«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

domingo, 31 de outubro de 2010

Manifesto LXIII

(a)Pagar

tiveste:
deitado sobre a mesa
o corpo fresco
embrulhado na névoa da manhã

e agora chove

tiveste:
a carne tenra
paciente esperando
na bancada de mármore branco

e agora venta

tiveste:
o sonho guardado
em comprimidos mágicos,
o sabor da amora na boca

e agora reina o frio

tiveste:
a tela
os pincéis
a luz

e agora
apagou-se a derradeira vela

Pedradas XXVIII

gostava o senhor,
de traçar uma linha recta
que o levasse de A a Z,
sem desvios

desejava a senhora,
uma linha circular,
redonda como os seios
mantendo-a prisioneira

Manifesto LXII

I. Cansaço
enjoam-me,
todas as nuvens que passam
não encontro a caixa
onde as prender

II. Bocejo
vomito,
o sangue que corre
entre as profundas entranhas,
sujem-se as pedras cinzentas da calçada

III. Sonolência
acordo,
para encontrar
os joelhos dobrados
nas juntas de uma qualquer recta

IV. Cair
grito,
sem fim,
e sempre em silêncio,
sozinha

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Paixão

não gosto: de arder lentamente
neste fogo invisível
sentir as entranhas corroídas
entre memórias de ácido

não gosto: de sentir a carne
mirrar sobre a pele
ouvir os ossos estalar
no vazio das noites

não gosto: de ter frio
quando me sento na calçada,
e bem lá no horizonte
o que se aproxima é névoa

não gosto: de voar longe
entre fragas de granito,
gritando alto em silêncio
o teu nome

Einstürzende Neubauten - Youme & Meyou

Manifesto LXI

Tu e Eu

enche-se a banheira
com água que escalda

mergulha-se o corpo nu,
lentamente a carne aquece,
o desejo queima

não há sabão
que elimine este desejo,
as mãos percorrem a púbis

(não podemos cair nisto)

enrolam-se os corpos
calem-se as vozes

sacia-se a sede
da pele estalada
cobrem-se os ossos
com memórias longínquas

(não vamos cair aqui)

longe, bem longe
a língua de asfalto
leva o que de nós resta
bem longe

Manifesto LX

I. Consciência
desenharam-se
mil estrelas
nenhuma tocará a tua face

II. Gula
um corpo deitado ao acaso
lambido pelos dedos do vento,
e o frio que o cerca

III. Delírio
lábios semi-abertos,
acariciados
pela cauda do dragão

IV. Inconsciência
colunas de fumo
negro
penetrando na terra

V. Cópula
a lamina que talha
o peito,
de dentro

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manifesto LIX

On your Knees II

não. não existem mais tardes
fugindo em fumo,
em quartos abandonados de hotel
e o bolor que fica

não. não encontras mais o corpo
deitado,
engelhado de frio
bebendo da humidade que escorre

não.
sangram agora os joelhos
quebram-se as linhas
nas palmas da mão

não.
na tua mão ditaste a hora
a história que ficou por contar

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Manifesto LVIII

On your knees

Não: não quero ser lambida
por sorrisos perdidos
entre a linha do comboio

Não: não quero ser tocada
por nuvens de enxofre
sublimando entre as profundezas

Não: não quero andar
nas fragas dos teus dedos
e sangrar lentamente o sonho

Não: não quero sair
Ponto

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Estudo LXX

Rabisco

se gritar baixo irás ouvir,
a lamina que retalhou o peito,
traçou o destino de um grão de areia,

se me calar alto irás ouvir,
os olhos que cegaram
no caminho negro da chama,

e se eu falar a sério
sem palavras, sem gestos,
vais-me ouvir?

