«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Manifesto LXXX

Quando eu morrer, se morrer

quando eu morrer, se morrer
não chorem por mim, se chorarem
conto vos a história do futuro:

a terra é sempre húmida e não se vêem os vermes
as tábuas apodrecem ao esquecimento
a carne seca sobre os ossos, sem odor
os ossos quebram perante o olhar dos vivos, quando quebrarem
fica o cabelo, uma coifa imunda
saem os dentes sobre os lábios que se rasgam, desaparecem
pintam-se os olhos de chumbo

quando eu morrer, se morrer
não chorem por mim, se chorarem
lembro vos a história do presente:

[tudo de tudo, de todos, dos outros, de mim de ti, de ti em mim, sem mim, sem ti, tudo de nada de tudo, sem tudo, com nada]

quando eu morrer, se morrer
se chorarem, não chorem por mim

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XVI
é assim: range o soalho, gritam as paredes. voltar vezes sem conta lá: até que um dia, não sabes mais o caminho, até que um dia não sabes quem és.
é assim: os móveis apodreceram lentamente: as portas do armário vão caindo por terra, uma a uma, sem aviso. romperam-se as cortinas sobre vidros que escorrem plácidos.
é assim: livros fechados, páginas amareladas, caixas, caixinhas com folhas, folhinhas, papéis, papeizinhos.
é assim: fotografias onde não te reconheces, nomes que nunca te chamaram e os tacos levantam-se sobre os teus pés.
é assim: levas nos pulmões o cheiro a humidade, a urina, a doença, levas nas mãos caderninhos, que ninguém leu, que tu já te esqueceste de quem escreveu
é assim: range o soalho, gritam as paredes. voltar vezes sem conta lá: até que um dia, não sabes mais o caminho, até que um dia não sabes quem és.

Jorge Molder, S/título (da série “Zerlina”),1988

Polaroid 8

Pangea

chorei todo um oceano,
até que o sal me tomou o olhar
e as algas me prenderam os braços,
para ver que nunca fomos um só continente

Fotografia de Man Ray

Pedradas XXXIX

Alô, alô, daqui falo eu:
aquela que vem pelas tábuas
marca as rugas nos dias que escorrem
violentos pela dobra do queixo

Alô, alô, daqui falo eu:
do gelo sem odor
dos quartos abandonados mergulhados em bafio
das estações que passam

Alô, alô, daqui falo eu:
hei-de sair do teu peito
pintar o teu rosto de mercúrio
até que os teus dentes sorriam entre a terra

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XV
de cada vez que venho aqui: não encontro o teu corpo: acaso terá ficado guardado em altas prateleiras, num qualquer quarto secreto?
de todas as vezes que venho aqui: não sinto o teu odor: provavelmente dissolveu-se entre o mofo que nos cobre.
sempre que teimo vir aqui: não sigo os teus olhos: apagados estão já num beco qualquer.
da última vez que virei aqui: dançarei sozinha de olhos bem abertos: a dormir.


Requiem For A Dream - Full Theme Song

Manifesto LXVII

Rafeiro

amanhã corremos entre prados sem fim
nas minhas quatro patas sinto a terra que escorre pelos dias
amanhã voamos entre rolos de azul
nos teus dois pés firmam-se os dias quentes, frios

amanhã deitamo-nos sobre a sombra do sol
enquanto as estações passam:
ruidosas, silenciosas

depois de amanhã ardemos
mordendo a língua, sem ar, sem peito

Polaroid 7

Quarto alugado

fecho os olhos cada vez que te sinto, és
uma cava funda num colchão coberto de pó

cerro os lábios sempre que o teu sabor me invade, deixaste
um reflexo apagado num espelho partido

cerra-se o peito quando lá longe surgem ecos,
a história finda numa banheira cheia de água


Fotografia de Jorge Molder

Manifesto LXVII

Quem consegue voar daqui?

deixa-me assim, sem saber a cor
dos teus olhos
deixa-me assim, entregue à cegueira
do teu corpo
deixa-me assim, esquecida do toque
da pele que te veste

ficamos assim, mergulhados em silêncio
na solidão do quarto
ficamos assim, à espera do veneno
para o qual desconhecemos o antídoto
ficamos assim, distantes em pensamentos
assim, tu e eu sem ti, tu sem mim e nós sem nós


Sapatos – Vincent Van Gogh

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Polaroid 6

Via rápida

deveria ter pintado a tela que te esqueceste
areia ventando, sol chovendo, mar ardendo
preferi desenhar uma linha

deveria ter plantado a semente que perdeste
céu penetra as entranhas da terra
preferi sentir fome

[anda embora,
a luz reflecte-se na água sobre o asfalto]

deveria ter coberto o teu corpo
com um lençol branco, desinfectado
desinfectada de ti


Um dia cinzento, Jorge Molder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XIV
não se consegue escrever o poema: ontem não volta a ser hoje, as linhas foram traçadas a lápis.
não se consegue ver o dia: a noite cerca as criaturas, tu e eu, descalços sobre o granito. caminho, caminhas, caminhamos em direcções opostas, onde outrora bebíamos da água da chuva, hoje, amanhã secamos nossas gargantas no pó da distância.
não, não se consegue escrever o poema: daquilo que não fomos. um punhal descansa sobre a mesa vazia, e não, não seremos.

Polaroid 5

Acidente na berma da estrada

na berma da estrada, entre a linha de pó, uma
carcaça de um gato, olhos estupefactos, imóveis. Parado
está já o relógio


na berma da estrada, entre a linha do tempo, uma
carcaça de um gato, rodeada por uma poça do seu sangue: espesso, seco, negro. Amontoado
de ossos rasgam a carne, apanham de surpresa os músculos inertes

na berma da estrada, algures entre um dia e outro dia: o dia
da sua morte, na berma de estrada

passamos rápido pela língua de asfalto quente
na berma da estrada somos o acidente


O pequeno mundo, fotografia de Jorge Molder

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Polaroid 4

Letras 2 – desconstruir

os gatos sorrateiros à cata de pardais. Relembra-me
a letra a
os gatos escondidos nos becos da Ribeira. De que é feita
a letra d
os gatos roçando-se nas pernas das varinas. Conta-me
a história da letra e
os gatos surripiando pequenas sardinhas no mercado do Bolhão. Canta-me
a letra u
os gatos que têm mais uma vida. Rouba-me
a letra s
os gatos que caem sempre de pé. E eu esqueci
o que te queria dizer

Polaroid 3

Letras 1 - construir

os gatos que se equilibram em muros de pedra. Ensina-me
a letra a
os gatos que esticam as garras. Mostra-me
a letra m
os gatos que lambem o pêlo. Fala-me
da letra m
os gatos que dormem de dia. Desenha-me
a letra o
os gatos que são sempre pardos. Apanha-me
a letra r
os gatos que têm sete vidas. E eu não sei
o que diga

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Polaroid 2

Desmembramento

de todas as vezes corri, sem ar e gosto de ti
de todas as vezes corri, sem terra e gosto de ti
de todas as vezes corri, sem pedras e gosto de ti

de todas as vezes corri, com vento e gosto de ti
de todas as vezes corri, com frio e gosto de ti
de todas as vezes corri, com pele e gosto de ti

de todas as vezes que corri. Parei
não te vejo aqui


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XIII
o que será que ela fazia? [Dou corda ao relógio, senão ele pára.] era chegada a hora de dormir, a sesta da tarde, no quarto virado para o largo. no outro quarto, voltado para o quintal, de manhã, era hora de ir para o quente dos lençóis, quando chegava da minha outra noite. [Prometes que não me deixas aqui sozinha?] fechar os olhos e resistir: ao sono, ao cansaço, à obrigação. deixar ir: dormir, sonhar a dormir, acordar, tarde sem horas. [Tinha que vir trabalhar, mas sei que ficaste bem.] silêncio: o barulho pesado do engenho do velho despertador. Trim. e agora, quem vai dar corda?

