jogávamos nossos corpos ao acaso
navegando em bocas escancaradas,
saboreados por línguas cruzadas sob saliva doce
acariciávamos a pele
arrepiada, fingindo a sua ruína
rebentando os líquidos proibidos que sorvemos sem pudor
todos os frutos perdiam o seu sabor
todos os segundos esqueciam o tempo
fomos oceano sobre chãos imundos
fomos correntes desfeitas em lençóis alugados
fomos acaso roubado na dobra da cidade
somos mancha esquecida sobre paredes surdas
resistentes ao espaço que entre nós se vai esvaziando
«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
segunda-feira, 30 de abril de 2012
purgatorium
XXIII
Hoje não me apetece escrever. Talvez porque acordei com frio e adormeci com frio. Passei a noite com os joelhos colados ao peito, mas o frio esteve sempre lá, como um sopro constante no ouvido.
Provavelmente nem dormi, tenho todos os segundos, todos os minutos, todas as horas gravadas na pele. Possivelmente ainda estou a dormir.
Como posso eu estar a dormir? Se no único espelho da casa o reflexo junta partes do meu corpo. Um puzzle a que vou tentando dar um significado.
Ainda devo estar a dormir, não acordei e a noite impera lá fora. Bom dia, daqui a nada, com dores nos ossos e uma tosse sufocante.
domingo, 29 de abril de 2012
esventrado X
é como se as entranhas se precipitassem
arrancadas do interior do corpo
em encontrões violentos contra a carne
numa corrente devastadora
como se a estrada, sem fim, sem início
fosse o único animal a domar
debaixo de pernas bambas
e pés quebrados
como se o amanhã fosse a certeza
e hoje apenas memória,
passado e nada mais
[cansam-me estes dias escritos de sangue
a voz encarcerada em dor aguda sobre o ventre
as mãos frias guardadas no bolso
cansam-me os sorrisos escondidos ao dobrar do tempo
quinta-feira, 26 de abril de 2012
esventrado IX
nada
lá fora o vento que agita os pinheiros
as primeiras gotas do que se adivinha ser uma tempestade
a loucura das nuvens perdidas
nada
o som dos poucos automóveis que ainda passam na estrada
do outro lado da casa
o medo dos melros à procura de alimento
nada
o silêncio preso no ar
o ruído dentro das paredes
o riscar de unhas no interior do cimento
nada
os outros
encarcerados numa recordação de carne
a apodrecer
Mogwai - Radar Maker
lá fora o vento que agita os pinheiros
as primeiras gotas do que se adivinha ser uma tempestade
a loucura das nuvens perdidas
nada
o som dos poucos automóveis que ainda passam na estrada
do outro lado da casa
o medo dos melros à procura de alimento
nada
o silêncio preso no ar
o ruído dentro das paredes
o riscar de unhas no interior do cimento
nada
os outros
encarcerados numa recordação de carne
a apodrecer
Mogwai - Radar Maker
quarta-feira, 25 de abril de 2012
purgatorium
XXII
O primeiro passo: voltar atrás.
Um frio que nasce de dentro, nas
paredes do estômago, sobe pelo esófago. Um grito surdo numa boca escancarada.
O segundo passo: ficar parada.
Um tremor que percorre as pernas,
percorre o peito, assoma a mente. Uma lágrima que cai em terra de ninguém. A boca
aberta cospe sangue: o ruído surdo da espessa pasta atingindo a terra.
O terceiro passo: continuar.
E continuar o quê? Todos os
sopros quedam-se nos campos. Todos os vendáveis findam-se na terra. Todas as
cidades esqueceram o meu nome.
Aqui. Cavar. Cavar e cavar. O
último passo: para um lado qualquer que não este.