Pedradas XXVII

O mágico

vamos lá da cartola tirar:
um coelho cinzento,
dois pássaros esvoaçantes,
meia dúzia de coloridos lenços,

um sonho,
não sei quê de jogos,
algumas nuvens,
muita chuva,

ora vamos cá da cartola tirar:
dúzias de valiosas moedas
quilos de baralhos de cartas
(e se eu me baralho?)

uma dentada
no bolo da ilusão
duas lágrimas
no canto do quarto

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Manifesto LVII

NNNAAAMMM

só sei que tenho frio,
enquanto escorre o sangue
brotando sem dó da ferida exposta,
acelera-se o bater das pálpebras
daquele tal de coração mirrando sobre o peito,

só sei que tenho frio,
enquanto se mordem as gengivas
estalam-se os dentes,
parte-se o maxilar,
esgaça-se a fraga,

só sei que tenho frio
quando acordo

Manifesto LVI

Reflexo

quando fechar os olhos,
andorinha negra

em que campos voarás tu
fugidia lança
trespassando o peito apodrecido

quando cerrar bem os olhos,
andorinha negra

de que fontes beberás tu
a água falsa
brotada do teu seio

quando abrir os olhos,
andorinha negra

qual a cor da pele
a vestir
no roubo do dia


Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Manifestos LV

Tu

talvez um dia acorde
para me encontrar num quarto
de cinco paredes

na mão o pincel,
defronte dos olhos, a cal


talvez um dia adormeça
num leito sem fundo
de ásperos dedos

na mente,
uma esfumada memória

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Tendinites

Tendinites I

vamo-nos suicidar e vimos já
um saltinho e estamos do lado de cá
a porta ficará entreaberta ao arrependimento
deixemos o batente cair por terra, na terra
e o som como um ser vivo escorregar pelas paredes

dispamos o pó que trazemos
e queimemos a pele com a violência de um cigarro
beba-se o vinho da comemoração
quebrem-se os ossos, apodreçam as gengivas
morramos tu e eu, de mãos dadas apesar da dor

estamos profundamente loucos, que fazemos a seguir?

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pedradas XXVI

Triangular

todas as histórias de amor são isso,
histórias

todos os romances são isso,
histórias

todos os dramas são isso,
amor

todo o amor é isso,
história

Manifesto LIV

Submersão

confesso,
terei esquecido o nome
preso nas margens de um rio
de águas frias

os meses
assim permitiram
que a lama o cobrisse
e toda a areia sufocasse a voz

perdi
os ramos ressequidos,
arrastados pelo tempo,
o tempo irremediável

confesso,
evoquei o esquecimento,
quando no fim
era o teu sangue que corria

Pedradas XXV

O eremita

bem do alto do seu pedestal
nenhuns eram os montes que avista,
outrora esqueceu a cor verde

sentava-se o maneta
na fria pedra aguçada,
o ruído era agora estranho

abria os olhos
para que as nuvens os limpassem
embalados em toda a escuridão

subia, subiu
sonhando espantando,
especado

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Manifesto LIII

Permissão

deixo que me arrastem os pés,
pela sala sem janela
sobre o chão espelhado

arqueia-se o peito
confinado nos braços,
quebram-se a costelas
sobre o leito sujo

deixo que me arrastem os pés
para o quarto do fundo
na casa sem vizinhos

rompem-se as coxas
forçadas nas mãos,
penetra-se a carne
afogada em sangue


Cinematic Orchestra - Dawn

Manifesto LII

Parar

um dia o tempo parou
esqueceram-se os fantoches à boca de cena
voaram dentes de leão no esgoto

e houve um dia em que o tempo parou
redondo
de encontro à cara

e nesse dia
o punhal desfechou o golpe
o sangue correu entre os oceanos

um dia o tempo parou
cansados os relógios ouviram
tristes os dias contaram
a história do tempo que se cansou de ser


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Manifesto LI

A verdade

I
tenho frio
enquanto percorro as ruas da cidade

II
vou procurando
o que sei nunca encontrar

III
tenho sede
de trincar as nuvens do solo

IV
acabo por descobrir
o que recusei aos olhos

V
tenho sono
sempre acorrentado ao sonho

VI
que sonho

Pedradas XXIV

A mentira

I
em bicos de pés
risco o teu nome na areia

II
todas as frutas mirram
presas na árvore

III
com o calcanhar
piso a seiva das nuvens

IV
todas as flores nascem
para dentro da Terra

V
com a mão esquerda
limpo o vento das orelhas

VI
todo o nosso sal
foi guardado em sacos

VII
fechados



Noir Désir - Oublié (live)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Manifesto XLVII

