franzo-as. Fecho os olhos.
Sinto que vai chover em breve. Antevejo pesadas gotas de água fria ensopando-me os ossos. E a dor, permanece lá.
Abro os olhos para um céu vermelho, colunas de ar abafado entre o céu e a terra.
A cegueira dos dias quentes chegou. A lucidez da solidão continua.


segunda-feira, 21 de maio de 2012

notas para possível poema de amor táctil


I
agarro uma a uma as frutas esquecidas sobre a mesa
mordo a sua pele dura, encontro a carne mole
o seu suco escorre-me pela boca

II
irrequieta, a língua acaricia o céu da boca
lábios abertos
à procura dos dedos de açúcar

III
olhos cerrados, mãos despertas
pele contra pele
pernas que se abrem sorrateiras
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

domingo, 20 de maio de 2012

Polaroid 51


Rented room

passava os dedos pelo teu corpo
unia os sinais que te cobriam a pele,
que fazes? ria-me sempre das tuas perguntas:
descubro uma nova estrada, furto um avião

encaixava o calcanhar na tua clavícula
a outra perna pendia da cama, à sorte
sentia os teus dedos cravarem-se nas costelas:
mostra-me o mar de onde irás partir

os sinais no teu corpo aumentavam
as tuas cicatrizes eram gigantes ofuscando o olhar
infinita tempestade que em mim encontrava sossego
e a perna a balançar na sua sorte
Fotografia de Man Ray, 1928

purgatorium XXVI

Uma cortina desce pesarosamente, tingindo o meu olhar com a sua cor: cor de sangue, cor de sonhos abatidos um a um, cor de lágrimas secas dentro dos olhos, cor dos abortos do tempo, cor do dia que se acerca da porta.
É inútil ignorar e fugir seria uma atitude mentecapta. O amanhã foi minuciosamente traçado ao longo de todos os dias que o antecederam. Cada passo foi sempre dado para alcançar o dia de amanhã. Que sei eu ainda? E fugir? Fugir para onde?
Há uma bala guardada, algures, com o meu nome gravado.
 

esventrado XIII

não, não fales
de viagens sem destino nas costas das tuas mãos
de mergulhos doces na areia debaixo dos nossos pés

não, não fales
em abrir o tempo e beber o azul do céu
em esticar os braços, aprender a voar

não, não fales
todas as mansões serão muito em breve
ruínas desfeitas entregues ao silêncio

 

sexta-feira, 18 de maio de 2012

esventrado XII

arrastam-se pesados
entre as sombrias paredes,
sons metálicos
gritados no passado distante


cunham sombras
indeléveis
nas esquinas cegas
do olhar


fracos ossos,
punhos cerrados
cravados no betão da memória:
o teu punhal espera por mim

 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

bala número quinze

deixei de me importar, de querer saber, de querer compreender.
descuidei-me nas palavras, ocultei gestos desenhados no ar viciado.
cada passada dada afasta-me de mim e sobretudo de ti. os vermes tragados trarão o veneno que procuro, as cócegas das asas no estômago, o ácido corroendo as entranhas.
deixei de me procurar ao espelho, de te ver diante de mim.
cada uma das lâminas tem o seu destino traçado, no chão o mapa programado do sangue em golfadas.
deixei-me de ser. nada.

e cada corte que em mim faço, a ti te destrói

 
Nine Inch Nails: Gave Up (1992)

balada XV


as palavras, sei-o agora
são feitas de traços dobrados,
tinta preta rasgando o papel

o papel, sei-o agora
envelhece com os dias
e queima-se no esquecimento

o esquecimento, sei-o agora
é palavra jogada no canto do quarto,
animal ferido rosnando


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

domingo, 13 de maio de 2012

purgatorium XXV


E de repente estás só.
E de repente estou sozinha.
E de repente sou eu, parada no centro da cidade de sempre. A sola a acariciar o chão imundo. Apago o cigarro com a ponta do sapato.
Sinto a inércia no corpo. Invadem-me as batidas do relógio na torre: sincronizadas, metálicas, uma lâmina que penetra nos tímpanos e entra na corrente sanguínea.
O coração dispara debaixo do peito cola-se nas costelas. Força-as. Obriga que se dilatem até ao possível limite humano.
Estou no centro de mim e todos se afastam. Vejo-os desaparecer, primeiro minúsculos pontos pretos, depois nada.
E de repente estou só.
Fotografia de Laura Alberto

domingo, 6 de maio de 2012

esventrado XI

tens a manhã na janela do teu quarto:
bebes o sol que te acorda na madrugada
esticas o corpo, bebes um café
e sais


refugio-me da luz que ofusca
em passos tortos pela casa
dobro as costas, encosto os joelhos ao peito
sucumbo à companhia do frio


trazes a calma quando chegas
tens o adeus sempre que partes
e sempre voltas, sempre


eu? esvazio o pensamento
certa de que já devia ter morrido,
ou nascido no teu passado
mas pela porta escancarada
desconheces como entrar
e o se, é lâmina que corta: aos dois


 

balada XIV

enrosco lâmpadas no casquilho
com dedos finos de lã
à espera do fim desta luz negra 


ao dobrar da esquina
prostram-se os sonhos
de joelhos contra o asfalto


[guardam-se duas velas de aniversário
embrulhadas em guardanapos sujos
dentro da carteira


ninguém o dirá
e ninguém virá
e ninguém o saberá]


continuo com o vidro fino
entre os dedos
alguém há-de vir reclamar os ossos sem nome

 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

purgatorium XXIV

Hoje, vejo os que se afastam em largas passadas, tornam-se minúsculas figuras até que desaparecem do meu olhar. Conheço-os, sempre os conheci e mesmo quando a sua imagem desaparece do meu alcance, sei-os desde sempre.
Sempre estiveram arrumados nas prateleiras, perfeitamente catalogados, esquecidos, ocultos pelo pó. A maior mentira de todas, o que se não vê jamais será lembrando.
Hoje, saíram todos do seu covil, limparam o pó que os cobria, vestiram o seu melhor fato. Saíram.
Fico aqui a ver as suas negras formas contra a linha do horizonte. Grito uma despedida. Ouço um adeus lancinante.
Acendo um cigarro, esperança vã que a bronquite se decida de uma vez.
E da memória nada reste.

terça-feira, 1 de maio de 2012

desAlinhado XXIV

agora que se recolhe a luz
deste dia azedo
e o silêncio abraça o corpo desperto


agora que adormecem os cansativos
seres coloridos
e o vento é companhia única dos ossos que restam


agora que as trevas são
dedos de lã acariciando os olhos
e embalando o sonho


sinto o mármore frio invadir a pele
bebo da chuva que escorre da tua boca
abro as portas sobre o peso dos séculos:
afogam-se as lembranças presentes
o corte eficaz da lâmina na pele esquecida


o sangue que escorre secará por fim
sem que ninguém o ouça