Fotografia LauraAlberto
segunda-feira, 23 de abril de 2012
desAlinhados
XXIII
o último fio a cortar
é aquele mais espesso, aí
no sítio onde te encontras,
grosso, cinzento
o que apresenta uma irregular textura
onde já não corre o sangue, a lágrima
solitária
o último fio a cortar
as mãos fechadas
as narinas que se dilatam
um enrugar da linha das sobrancelhas
lábios finos, dentes cerrados
um ranger continuo
o último fio a cortar:
a memória será traição no futuro
Einstürzende Neubauten - Alles
domingo, 22 de abril de 2012
purgatorium
XXI
No silêncio da sala, na escuridão
fria que me envolve, recordo as casas em que vivi e onde hoje sou fantasma na
imensidão das noites.
As altas e baixas paredes. As
cores vivas, desbotadas nas tintas e no papel de parede. O sótão proibido. As
escadas traiçoeiras. Os quintais e os jardins. A casota. Os animais. Os cães. A
roupa branca a corar na erva. Os tanques de águas sujas, de águas limpas. O
barulho dos plásticos acariciados pelo vento forte. O último rodar dos dentes
no metal da fechadura. Uma chave acobreada, arrumada numa caixa de lata.
[Como chovia quando de mim fugias
e eu via a tua imagem diminuir entre as grades da janela. Nessa altura ainda
sabia rezar.]
Agora, saem do seu lugar nos
mapas: dos largos, da rua, do lugar. Ocupam um espaço livre na minha mente que
eu visito quando me lembro. Na realidade visito-me a mim, criança sem medo, com
a incerteza do amanhã.
Fotografia de Leonardo B., http://odiariodasausencias.blogspot.pt/
[ Deixo ficar o meu sincero agradecimento ao Leonardo B. dos blogues:
que me deu a liberdade para usar as suas fotografias.
Conhecendo eu o trabalho do Leonardo,nomeadamente pelo blogue onde publica textos de sua autoria. Sempre achei que as minhas palavras não fossem merecedoras do seu trabalho. Contudo fui surpreendida, não só pela sua permissão, mas também pela sua amizade. Obrigada Leonardo.]
segunda-feira, 16 de abril de 2012
purgatorium XX
Decidi-me a arrumar os papéis que
fui acumulando. Cansavam-me a vista as pilhas e pilhas, as colunas e os corredores
sem saída. Tudo de papel, uma arquitectura não programada.
Um simples toque numa coluna
menos estável e via-me rodeada por folhas, misturadas com outras folhas, outros
pedaços de papel, letras, palavras e riscos.
Tomada a sentença, seguia-se a
escolha do sepulcro final. Corri todos os cantos imagináveis, todas as gavetas,
todas as prateleiras, todas as caixas, todos os baús. Todos os sítios possíveis
e impossíveis.
[a possibilidade é algo que me
assusta]
Quando acabei estava rodeada por
outros papéis, ressuscitados de uma morte anunciada.
Agora, estou de novo entre outros
novos papéis-velhos, sem vislumbre de um início ou de um fim.
esventrado VIII
aprendi,
quando ainda o tempo era tudo o que nos restava
a dizer-te
adeus
descobri,
no calor da tua pele, sob o toque das tuas mãos
o sabor das minhas
lágrimas
nasceram ondas, mar, um oceano
debaixo do nosso abraço
azul, azul e mais azul
cresceram ilha, ilhas e uma ilha
diante dos teus lábios cerrados
oceano, oceano, terra, oceano
aprendi como dizer-te adeus
busco agora o esquecimento
o meu, o nosso
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
domingo, 8 de abril de 2012
purgatorium XIX
A medo.
Tive o azar. Provavelmente tive o
azar de descobrir que um dia, muito lá atrás, muito lá longe e distante: nasci.
Se digo a verdade, será porque
fujo da mentira, mas se nem a verdade é eterna, tão pouco o será a mentira. E
disto de eternidade começo a ficar cheia. Falsas promessas douradas nos tectos
de nossas casas.
O tempo é apenas mais um gigante
de dentes podres a nossa espera, ao virar da esquina.
Não sou possuidora das palavras,
as que escrevo, pertencem aos que as lêem; as que digo, nunca se chegam a
ouvir; as que penso, perdem-se sozinhas. E todo o tempo não chega, todo o tempo
é muito tempo.
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