«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXIII
fecho a porta, não temas: o medo não existe, apenas na tua cabeça.
descansa, eu fecho a porta, mas vou deixá-la encostada, sem que tu te apercebas.
tranquilo, fecho a porta: lá fora é só o vento, é só a chuva, e só uma tempestade.
fecho a porta, encostada.
alguém virá perguntar a cor dos teus braços, o sabor da tua boca. a porta está fechada e o bolor invade as paredes.

Manifesto CXVI

Golpes

quando acordei tinha pequenos cortes nas costas das mãos
pequenos cortes, tímidos, vermelhos
não recordo como apareceram, mas estavam lá
povoavam as minhas mãos, como pequenas formigas
irrequietas, impacientes

os cortes das minhas mãos têm a forma de traços
interrompidos, inocentes
brilham quando a noite se estende pelas paredes do quarto
e cantam o silêncio das horas secas,
distantes

quarta-feira, 27 de abril de 2011

minha primeira lágrima

“Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.” Cecília Meireles
“Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.” José Carlos de Vasconcelos


minha primeira lágrima caiu dentro dos olhos
silenciosa, cristalina, transparente
pestanejaste e expulsaste-a num gesto mudo
evaporou-se no teu pé esquerdo

minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos
quando ainda sabias o nome do vento
quando ainda conhecias o sabor do sal na tua boca
quando ainda vias na escuridão da noite

a minha primeira lágrima desapareceu
e hoje
qual é a gota que cobre os destroços?

Cor: Lilás

naquele tempo
as nuvens eram cavalos alados
que pintavam os céus com a alvura da inocência,
as papoilas habitavam nas searas
e guardavam o segredo das horas nas suas curvas,
nos cristais descansava o orvalho da madrugada
e as pedras nasciam dos braços das folhas amarelas

naquele tempo
havia ainda tempo para ter tempo

terça-feira, 26 de abril de 2011

Sabedoria

sei que tenho pés:
observo as marcas que ficam na areia
para serem apagadas pela espuma amarela

sei que tenho pés:
as fragas aproximam-se vertiginosas
e a tua figura esvanece em terra

sei que tenho pés:
estão frios, engelhados, sujos
perturbam-nos as pedras afiadas

sei que tenho pés
e que o silêncio caminha

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Cor: Negro

dobro as pernas, aperto o peito contra as coxas e cruzo os braços sobre os joelhos
já não está frio, tanto frio, mas há sempre o vento, veloz
o dia começa a perder as suas cores vivas
ao longe desenha-se um névoa que desce dum céu esquecido
apagam-se as flores, enterram-se os últimos raios de luz
chupo uma palha seca, tem o teu sabor
o sangue começa a gelar me os braços, as pernas
o dia escorre entre as horas grossas e a noite espreita nas esquinas
é noite, vamos?

Polaroid 33

Tanque

deverá ser usada uma lâmina bastante afiada
poderá ser ou não passada por álcool
o corte deve ser: decidido, rápido, silencioso e bem profundo

cabe depois ao senhor de luvas brancas
mexer, mexer e remexer
tirar tudo cá para fora e esfregar energicamente

Manifesto CXV

Porto, Verosímil

enquanto ficas aí sentado
os barcos acodem ao cais
e as lágrimas rolam pelas caras engelhadas

enquanto corres a cortina
o farol murmura o cântico dos afogados
e os catraios correm pelos paralelos sujos

vais abrir a janela, esticar bem as pernas
apoiar-te nos bicos dos pés
e é chegada a hora da partida

trago-te sempre comigo:
lembro-te
sei-te
imagino-te,
vivi-te
vivo-te
trago-te sempre comigo, nos bolos esfarrapados
e choro-te

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXII
uma gota cai, um som abafado entoa pelas paredes de mármore branco. cai cega, num lavatório de água a escaldar e mal cai dilui-se, ganha braços, pernas, cem de cada, entre a água parada no lavatório de louça estalada.
uma gota cai, decidida, sozinha e desaparece na água com que te lavas, hoje e amanhã.