A arte de retalhar

sobre a bandeja de prata,
a carne vermelha,
à espera

afiem a faca, Senhores,
ansiosa por retalhar,
os pedaços encomendados,

goteja timidamente o sangue
pelas tábuas de madeira,
longo

Senhores, aproximem-se,
escutem o tambor clamando,
o derradeiro

sorve-se o odor a ferro
entre linhas de humidade
cansadas

levantem-se Senhores,
dos vossos pesados cadeirões,
ela aguarda calmamente, à vossa espera

Manifesto L

Lost

tu sabes que tenho medo,
as bolhas tornaram-se gretas,
os pés não conseguem andar,
e os olhos não sabem o caminho,

tu sabes que tenho frio,
o manto não tapa os ombros,
e a chuva teima em cair
nos dias de sol da cidade

tu sabes que sinto fome,
apodreceu o pão que guardei
dias a fio no saco de uma vida,
esquecida ao som dos minutos

tu sabes que não tenho tempo,
o tempo que agora tenho
foge entre os grãos de areia

Manifesto XLVIII

Sentidos

que cantem as barras de ferro
arriando contra si

que escutem os lábios
o rebentar da sua pele

que sorvam os ouvidos
o sangue gotejante

que vejam os olhos
o vento fugindo nas searas

que se escondam no porão
as histórias de papelão

Robert Frank, NYC, Bleecker Street, 1993

Pedradas XXIII

O quarto dos brinquedos

o papel de parede, com as suas cores perdidas,
começa por se desprender do estuque

sempre imóveis
nos seus pedestais,
as bonecas com caras de porcelana,
olhos vidrados na linha do horizonte,
ali tão perto

pendem fios eléctricos do tecto abobado
nem as teias de aranha aguentam no lustre

sinistrados,
os velhos carrinhos de brinquedos,
algures esquecidos nas linhas de comboio
das maquetas pousadas no soalho,
ali tão distante

fechado a sete chaves, o velho quarto,
não vá alguém ali entrar, mas ninguém quer brincar

Robert Frank, The Road Week

domingo, 10 de outubro de 2010

Léria

se não foi esta a história,
o que foi afinal?

(teimosas estradas paralelas
sequiosas de vento
cruzadas num instante)

o que foi afinal,
se não foi esta a história?

(tímidos braços de tempo
emaranhados pela encosta
de quem os Deuses se olvidaram)

se não foi esta a história,
o que foi afinal?

(que importa que seja de prata
o punhal que se crava no peito
o fim?

o que foi afinal, se esta não foi a história?

Manifesto XLIX

Tio Alberto

um qualquer dia, num qualquer campo perdido,
sentado sobre a erva molhada,
limpará, finalmente, a bereta
com um sujo pano de flanela,

religiosamente a colocará na sua bolsa,
e se os joelhos o permitirem
subirá ao mais alto rochedo,
sem binóculos,

(daqui nada se avista)

tenho eu o teu apito,
guardado na mão fechada,
sei bem como o usar, quando a hora chegar

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Manifesto XLVI

O sumo

tentei espremer uma laranja
e nada sei do seu interior

os copos de cristal
não se encontram no armário vazio
e a sede sobe
entre fragas de granito

daqui
pequeno tornou-se o vale,
fria sempre foi a chuva que cai

perto e longe

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Pedradas XXII

A receita

e o que vai sobrar?

um sol enrolado na areia
duas vagas frias na noite
três gritos perdidos no azul
quatro pedras de sal cravadas no olho esquerdo
cinco réstias de concha abandonadas nos pulmões,
seis salmos deitados ao vento

e o que vai sobrar
de nós?





Fotografia de Pedro Polónio, Escadas, A Descida
http://club-silencio.blogspot.com

Pedradas XXI

Na cruz

hoje, provavelmente,
não vestirei o preto
que importa as tábuas de pinho
em cruz a sombra projectada no solo
pregos de ferro empobrecido

brancas vestes arrastando na lama
a solidão cercando das traves
o silencio enterrado entre os prados

RIP

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Manifesto XLV

Aleijada

não consegui juntar as letras,
as sílabas,
dizer a palavra
ficou cravada no peito
largou por si, o rio de sangue,
ao que parece

cerrei a mão e a areia fugiu,
fugiste-me
entre névoas de pó
ao que parece

agitam-se as cortinas
com a noticia da chegada

ao que parece
sonhamos acordados,
perante um espelho partido


Einstürzende Neubauten - Stella Maris