Polaroid 1

Desabamento de uma montanha

nossos corpos nus, suados, transpirados. Cansados
da brancura dos lençóis.
assim silenciosos, as mãos tocando-se. Sempre distantes
são os meus olhos nos teus olhos os meus olhos. Os lábios tocam-se
os meus nos teus os teus nos meus. Dentro
o meu corpo, dentro de ti dentro de mim dentro de nós. São
os dias: e os meus olhos nunca viram os teus olhos nos meus e
tu em mim em ti em nós

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XII
naquele dia o tempo tinha parado: olhava pelos vidros sujos: tudo imóvel, suspenso. teria realmente o tempo parado? continuava a olhar: tudo brando. olhar à volta: sentir o silêncio. apenas uma formiga passeia no beiral do aquecedor. todas as partículas repousam suspensas no ar. todas as nuvens perderam os seus braços.
será que já acordei: que já tomei banho: que já saí de casa?
será que ainda estou a dormir: fingindo que estou acordada, dormindo?
naquele dia o tempo tinha parado: os pêndulos dos relógios congelaram: o sol queimava: o frio queimava.
do vidro via a mesma imagem: absoluto repouso, ruído silencioso e vento. o vento continua a correr: seco, húmido.
naquele dia o tempo tinha parado: alguém terá dado corda às flores: e tudo seguiu.

Manifesto LXVI

Panela ou Então é isto?

escorre o tempo pesado
entre corredores sinuosos
e a náusea do odor esquecido

[quem sois vós
parando a rotação dos dias?]

sobre lençóis rasgados
corpos cansados desistem
tropeçam em nuvens de éter

[quem sois vós
parando a translação das noites?]

um baloiço vazio
uma nuvem parada
um aguaceiro suspenso

[quem sois vós
brincando com os mortais]



Um dia cinzento, Jorge Molder

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pedradas XXXVIII

História

passado:
pinos de plástico colorido
desenham fábulas em esferovite
joelhos dobrados, pernas cruzadas
a vida entra pela porta da cozinha

presente:
corredores de mármore branco
vazios de ti
vento dobrando os cantos do quarto
mantas de humidade velando os dias lentos

futuro:
a morte sai-nos do peito,
silenciosamente




Um dia cinzento, Jorge Molder

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Pedradas XXXVII

Operação

tiro o cabelo e não estou careca
tiro os dentes e não sou desdentada
tiro os dedos e tenho mãos
tiro os braços e consigo abraçar
tiro os olhos e não sou cega
tiro as orelhas e não sou surda
tiro a boca e sei falar

tiro o peito e não encontro o coração

Um dia cinzento, Jorge Molder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XI
eu que acreditava que o vento: era vento.
eu que acreditava que a chuvar: era chuva.
eu que acreditava que os trovões: eram trovões.
eu que brincava: nas escadas para o quintal.
eu que sorria: sorrindo.
eu que tinha medo: do tempo
eu que queria: ficar aí.
eu que nunca acreditei: que me morrerias.

Manifesto LXVI

Porto

uma mão cheia de nada
sempre que a ti regresso
encho os pulmões com o teu granito
vejo o vento na esfera cinzenta
abraço os que esperam

um mão cheia de tudo
sempre que de ti saio
trago o fumo no peito
bebo os pássaros da terra
carrego o peso do teu existir

sempre que em ti penso
tropeço na saudade

Fotografia de Laura Alberto

Hospital de S. João, 8 de Dezembro de 2010

mil cavalos voam lá fora.
alguém permitiu que os abetos corram.
nascem flores dentro do solo.

teus olhos pararam
abertos sobre as órbitas

cortaram os ramos sobejantes,
amarraram os que restam
dentro de brancos lençóis desinfectados

teus olhos ouvem
piscam tocados pelo ar quente

continua o vento lá fora
destemido
seguem-se as folhas ordeiramente

teus olhos minguaram
simplesmente se esqueceram

Um dia cinzento, Jorge Molder

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Poema para uma possível resposta

o frio, sim o frio
o vento, a sua voz rouca
uma folha amarela que cai: é arrastada para uma qualquer sarjeta, numa qualquer cidade
um pedaço sem forma, de um rasgar do papel
a tempestade, no mar aqui tão perto
as línguas de areia que se desenham na esfera,
uma pedra de granito que rola
um risco na terra que separa
o tempo que passou
o tempo que falta
uma gota de água que desaparece
um beijo que se guarda

[Para a Ana Costa, sempre Graciosa, tu sabes a pergunta]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

X
puxamos a gola do casaco para cima: está frio, muito. parece que ultimamente é só isto: frio, mesmo não estando frio. cansados. arrastamos os corpos pelos corredores. vento. debaixo do pesado casacão: o peito, o coração. o coração bate porque assim tem que ser e não porque o quer fazer.
bate: porque um dia amou, porque um dia desejou, porque um dia viu.
frio: mesmo assim dobramos as ruas. observamos as montras. bebemos a aragem que nos gela o estômago. do outro lado: alguém nos vê, sorri de volta, abre os braços. deste lado: abrimos o casaco, tiramos as mãos dos bolsos, descolamos os lábios.
engano: só o frio continua.

Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse, 1920

Manifesto LXV

Enquanto o tambor bate

era:
uma réstia de espuma
flutuando no sal do oceano,
naquela tarde fria
alguém queria manchá-la

ficou:
um rochedo vazio
dilacerado pelas vagas,
durante aquele pôr-do-sol
alguém o teimou esquecer

era:
uma pena leve
um pedaço de asa
uma prega na pele
um osso quebrado

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

IX
andar de baloiço. adorava andar de baloiço: mais rápido, mais rápido. tens que dar lanço com as pernas. não sei bem como é que isso se faz. vá mais rápido, rápido. fechar os olhos: sentir o mundo preso na tábua. abrir os olhos para ver: o céu azul, as nuvens a correrem cada vez mais rápido e rápido. abrir e fechar os olhos. ganhar coragem e largar as mãos. todo o corpo, o esqueleto, preso a uma tábua. nunca: cair, sangrar dos joelhos. lembro-me de minha mãe, do meu pai. pés assentes na areia. vá mais rápido. o som ia e vinha. célere. a Terra é finalmente redonda, ao olhar dos meus olhos fechados. não parar, nunca: enjoo, rápido.
adorava andar de baloiço. ainda hoje.

A view from a hotel window, looking out at Butte, Montana. The Americans, Robert Frank, 1956

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Rasganço


rasgar
toda esta pele para deixar sair o grito
o vazio que se liberta
corrompendo o ar circundante

estilhaçar
os ossos empobrecidos, timidamente cobertos
por toda a carne massacrada
no frio das noites

sangrar
todo esse pus fétido,
conspurcar as pedras
correndo para a sarjeta

não ser este corpo
ser aquele outro, corpo

Manifesto LXIV

Negar

não:
meus braços já não podem
agarrar essa tua figura
fugiu entre as esquinas
desabou por entre escombros e lixo

não:
meus lábios já não desejam
beijar a tua boca
apodreceu sobre a chuva
mirrando sobre a terra

não:
meus olhos não te suportam
trazes um cheiro fétido
descoberto entre as sombras da noite
pintado outrora de azul

não:
minhas mãos não te querem agarrar
sobre as asas do tempo
és brasa apagada
ponto final cinzento


Joy Division-Disorder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

VIII
fazer a inesperada visita. percorrer caminhos estreitos. ameaça de neve. não uma neve tímida, uma neve cinzenta. vasculhar com a pá os detritos. esquecidos no canto. o suspiro que se solta liberta fumo. a neve continua a cair. o crepúsculo desenha-se no fim do carreiro. lápides: partidas, esquecidas, caladas. visitantes fortuitos. continuar: a visita, a procura, a neve.
continua o frio. as tumbas desistem e deixam-se ficar.
saio: pela porta que não reconheço. se não morri até agora. não morro mais.