Pedradas LIX

Fastio

bocejo:
mergulho a colher baça no café
que pinta a parede da chávena cansada,
os olhos humedecem-se de tédio

bocejo:
a colher viola a espuma,
num gesto mecânico agito a água tingida
a espuma abre-se, fecha-se e abre-se de novo
numa espiral mesclam-se a espuma e o café

bocejo:
são braços que se abrem, são braços que abraçam
são mãos que se fecham, são mãos que largam
são lábios que se abrem, são lábios que se calam

bocejo:
bebo o café de um gole só,
sempre sem açúcar

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pedradas LVIII

Ao fim e ao cabo

que sensação desconfortável
invade o meu intimo, todas as entranhas
reviradas, viradas e reviradas
de baixo para cima, de cima para baixo
o fogo consome o interior, coze a pele em lume brando

[que palavras são estas?]

turvam-se os olhos,
avermelhados da raiva que nasce bem no fundo
e brota violenta pela carne quente
em fúria, em fúria senhores
e queima os vermes que se escondem

[que palavras são estas, meus senhores?
estas palavras pintadas, ornamentando
vossas frases espalhafatosas,
sim, meus senhores, serão estes os vossos pensares?]

quer o poeta escrever tudo:
o que lhe apetece
que lhe vai entre o sangue e a urina,
entre o suor e a lágrima

quer o poeta dizer:
que na sarjeta vive poema

Cor: Azul gelo

sempre que parto esqueço-me:
de todos os pedaços que foram caindo
pelos cantos da sala, caindo, cortando o ar
o barulho ensurdecedor e depois o silêncio

sempre que parto carrego:
os dias escuros dos ossos cansados,
entre pesadas horas que se marcam nos músculos

agora que parto, caminho
lentamente, cuidadosamente
é fina a linha do olhar
e os lábios não se podem dobrar

Manifesto CXIV

A montanha

I

ficava aqui, até que fosse dia
até que fosse noite e todas as horas guardassem:
o vento que foge, frio, distante, ao largo de nós
o gelo que rodeia os pés, as pernas, o tronco, o corpo roubado

é tarde, ambos sabemos
a chuva deu lugar ao sol, ao ar seco
e ambos sabemos:
que nenhuma pedra guarda o teu nome

II

mais umas horas e a cidade descansa
todos dormem entre a escuridão
pousam as suas cabeças sobre o silêncio
e fintam o frio com pesados cobertores

é:
mais umas horas e todos descansam,
eu deixo que a montanha viole o último rasgo de ar

Polaroid 32

Casa de banho

não consigo perceber grande parte das coisas
mas lá que escreve bem, escreve

um carreiro de formigas passa
inabalável diante dos meus pés

lá fora, regressou a chuva
aqui, o ar é abafado, quente

um segundo apenas
sinto todas as entranhas revolverem-se
precipitam-se sobre o chão, fugidio
um segundo apenas e todos os barulhos são estranhos

Fotografia de Laura Alberto

terça-feira, 12 de abril de 2011

Pedradas LVII

Faz me um favor


não sou eu quem se deita na tua cama à noite
não sou eu quem bebe da tua boca nas manhãs frescas
faz me um favor, fecha a janela:
não dou por mim a voar no teu terraço
nem a morder o teu corpo nu

Fotografia de Laura Alberto

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Polaroid 31

O rochedo


sentei-me num rochedo e o mar tão baixo
a espuma ficava prisioneira nas fragas
e desaparecia deixando ficar manchas amareladas

[qual o dia do ano? não sei
estaria frio? estaria calor? não sei]

pequenas gotas de mar salpicavam-me o rosto
enquanto pequenos caranguejos eram levados
para serem de novo trazidos, perdidos entre as ondas