Massive Attack - Butterfly Caught

terça-feira, 30 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

VI
esperar o tempo que passa. esperar. deitar a cabeça sobre a almofada. acordar. agitar o membros cansados. à espera e ficar: ficar assim imóvel. viajar pelos mapas. perder-se entre as fotografias: memórias de um passado fosco.
VII
quanto tempo tem o tempo? o mesmo tempo que o tempo ainda tem? e é isso. tempos. não: não preciso fingir que está. as pedras foram gastas. debaixo dos pés cansados. pensando numa figura.
e quanto tempo tem o tempo? para descobrir: que hoje já não nos resta tempo.

Pedradas XXXVI

Estilhaço

durante quanto tempo
corre a água sobre o peito
[será o mesmo tempo
em que te abrigas sobre as asas]

cravado na carne
o espinho do tempo
que não chegou a tempo
e sangram os ossos

quanto é o frio
que se aloja na linha da gengiva
[será o mesmo frio
em que te escondes na noite]

abre-se a boca
berra-se o hálito
aos três cantos
de um canto



The Cinematic Orchestra - Dawn
(deixo ficar esta musica especialmente para a Andy)

domingo, 28 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

V
trazer-te bem aqui: dentro. o peito: isolado, frio, sozinho e tu. trazer-te bem aqui: iluminando. fragas graníticas: ecoam o teu nome. trazer-te bem aqui: radiando. calor que queima a entranha. trazer-te bem aqui: quase o principio e o fim. trazer-te bem aqui: tudo foi só: uma ilusão.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

IV
que miragem esta. cem anos passados no deserto. perdidos.
outros tantos na aldeia. achados.
antes de te encontrar. sonhava-te.
o encontro. aprender a dizer adeus. beber o veneno dos braços partidos.
a despedida. matar a figura. esquecer a fórmula.
Pausa.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

III
sabia enquanto o tempo escorria. por entre a cidade moribunda procurava: o rosto que me sorrisse de volta. pernas cansadas arrastando os pés pelos paralelos gastos. eu sabia. mesmo antes de te conhecer. teu corpo nu colado ao meu entre as pedras da cidade. sentia o hálito quente de um beijo: perdido numa tarde de verão. sabia que o tempo passaria: tu. tu uma ténue figura. sei-o: agora.

Tendinites III

trago um facho a arder na mão intensamente
sinto-me estrela caída em terra escura
sobem rolos de pó ao céu cinzento
enquanto aqui se espera
que movimento súbito este de luz
que nos devolve ao céu em desvario

deixa-me tocar-te uma vez,
só mais uma vez
fazer do fumo um toque em tua pele

[agora o que será de nós
outrora lambemos o fruto
entre as sombras da alvorada]

ter-te é ser estrela e escuridão
ao mesmo tempo
e agarrar as horas sem ter tempo

[escorre por fim a água
que lava foi em nós, cansados]

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

terça-feira, 23 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

II
sentir a água a escaldar: agulhas que percorrem o corpo. rolos de vapor sobem: entre o mármore branco. percorrer o corpo com mãos gastas pela memória. fazer de conta que não é nada. o tempo há-de passar: mas não passa. mergulhar a cabeça dentro de água: uma vez: outra vez: outras vezes. a roupa limpa aguarda que a vista. esperar que o dia passe: que os dias passem, vagarosos como só eles. sorrir às pedras que se passam, sentir que dentro só há o imenso: vazio. o tempo há-de passar: consumido pelas brasas: ardendo. o frio cercando. há-de passar, mas não passa. destrói o peito. cega os olhos abertos de medo, nunca passa.

Tendinites II

o terreno precisa de um adubo breve
e o campo da secura uma saída
se o sol viesse matreiro e de repente
pregasse ao mundo uma partida

fossem teus lábios uma gota de água
e morreria com sede
fosse o teu corpo a bruma
perdida na noite
e o orvalho penetrasse a terra até ao âmago

disséssemos então palavras no vento
rondando as montanhas sagradas

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

“o coração é um vasto cemitério” – Heiner Muller

I
seguir o alcatrão com passos decididos. dentro é o medo que impera. o sorriso que se desenha nos lábios é frio: e tu estás longe. aqui está frio, muito frio. o olhar perdeu-se: o olho direito, o olho esquerdo olham em viés para a serra que se ergue ao fundo. ao fundo a estrada e nada. bate silencioso o coração. fechado sobre o peito enegrecido: a pergunta: pausa. afinal basta abrir os braços: agarrar o gelo. entre a corrida e o barulho dissolvido nos gritos: o que resta é o silêncio.

Fotografia de Laura Alberto

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Estrela

ainda ontem acordei
deitada sobre o teu peito nu
dedos teimosos

por trás das cortinas,
a alvorada
e nós aqui, deitados

ainda ontem acordei
na escuridão da tua respiração
bebendo do teu hálito fugidio

em redor, cercando:
o frio
e a pele engelhada de medo

ainda ontem adormeci

Marcantonio, Melancolia 17,Técnica Mista, 153×79 cm, Rio de Janeiro, 2006

Pedradas XXXIV

Dor

um dia
com a fria lamina de aço
hei-de cortar este peito
retalhar a carne que cobre os ossos

um dia
com estes finos dedos
de gelo queimante
recolherei os órgãos apodrecidos

um dia
hei-de acordar só,
sem ti
nem que morra a fazê-lo


Depeche Mode - A Pain That I'm Used To

domingo, 21 de novembro de 2010

Pedradas XXXV

Parede

estou cansada
desta cal branca
rasgando o céu

um vómito
sobe à boca,
do pão que não comi

ela continua
branca
na sua altivez

todo o sangue,
correndo entre a carne,
à espera

no silêncio, na noite, na geada, na solidão, no primórdio, no final

continua branca, nauseabunda
saem dos bolsos os dedos de carvão,
do peito, a lança que a destruirá

Manifesto LXIII

O retrato

ainda não sei bem como,
mas acabei por descobrir
que por trás desses lábios, gaguejas

terá sido o frio do quarto
o entoar do relógio, distante
que te desenhou essa ruga?

ainda não sei bem porquê
mas os teus olhos trouxeram-me
os dedos que não se vislumbram

terá sido o silêncio do papel,
sobre a humidade que escorre
que apagou a tua figura?

ainda não percebi bem o motivo:
porque as fotografias se guardam
sobre a memória de um beijo

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Praesens III

Ficamos:
Gelados,
Nos nossos lares,
Sangrando,
Silenciosamente,
Lambendo as feridas,
Gritando ao canto.

Acabamos:
Prisioneiros.
Longe.


TINDERSTICKS LETS PRETEND CURTAINS ALBUM

A minha cidade

naquele dia frio
em que a vi
soube o que se tinha passado

a chuva corria
rumo às sarjetas
levando o sangue

todo, todo o sangue
e era, e é
tanto
todo este sangue

o vento fugia
entre o frio granito
jocoso, o negro

secos os olhos
tinham-se lhe fugido
a água, o sal

Fotografia de William Greiner, "green wall with hole, bogalusa, LA", 1993

Manifesto LXII

Nem mais um dia

nenhum dia passa sereno
enquanto pousamos sobre a língua cálida
desenhando com dedos tortos
o trilho sobre o ar

nenhum dia se esquece
quando frio gela o coração
parando o presente
suspenso em abismos de granito

nenhum dia se vive
assim
perto da linha areia


Fotografia de Jorge Molder

Aranhão

Nem todas as crónicas são filantropas, interventivas, opiniosas. Esta é sobre um senhor que em tempos habitou o sótão de uma casa, no lugar Largo Heróis da Pátria. A mesma casa onde o meu tio, religiosamente, dava corda ao relógio, subindo para as cadeiras estofadas com o grosso veludo de ramagens verdes garrafa.
Enquanto o meu tio dava corda ao relógio, eu fugia pelas escadas até ao quintal, com pouco mais de dez metros quadrados. Naquela altura em que tudo é, excessivamente grande ou pequeno. Para mim o quintal albergava todas as dimensões do Universo.
A minha tia lá andava atrás de mim, com a velha tigela de plástico, vermelho, cheia dos restos, que não eram bem restos e sim todo o meu almoço daquele dia. Entretinha-me a fugir, naqueles escassos metros quadrados, para parar quando ouvia falar no Aranhão. Então era subir as mesmas escadas, entrar pela porta escancarada da cozinha e esperar.
Entre uma colherada e mais outra, procurava o Senhor Aranhão, pela casa, na clarabóia do sótão. Possuía a minha tia a mestria de sempre encontrar uma verosímil desculpa, um afazer para o Aranhão.
Às terças-feiras saiamos para ir à feira, perdia-me entre as arrufadas e na esperança que quando regressasse desse de caras com o Aranhão, vestido de fato e laço preto, com duas das patas servindo de pés e as restantes de mãos. E mais uma evasiva da minha tia.
Comecei por subir ao sótão, primeiro com a minha tia, porque aquelas escadas de madeira feitas pelo meu tio, poderiam não ser seguras. Depois já subia sozinha, com inúmeras recomendações, cuidado com os tubos da água, os cabos da electricidade e o vitral, cuidado, não caias cá abaixo.
Passei tardes inteiras no sótão à procura do Aranhão, pintei o velho armário que lá estava à espera do fim, arranjei um tapete e duas cadeiras. Enquanto olhava pelas aberturas das telhas para o largo, controlava as entradas na barbearia, as saídas da mercearia e os velhos no tasco. Só não controlava o tal do Senhor Aranhão.
Quando cai nas escadas do quintal e parti os meus dentes, a presença do Aranhão parou, minha tia, com medo, deixou de falar nele. E eu andava triste, como seria possível que ele não me tivesse vindo visitar? Quando minha tia descobriu, desvendou que ele estava muito ocupado a tratar dos seus filhos.
Voltaria a passar os meus dias no sótão, à espera.
Mas houve um dia que a minha tia se vestiu integralmente de preto e muitos outros tantos se passaram até que um dia eu lhe lembrasse do aranhão. Já estava cansada, apenas olhou distante e respondeu que tinha sido a forma de me meter medo. Sorri, disse-lhe que tinha tido o efeito contrário.
É, há crónicas que são crónicas e outras que são memórias dos nossos sonhos.



Tio Alberto, Tia Laura, Menina do Aranhão

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Pedradas XXXIII

Axila

gigante envelhecido,
de espinha quebrada
lambendo os pelos eriçados
navegando no sangue negro

verme viscoso,
com o sorriso sem dentes,
fecha as asas remendas
ninguém nelas se abriga

[enquanto o rios correrem
e enquanto pararem,
desfazendo as grades
enchendo o vazio

são os todos que te olvidam,
só]

Poema podendo servir de posfácio

Pedradas XXXII

Virilha

triste condenado,
com a unha amarela de gigante
raspa a crosta seca
para libertar o líquido fétido
correndo entre estranhos capilares

mirrado ser
de olhos tombando,
bebe o cheiro que se liberta
do rio de verde pus
jorrando do peito corcovado

[ao fim e ao cabo
não és assim tão grande
pois não?]


Mão Morta - Müller no Hotel Hessischer Hof (1997)

Manifestos LXXI

Coragem

sabes, isto deveria ser
um dialogo,
mas não o é

atrás das grades
onde sempre te escondes
não há imagem do meu corpo

sabes, agora deveria existir
uma resposta,
mas há apenas o silêncio

no fundo da lura
repousa aquele que foi
o nosso sonho

sabes, agora trocar-se-ia
um beijo,
mas perdeu-se nas mãos frias

mergulhada numa qualquer poça
de lama fétida,
jaz a história escrita

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Manifestos LXX

Todo

toda eu sou vento:
esquecido
afagando os fios do tempo
distante

toda eu sou chuva:
adormecida
bebida pela boca grotesca
do gigante

toda eu sou onda:
desfeita
na linha de areia que termina
aos teus pés

toda eu sou frio:
perdido
na algibeira de umas calças
velhas

Desenho de Almada Negreiros

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Manifestos LXIX

Maldita

maldita esta tosse,
maldita
não me larga na noite
fria, silenciosa

ah, maldita sejas tu
tosse,
assomando do canto da sala
ruidosa, viscosa

tosse,
tosse penosa
esventrando o peito,
contagiosa

maldita, maldita
sejas tu
ó tosse
ai ai ai ai


Mário Viegas - Os aissss!

Morreste-me

morreste-me
sem nunca termos nascido
no caracol das nossas vidas

fugiste-me
enquanto corria sem ar
na terra que deitavas fora

perdeste-me
nos braços que se quedaram
perante a urina que caia

queimaste-me
no frio que deitaste
do beijo dissolvido no tempo

morreste-me
morreste-me
morreste-me


"Poema" - de Rodrigo Leão, Rogério Samora e Gabriel Gomes

Pedradas XXXI

Despedida

vá, guarda-o bem
nessa caixinha de balsa,
escondido no fundo
não vá partir-se em mil pedaços

vá, esconde-o bem
na dobra do corredor
por onde deambulas
todos os dias

vá, tapa-o bem
sufocado pela manta
que trazes pousada sobre as costas
arqueadas ao teu próprio peso

vá, vê-o bem
enquanto fechas os olhos
e disfarças o pó
que mata


Há uma hora, Mário Cesariny

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Manifesto LXVIII

Não me pareces assim tão bem

cansei
e a língua secou
de tanto lamber esse veneno
escorrendo aos poucos
pelo tronco empedernido

enjoei
e o estômago revirei
à procura do alimento
jogado à podridão
nos teus braços imóveis

beberei
o fim das tuas mãos
apertando o punhal
que nos haveria de libertar
aos dois, dos dois


DEAD COMBO "Viuva Negra"

Pedradas XXX

Quando

quando cair
nesse abismo trilhado,
alguém me há-de erguer

quando sangrar
as entranhas putrefactas,
alguém as há-de limpar

quando os dentes estalarem
sobre as gengivas
alguém sorrirá

quando as pernas se dobrarem
quando os tendões se carcomerem
quando a espalda vergar
quando os olhos se apagarem
quando a boca correr
quando o suor entrar na pele

tiro a negra touca de penas

sábado, 6 de novembro de 2010

três escarros

– olha aquele coração que ali vai.
– sabes, passei a odiar esses gajos, caretas previsíveis, sempre com bocejos nas palavras. uma vez tentei agarrar um deles, gritar-lhe para lhe suster o passo. o gajo olhou com desdém e prosseguiu. Não tem noção da grandeza e que só por ela se pode afastar os mortos. filho-da-puta!
– acorda, não estarás a sonhar? espera, não o digas já, acabaste de adormecer. não é o sonho que aparece, são só dentes podres que te sorriem.
acorda.
– já acordei. e sabes porquê? porque quanto mais perto do sonho, mais longe da utopia. e eu que sempre acreditei na leveza que escorre da im.possibilidade…

– sou o teu despertador, não te esqueças de lhe dar corda.
– sou a tua corda. de que te serve teres os ponteiros se a máquina não funciona?

– ouvi dizer que há o silêncio, nesse teu cemitério de estátuas.
– o silêncio? ... schiu.