[qual o ano? não sei
quantos anos teria? não sei]

ao fundo, o som melancólico do farol
rompia o nevoeiro que cercava o pontão
de vez a luz tinha sumido perante os meus olhos

sei que quando o meu pé
tocar, esse mar que nos separa
é chegada a hora

Fotografia de Gerard Castello-Lopes

Polaroid 30

A poda

interromperam o trânsito naquela rua
de pé, o agente cruza os braços no fim das costas
o barulho das serras eléctricas
leva o serrim compacto nas massas de vento
sente-se o cheiro a madeira, nova, cortada, violada

o ramo cai com grande alvoroço, levantam-se:
todas as folhas,
todos os pedaços de madeira
todos os gritos, abafados no peito
toda a cobardia, que mora na mente dos homens

morre assim aquele ramo,
pedaço de uma árvore,
de todos os miúdos de pé descalço que brincavam nas suas raízes

mais à frente
os braços vazios de camisolas coloridas
enrolam-se em nós contrafeitos



Fotografia de Laura Alberto

domingo, 10 de abril de 2011

Praesens IV

ficamos assim deitados, a respirar, a custo
o suor escorre pelo peito até à dobra do lençol
pinta a nuca com traço de sal, tento saboreá-lo

ficamos assim, em silêncio, deitados
a aragem que entra pela janela seca o suor,
levanta os pêlos da pele arrepiada

desenho o teu corpo imóvel
com as manchas de humidade que encontro
espalhadas pelo tecto alto

amanhã enterramos as raízes fundas
em rios de ópio,
os outros passam iguais, silenciosos

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Polaroid 29

A ponte

corre, como um fio prateado
enrola-se nas pedras, brinca com os ramos
beija os pés dos pescadores
e corre, como um fio cinzento

leva as folhas perdidas, abandonadas, esquecidas
entre garrafas, caixas vazias, galhos, rolhas
e leva, para longe:
todos os gritos,
todo o desespero,
todo o sonho,
todo o nosso sonho, o de outros
toda a dor,
todo o medo

aqui em cima anda a coragem
de pés descalços sobre o metal

Pedradas LVI

Porra

Ah!
e não há um machado que destrua este cadeado
corte esta árvore
parta estes vidros
arrombe estas tábuas
destrua este ar podre

Ah! e não há um martelo que esmague o crânio
triture estes dias
dilacere este peito
estrague estes ossos
assassine este moribundo que se arrasta a meu lado

Ah!
e não há liberdade que se fume
num cigarro à beira da estrada

Pedradas LV

Presente

a correr pelo alcatrão quente
entre o fumo que se absorve, lento

quisera ter asas e saber que podia voar
faria do céu o túmulo do sonho sublimado

a fugir na estrada de terra solta
entre abetos que vivem, sempre

quisera voar e saber o que eram asas
faria do teu corpo o lugar onde pousar o abraço

a dormir pelos dias abafados
que escorrem pelo tempo

domingo, 3 de abril de 2011

Cor: Transparente

cansaço:
todas as noites passam frias
entre o silêncio que se mantém desde o dia
entre o ruído que se enterra em valas comuns

insónia:
passam os dias acordados
à espera que o sono venha assaltar
as mentes perdidas em visões foscas

sonho:
a alegria de dormir
nas noites eternas
trazidas em cristais intactos

Manifesto CXIII

O caixote

[se ao menos houvesse um]
lá deixaria ficar:

todas as noites passadas em claro, enquanto construía arranha céus de areia
todos os dias solitários onde corri sobre o alcatrão quente
todos os raios de luz que arrombaram as janelas
toda a escuridão de onde vi acenar o mostrengo

todas as palavras que bebi, silenciosas dos teus lábios
todos os abraços que senti, frios do teu corpo

se ao menos houvesse um, só um
seria grande o suficiente para deixar um nada

Polaroid 28

Esquina

caminho nas ruas de sempre, está frio, um vento gelado relembra o Inverno. entre o fumo que se ergue da cidade que respira, caminho cada vez mais lentamente. começa a anoitecer, o chumbo toma conta do céu, será que vai chover? apetece-me um cigarro que não tenho nos bolsos, nem tão pouco um isqueiro esquecido. se chover, abrigo-me em qualquer umbral de uma qualquer porta de uma qualquer casa, mas tem que ser desabitada. caminho sobre os paralelos que conheço, um a um. não, não irá chover, pelo menos hoje.
E ao virar da esquina não sei o que vou encontrar.