Jorge Pimenta e Laura Alberto


einstürzende neubauten, sabrina

Manifestos


Imagem de Zbigniew Reszka
manifesto anti-figurões [e figurinhas]

há-os aos montes os figurões
[já ouviste falar dos figurinhas?]

colam-se na sola dos sapatos, mal-cheirosos
[não sabem andar descalços]

sobem pelas caleiras dos lares
espreitam nas janelas, das casas
[deitam-se no chão
à espera da respiração das rosas]

fervilham em caldeirões gastos
em sangue brando, fedendo.

[ah, druidas do fogo
já nem as rosas sabem que são rosas].

há-os aos montes os figurões
espeto-lhes o garfo, o tridente
deixá-los berrar na noite
[já ouviste falar dos figurinhas?
perderam a coluna vertebral
e passaram a viver em hortos sem luar]

felizmente a morte
escorre sempre pelo tecto.
[e aquece a terra
já com as flores desmentidas].

Jorge Pimenta e Laura Alberto




The national, afraid of everyone

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Manifesto LXVII

não sei do horizonte
ao longe desenha-se uma linha
quisera eu tocar-lhe
dobra-la sobre o peito

não sei do oceano
perto mergulho os pés
mas é secura que me sacia
a fome de querer

não sei do lugar
onde pousar a fronte
e dormir um sono
acordado

Manifesto LXVI

Uno

uma parede vertical para me deitar
um rio transparente para descansar
um par de asas para ficar
uma porta aberta para esquecer

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pedradas XXIX

Caruncho

bem me queria parecer:

que no vento escreveu-se o nome,
o teu nome

que na chuva beijaram-se os lábios,
os meus lábios

que no mar fugiram os braços
os teus braços

resta todo o bolor

Fotografia de Laura Alberto

Manifestos LXXI

Coragem

sabes, isto deveria ser
um dialogo,
mas não o é

atrás das grades
onde sempre te escondes
não há imagem do meu corpo

sabes, agora deveria existir
uma resposta,
mas há apenas o silêncio

no fundo da lura
repousa aquele que foi
o nosso sonho

sabes, agora trocar-se-ia
um beijo,
mas perdeu-se nas mãos frias

mergulhada numa qualquer poça
de lama fétida,
jaz a história escrita

Manifesto LXV

Mercúrio

escorre pesado pelas paredes,
respira-se entre as falhas,
sorve-se pelos dedos,

rumores de eternidades incertas
embalam os inocentes
em cantigas de surdina

rola e enrola
pela coifa repleta
do teu caruncho

Fotografia de Laura Alberto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Manifesto LXIV

Nascer

tira esta pele
que apenas cobre
os ossos cansados,
sangram os joelhos
aninhados no teu sal,
todos os cortes libertam o teu odor

separa toda a carne
apodrecida entre fracos tendões
bocejando aos dias estremecidos,
cegaram-se os olhos
no beco da alma,
todo o corpo é uma nódoa

não recordo a tua face

não recordo a tua face,
cá dentro,
entre braços tombados
e lábios cerrados,
a espiral aperta-se

não recordo o teu sabor,
desço fundo
pelos degraus escorregadios,
para chegar
onde te escondes

não lembro o teu toque,
sob o chão de lodo
o bicho enrola-se sobre si
e faz de conta
que não recorda a tua face

domingo, 31 de outubro de 2010

Manifesto LXIII

(a)Pagar

tiveste:
deitado sobre a mesa
o corpo fresco
embrulhado na névoa da manhã

e agora chove

tiveste:
a carne tenra
paciente esperando
na bancada de mármore branco

e agora venta

tiveste:
o sonho guardado
em comprimidos mágicos,
o sabor da amora na boca

e agora reina o frio

tiveste:
a tela
os pincéis
a luz

e agora
apagou-se a derradeira vela

Pedradas XXVIII

gostava o senhor,
de traçar uma linha recta
que o levasse de A a Z,
sem desvios

desejava a senhora,
uma linha circular,
redonda como os seios
mantendo-a prisioneira

Manifesto LXII

I. Cansaço
enjoam-me,
todas as nuvens que passam
não encontro a caixa
onde as prender

II. Bocejo
vomito,
o sangue que corre
entre as profundas entranhas,
sujem-se as pedras cinzentas da calçada

III. Sonolência
acordo,
para encontrar
os joelhos dobrados
nas juntas de uma qualquer recta

IV. Cair
grito,
sem fim,
e sempre em silêncio,
sozinha

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Paixão

não gosto: de arder lentamente
neste fogo invisível
sentir as entranhas corroídas
entre memórias de ácido

não gosto: de sentir a carne
mirrar sobre a pele
ouvir os ossos estalar
no vazio das noites

não gosto: de ter frio
quando me sento na calçada,
e bem lá no horizonte
o que se aproxima é névoa

não gosto: de voar longe
entre fragas de granito,
gritando alto em silêncio
o teu nome

Einstürzende Neubauten - Youme & Meyou

Manifesto LXI

Tu e Eu

enche-se a banheira
com água que escalda

mergulha-se o corpo nu,
lentamente a carne aquece,
o desejo queima

não há sabão
que elimine este desejo,
as mãos percorrem a púbis

(não podemos cair nisto)

enrolam-se os corpos
calem-se as vozes

sacia-se a sede
da pele estalada
cobrem-se os ossos
com memórias longínquas

(não vamos cair aqui)

longe, bem longe
a língua de asfalto
leva o que de nós resta
bem longe

Manifesto LX

I. Consciência
desenharam-se
mil estrelas
nenhuma tocará a tua face

II. Gula
um corpo deitado ao acaso
lambido pelos dedos do vento,
e o frio que o cerca

III. Delírio
lábios semi-abertos,
acariciados
pela cauda do dragão

IV. Inconsciência
colunas de fumo
negro
penetrando na terra

V. Cópula
a lamina que talha
o peito,
de dentro

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manifesto LIX

On your Knees II

não. não existem mais tardes
fugindo em fumo,
em quartos abandonados de hotel
e o bolor que fica

não. não encontras mais o corpo
deitado,
engelhado de frio
bebendo da humidade que escorre

não.
sangram agora os joelhos
quebram-se as linhas
nas palmas da mão

não.
na tua mão ditaste a hora
a história que ficou por contar

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Manifesto LVIII

On your knees

Não: não quero ser lambida
por sorrisos perdidos
entre a linha do comboio

Não: não quero ser tocada
por nuvens de enxofre
sublimando entre as profundezas

Não: não quero andar
nas fragas dos teus dedos
e sangrar lentamente o sonho

Não: não quero sair
Ponto

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Estudo LXX

Rabisco

se gritar baixo irás ouvir,
a lamina que retalhou o peito,
traçou o destino de um grão de areia,

se me calar alto irás ouvir,
os olhos que cegaram
no caminho negro da chama,

e se eu falar a sério
sem palavras, sem gestos,
vais-me ouvir?

Pedradas XXVII

O mágico

vamos lá da cartola tirar:
um coelho cinzento,
dois pássaros esvoaçantes,
meia dúzia de coloridos lenços,

um sonho,
não sei quê de jogos,
algumas nuvens,
muita chuva,

ora vamos cá da cartola tirar:
dúzias de valiosas moedas
quilos de baralhos de cartas
(e se eu me baralho?)

uma dentada
no bolo da ilusão
duas lágrimas
no canto do quarto

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Manifesto LVII

NNNAAAMMM

só sei que tenho frio,
enquanto escorre o sangue
brotando sem dó da ferida exposta,
acelera-se o bater das pálpebras
daquele tal de coração mirrando sobre o peito,

só sei que tenho frio,
enquanto se mordem as gengivas
estalam-se os dentes,
parte-se o maxilar,
esgaça-se a fraga,

só sei que tenho frio
quando acordo

Manifesto LVI

Reflexo

quando fechar os olhos,
andorinha negra

em que campos voarás tu
fugidia lança
trespassando o peito apodrecido

quando cerrar bem os olhos,
andorinha negra

de que fontes beberás tu
a água falsa
brotada do teu seio

quando abrir os olhos,
andorinha negra

qual a cor da pele
a vestir
no roubo do dia


Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Manifestos LV

Tu

talvez um dia acorde
para me encontrar num quarto
de cinco paredes

na mão o pincel,
defronte dos olhos, a cal


talvez um dia adormeça
num leito sem fundo
de ásperos dedos

na mente,
uma esfumada memória

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Tendinites

Tendinites I

vamo-nos suicidar e vimos já
um saltinho e estamos do lado de cá
a porta ficará entreaberta ao arrependimento
deixemos o batente cair por terra, na terra
e o som como um ser vivo escorregar pelas paredes

dispamos o pó que trazemos
e queimemos a pele com a violência de um cigarro
beba-se o vinho da comemoração
quebrem-se os ossos, apodreçam as gengivas
morramos tu e eu, de mãos dadas apesar da dor

estamos profundamente loucos, que fazemos a seguir?

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pedradas XXVI

Triangular

todas as histórias de amor são isso,
histórias

todos os romances são isso,
histórias

todos os dramas são isso,
amor

todo o amor é isso,
história

Manifesto LIV

Submersão

confesso,
terei esquecido o nome
preso nas margens de um rio
de águas frias

os meses
assim permitiram
que a lama o cobrisse
e toda a areia sufocasse a voz

perdi
os ramos ressequidos,
arrastados pelo tempo,
o tempo irremediável

confesso,
evoquei o esquecimento,
quando no fim
era o teu sangue que corria

Pedradas XXV

O eremita

bem do alto do seu pedestal
nenhuns eram os montes que avista,
outrora esqueceu a cor verde

sentava-se o maneta
na fria pedra aguçada,
o ruído era agora estranho

abria os olhos
para que as nuvens os limpassem
embalados em toda a escuridão

subia, subiu
sonhando espantando,
especado

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Manifesto LIII

Permissão

deixo que me arrastem os pés,
pela sala sem janela
sobre o chão espelhado

arqueia-se o peito
confinado nos braços,
quebram-se a costelas
sobre o leito sujo

deixo que me arrastem os pés
para o quarto do fundo
na casa sem vizinhos

rompem-se as coxas
forçadas nas mãos,
penetra-se a carne
afogada em sangue


Cinematic Orchestra - Dawn

Manifesto LII

Parar

um dia o tempo parou
esqueceram-se os fantoches à boca de cena
voaram dentes de leão no esgoto

e houve um dia em que o tempo parou
redondo
de encontro à cara

e nesse dia
o punhal desfechou o golpe
o sangue correu entre os oceanos

um dia o tempo parou
cansados os relógios ouviram
tristes os dias contaram
a história do tempo que se cansou de ser


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Manifesto LI

A verdade

I
tenho frio
enquanto percorro as ruas da cidade

II
vou procurando
o que sei nunca encontrar

III
tenho sede
de trincar as nuvens do solo

IV
acabo por descobrir
o que recusei aos olhos

V
tenho sono
sempre acorrentado ao sonho

VI
que sonho

Pedradas XXIV

A mentira

I
em bicos de pés
risco o teu nome na areia

II
todas as frutas mirram
presas na árvore

III
com o calcanhar
piso a seiva das nuvens

IV
todas as flores nascem
para dentro da Terra

V
com a mão esquerda
limpo o vento das orelhas

VI
todo o nosso sal
foi guardado em sacos

VII
fechados



Noir Désir - Oublié (live)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Manifesto XLVII

A arte de retalhar

sobre a bandeja de prata,
a carne vermelha,
à espera

afiem a faca, Senhores,
ansiosa por retalhar,
os pedaços encomendados,

goteja timidamente o sangue
pelas tábuas de madeira,
longo

Senhores, aproximem-se,
escutem o tambor clamando,
o derradeiro

sorve-se o odor a ferro
entre linhas de humidade
cansadas

levantem-se Senhores,
dos vossos pesados cadeirões,
ela aguarda calmamente, à vossa espera

Manifesto L

Lost

tu sabes que tenho medo,
as bolhas tornaram-se gretas,
os pés não conseguem andar,
e os olhos não sabem o caminho,

tu sabes que tenho frio,
o manto não tapa os ombros,
e a chuva teima em cair
nos dias de sol da cidade

tu sabes que sinto fome,
apodreceu o pão que guardei
dias a fio no saco de uma vida,
esquecida ao som dos minutos

tu sabes que não tenho tempo,
o tempo que agora tenho
foge entre os grãos de areia

Manifesto XLVIII

Sentidos

que cantem as barras de ferro
arriando contra si

que escutem os lábios
o rebentar da sua pele

que sorvam os ouvidos
o sangue gotejante

que vejam os olhos
o vento fugindo nas searas

que se escondam no porão
as histórias de papelão

Robert Frank, NYC, Bleecker Street, 1993

Pedradas XXIII

O quarto dos brinquedos

o papel de parede, com as suas cores perdidas,
começa por se desprender do estuque

sempre imóveis
nos seus pedestais,
as bonecas com caras de porcelana,
olhos vidrados na linha do horizonte,
ali tão perto

pendem fios eléctricos do tecto abobado
nem as teias de aranha aguentam no lustre

sinistrados,
os velhos carrinhos de brinquedos,
algures esquecidos nas linhas de comboio
das maquetas pousadas no soalho,
ali tão distante

fechado a sete chaves, o velho quarto,
não vá alguém ali entrar, mas ninguém quer brincar

Robert Frank, The Road Week

domingo, 10 de outubro de 2010

Léria

se não foi esta a história,
o que foi afinal?

(teimosas estradas paralelas
sequiosas de vento
cruzadas num instante)

o que foi afinal,
se não foi esta a história?

(tímidos braços de tempo
emaranhados pela encosta
de quem os Deuses se olvidaram)

se não foi esta a história,
o que foi afinal?

(que importa que seja de prata
o punhal que se crava no peito
o fim?

o que foi afinal, se esta não foi a história?

Manifesto XLIX

Tio Alberto

um qualquer dia, num qualquer campo perdido,
sentado sobre a erva molhada,
limpará, finalmente, a bereta
com um sujo pano de flanela,

religiosamente a colocará na sua bolsa,
e se os joelhos o permitirem
subirá ao mais alto rochedo,
sem binóculos,

(daqui nada se avista)

tenho eu o teu apito,
guardado na mão fechada,
sei bem como o usar, quando a hora chegar

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Manifesto XLVI

O sumo

tentei espremer uma laranja
e nada sei do seu interior

os copos de cristal
não se encontram no armário vazio
e a sede sobe
entre fragas de granito

daqui
pequeno tornou-se o vale,
fria sempre foi a chuva que cai

perto e longe

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Pedradas XXII

A receita

e o que vai sobrar?

um sol enrolado na areia
duas vagas frias na noite
três gritos perdidos no azul
quatro pedras de sal cravadas no olho esquerdo
cinco réstias de concha abandonadas nos pulmões,
seis salmos deitados ao vento

e o que vai sobrar
de nós?





Fotografia de Pedro Polónio, Escadas, A Descida
http://club-silencio.blogspot.com

Pedradas XXI

Na cruz

hoje, provavelmente,
não vestirei o preto
que importa as tábuas de pinho
em cruz a sombra projectada no solo
pregos de ferro empobrecido

brancas vestes arrastando na lama
a solidão cercando das traves
o silencio enterrado entre os prados

RIP

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Manifesto XLV

Aleijada

não consegui juntar as letras,
as sílabas,
dizer a palavra
ficou cravada no peito
largou por si, o rio de sangue,
ao que parece

cerrei a mão e a areia fugiu,
fugiste-me
entre névoas de pó
ao que parece

agitam-se as cortinas
com a noticia da chegada

ao que parece
sonhamos acordados,
perante um espelho partido


Einstürzende Neubauten - Stella Maris

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Pedradas XX

Sobras

II

que se cumpram os dias, as noites,
passem os anos, águas correndo
a mesa de mármore será ocupada

limpem-se as facas,
afiem-se suas laminas enferrujadas
o bolo repousa na mesa
apodrecido pela espera
embrulhado no bolor do silêncio

com um cordel
ata-se a etiqueta
no dedo grande do pé

Pedradas XIXX

Sobras

I

o inventário imposto
sem ordem
e aqui restámos,
presos entre colunas, duas,

saíram:
palavras atiradas ao acaso,
suor exalado em quartos de hotel,
carícias rompendo no vento,

restam:
os lábios secos na névoa,
a carne mirrada debaixo da pele,
as veias vazias, ao descoberto,
os braços pendendo



Einstuerzende Neubauten - The Garden

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pedradas XVIII

Pim. Pam. Pum.

Pim,
cada bala mata um,
mata o bicho enfermo,
sangra a criatura bizarra.

Pam,
cada bala mata um,
destrói a pele que não cobre,
estilhaça o musculo que ferve.

Pum,
cada bala mata um,
apodrece o coração cansado,
liberta o encerrado prisioneiro.

Pim, pam, pum,
cada palavra mata um.

Manifesto XLIV

Talvez

I
talvez um dia,
eu acorde na tua caverna vazia,
desenrole o pêlo e lamba a ferida,

II
talvez um dia,
o sangue seja só uma poça, só,
e as patas correias sem nó,

III
talvez um dia,
o suor deixe de escorrer pelas paredes, cinzentas
e as mãos se juntem eternamente,

IV
talvez um dia,
eu sacuda as costas
quebre os ossos,
beba a água,
enquanto se estica a espinha,

V
talvez um dia,
um dia, talvez

Manifesto XLIII

Abraço

provavelmente,
talvez um dia remoto,
os cafés fecharão,
encerrando as suas portas de vidro aos dias
que escorrem vagarosos,

depois virá o cansaço,
arrastando os pés pela calçada,
as mãos trémulas segurando sujas colheres,
e talvez nesse dia,
quando as asas se partirem e os pires se esquecerem,
a gente volte a fumar

Tom Waits & Iggy Pop - Coffee and Cigarettes

Manifesto XLII

S. Nunca

quando é que vens?
a terra acumulou-se entre as pedras,
sufocam as formigas no pó que se levanta,

recordo os sons que fogem,
nas velhas chaminés de tijolo,
e contemplo as pedras esquecidas,

quando é que vens?
abro as portadas, nem assim o ar entra,
nem assim a história cai,

tiram-se os postiços da boca,
arranjam-se os braços no armário,
os pés lembram o caminho e esquecem o passo,
do horizonte apenas um vago rabisco

e quando é que vens?
é preciso pintar a cal


Nick Cave & The Bad Seeds "Mercy Seat"

domingo, 26 de setembro de 2010

Esquecimento

Ao que parece, esqueci-me dos dias, das horas...
Tudo ficou a fluir, acabando por agarrar o inutil. Irremediavel.
Este, é dedicado aquele, que sempre encontro!


Sabedoria

eu sei amigo,
que na sala oval estão guardados
a sete chaves, os boticários e seus rótulos gastos,

que a madeira range como os dentes,
quando atravesso o estreito corredor, de paredes
revestidas de papel, povoado de desfigurados desenhos,

e eu sei amigo,
um dia não haverá fumo, na mesa vazia do café
em que nos sentamos,

que a língua de alcatrão negro, cobrirá
nossas cadeiras tombadas
sobre a erva,

eu sei amigo:
que as palavras apagam-se do papel,
riscam-se com as unhas,

que as mesmas se bebem da tinta,
esvaem-se pela boca,
fogem-nos do peito,

e ambos sabemos.

Manifesto XLI

Desafio

agora que afiaste a navalha,
deixa que a lamba sem pudor,
entre couraças e viseiras,
a pele!

enquanto guardas a cintura,
deixa que lhe sinta o sabor,
entre músculos e tendões,
o osso!

descerra o cristal fosco
do negro veneno,
entre as veias ainda corre,
o sangue!

abrem-se as coxas e a seiva que escorra,
dance-se,
o tango!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pedradas XVII

O mapa

Ora vamos cá ver:
um pedaço de papel carcomido,
Primeiro, seguir a linha a tracejado,
convém ter a sorte,
de com a bússola descobrir o norte,
20 léguas para aí. Outras 20 léguas
de léguas para ali,
O que sobe, acaba por descer,
O que desce, bate no alicerce,
emaranhado de trilhos,
em soma, todos os passos.
O xis marca o sítio.
Sabe ler?


Fotografia de Robert Frank, From the bus, 1958

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Manifesto XL

A folha

arrastam-se os pés pesados,
sobre as tábuas apodrecidas,
aconchega-se a gola do casaco,
ao pescoço coberto de pele,

é verão na cidade,
mas a chuva escorre pela fronte,
o vento parou nas ruas,
mas destroem-se os braços,

alguém há-de vir
para varrer as folhas,
que restam

Marcantonio, Melancolia 43,Técnica Mista,85×150cm, Rio de Janeiro, 2007

Manifesto XXXIX

Uma vida qualquer

descubro que não há um livro
nas altas estantes,
vazio,
encontro os compêndios
no solo húmido,
bolorento,
passam-se páginas e páginas,
índices e capítulos,
cheias,
lê-se a cor
entranha-se o emaranhado,
caracteres,
na sala o relógio
vai cumprindo a sua obrigação,
horas,

vão sumir os músculos,
enfraquecer os tendões,
os ossos vão acabar por quebrar,
as imagens verterão sobre a pedra,
a pele cairá sobre as mãos,
quando o pó o for finalmente,
fica a história marcada,
no livro esquecido sobre a alta prateleira

Pedradas XVI

Granítica

ilusão da mão tremula,
buscando no alforge
os sonhos de pó,

para longe havia de ir,
a imagem baça
do castelo de açúcar

insistência da mão partida,
percorrendo no mapa
os trilhos

bem longe vão ficar,
os braços caquécticos
ensarilhados em suor

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Pedradas XV

Mudez

empresta-me a tua cegueira,
carregada nessa mala vazia

deixa-me esquecer as searas
onde voaram os pássaros,
esconder da memória o sal
algoz na mortalha de um beijo,

empresta-me a tua cegueira,
para que se esqueçam os braços,
agora que tens o fio da navalha
procura o espaço intercostal

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Estudo LXIX

Ciclo

tenho sempre os bolsos vazios,
rompidos pelos sonhos fumados,
sem sentido,

visto calças sem fundo,
rotas no dente da volúpia,
sem forma,

calço botas cambadas,
exibindo o dedo da solidão
sem sangue,

esvaziam-se os olhos,
pelos vastos campos
onde sempre vou caminhando,

cansou-me todo este horizonte
preguiçoso
à escuta


Fotografia de Robert Frank, Crosses on Scene of Highway Accident – U.S. 91, Idaho, 1956

Pedradas XIV

Com vossa licença

desculpe,
dá-me licença?
tenho pressa em passar.

desculpa,
peço com delicadeza,
é cansativo olhar.

peço permissão,
desculpe,
será a teimosia a falar.

com a vossa anuência,
não peço,
deixo o risco seguir.

Desculpe?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Manifesto XXXVIII

A sina

sonha-se na noite,
envoltos na solidão,
a história de pasmar,

arregalam-se os olhos,
saltando das orbitas,
engole-se em seco,


tolos, somos todos tolos,
deixando,
doidos, somos todos doidos
disfarçando,

bebe-se o ar em golfadas,
desesperando no silêncio,
a tristeza da cor,

saca-se o punhal,
frio,
esventre-se o bicho,

doidos, somos todos doidos,
acreditando,
tolos, somos todos tolos,
escondendo


Fotografia de Ed Van Der Elsken

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Manifesto XXXVII

A lenda

ouvi dizer que no campo não há trigo,
que o vento teimoso cessou o pranto,
debaixo do luto apenas um esqueleto,
esquecido da carne que o revestiu

ouvi dizer que no campo não voam os pássaros,
que a chuva alagou o desejo,
atrás dos óculos apenas uns olhos,
baços da curva do tempo,

ouvi dizer que um dia,
perdeu-se o pente do sonho,
ouvi dizer que um dia


Fotografia de Robert Frank, Car accident—U.S. 66, between Winslow and Flagstaff, Arizona, 1956

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Manifesto XXXVI

O reflexo

Tantas vezes passei na tua rua,
Provavelmente
As mesmas que espequei no umbral da porta,

As chuvas sobre os dedos da estação,
Definitivamente
É difícil colher o dente sem braço,

Pousa o lápis,
A sair daqui,
Apenas uma queimadura


Fotografia de Ed Van Der Elsken

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pedradas XIII

Cegueira

com uma fisga,
vazo-te o olho,
de um outro lado,
ó ciclope de pés afundados no lodo,

tudo bem,
a lama é um bom tempero

Pedradas XII

Cáries

come algodão doce,
cor-de-rosa,
enrolado num espeto,
corado artificialmente,

come algodão doce,
enquanto te apodrecem as gengivas
e caem os dentes,
come algodão doce

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Pedradas XI

O dependurado

cai o sol sobre esta cidade,
ontem eram demasiado pequenas as botas,
hoje fuma-se o sonho num cigarro,
amanhã resta um cordel no bolso

Manifesto XXXIV

ficamos perdidos,
pés mergulhados em alcatrão,
olhos inebriados de luz,

fomos esquecidos,
braços dissolvidos nos silvos,
boca imóvel de medo,

perdemos o rumo,
peito quebrado pelo alumínio,
lábios mortos nas trevas,

estamos distraídos,
fingindo,
rugindo,
estamos silenciosos

Manifesto XXXIII

E tu, não sabias?

tu sabias?
não bastam as asas para voar,
todas as andorinhas fogem sempre,
tu sabias?
não chegam as penas sobre os ombros,
tudo pesa para o solo,

e tu sabias, não sabias?
não basta voar ao som das palavras,
não chega pintar as telas alvas da vida,
e tu sabias, não sabias?
essa velha gaiola de ferro
oxidou-te os passos, cercou-te os olhos,
e tu sabias, não sabias?
tudo isso e isso tudo
é simplesmente inútil.

Pedradas X

Ignorância

deixa cair a palavra
queimando o peito onde a encerras,
cola os braços ao tronco,
ramos secos à espera da queima,
fica imóvel
pasmando sobre a sombra que cai,

dorme teu sono sossegado,
enquanto secam os teus lábios

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pedradas IX

Cup

adorava beber café,
mesmo que frio ou antes de dormir,
de tentar,
todos sabiam que tinha que beber,
o café habitual antes de…

entre uma chávena e outra,
um cigarro e outro,
numa qualquer mesa de um café
acabava sempre à espera,
de tentar…

Articulated Mannequin, Iwao Yamawaki, 1931

Pedradas VIII

Procura-se!

procura-se:
o conforto asséptico de um qualquer invólucro,
recém saídos de um banho de gelo
é tortuoso o ar que se inspira

procura-se:
esfregão abrasivo tipo palha de aço,
a pele estala perante o som que circula,
retraem-se as artérias no estranho abraço

procura-se:
um antídoto fatal em frasco de vidro,
o sangue exala o conspurcado sabor do nada,
deixa que chegue lentamente

procura-se:
desesperadamente,
o tudo dentro de um nada

David Lynch, Inland Empire, 2006

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pedradas VII

O perneta

Quem te disse que isto é terra firme?
Acenou-te com a ilusão do porto distante.
Quem te disse que isto é o norte?

(risos)

Quem disse que isto era
Aquilo que nunca foi?
O mesmo que disse que seria
Tudo o que nunca veria.

Corre, corre, perneta corre.
Fora os trilhos, queimam-se os mapas,
Perneta corre, corre, corre.
Seja a cegueira a tua guia,

Foge, foge, perneta foge!

Manifesto XXXII

veneno

acorda-se sem vontade,
no quarto de janelas sujas,
vagarosos passos de encontro ao armário,
cabides ostentando vestes gastas,

presos ao capote que descobre
as brumas que descem ao piso,
viciados nas imagens baças
dos espelhos cansados,

ousaram em tempos construir
belas torres de branco marfim,
desejaram outrora sentar
em poltronas de veludo carmim,

fogem do sonho,
atrás, a mudez
fogem do desejo,
à frente, a reticência


Fotografia de Man Ray, The Tragic Necklace, July, 1930

sábado, 28 de agosto de 2010

Desconhecido

I

Um mês
E outros mais,
Incontáveis.

Estão os lençóis dobrados,
Descansando sobre uma cama vazia.
Oscilam os cabides do corpo,
Esquecidos da carne que os vestiu.
Tenteia a língua o céu da boca,
Seca do sangue sumido nas traves do chão.

II

Outro mês
E um mês mais,
Imensuráveis.

E hoje que acordei,
Sem vontade de ter vontade,
Com desejo de não desejar.

E hoje que acordei,
Sem o teu corpo cá,
Com o meu corpo cá.

E hoje que acordei,
Com o espelho partido,
Sem sentido de um reflexo qualquer.

III

Deite-se o Homem,
Que as ondas já se arrastam,
Pelas línguas do tempo.

Deite-se o Homem,
Enquanto desenha a espuma,
Os olhos no sargaço.

Deite-se o Homem,
A enxada cobre as pedras,
Com a areia do tempo.

Manifestos XXXI

Self-service

come capim,
agora que a erva que sugavas
amareleceu por fim entre os dentes,

bebe lodo,
esses dedos tortos em concha
carregam a sujidade dos interstícios,

inspira pó,
o mar calou-se de dizer,
deixa a rocha cerrar o tempo no peito

sábado, 21 de agosto de 2010

Manifesto XXX

Naufrago

arquearam as pernas
da espera solitária,
horas a fio na linha de areia,

secaram-se as lágrimas
do suor do desejo,
perdido no horizonte,

cegou-se o beijo
nas dunas destruídas,
ao sabor do vento

sangrou-se o sonho
no relento da noite,
calaram-se as estrelas,

que se apague o som do teu nome

Pedradas VI

Hora da partida

um, dois, três,
ora vamos lá contar,
pelos dedos da mão direita,

uma gaivota malhada,
duas gaivotas malhadas,
três gaivotas malhadas,
quatro gaivotas malhadas,

(bocejo e adormeço)

nunca chegam os dedos,
faltam as mãos, tapam-se os pés

(adormeço e bocejo)

uma gaivota branca,

-Acorda!

Pedradas V

Restaurante

servidas as fatias frias de medo,
sobre polidas travessas latão,
ao senhor da mesa rectangular,

bebido o suor gotejante da noite
em copos de vidro fosco,
os cacos sobre a toalha adamascada,

brancas luvas retiram os talheres,
mira o senhor o espelho,
flutuante quimera,

(chegada é a altura de pagar a conta)

Manifestos XXIX

Tempo

seca a pele,
queimada ao som das linhas do vento,
traçando sulcos de dor
rebentam as veias,
jorram lágrimas de ruidoso silêncio,
agitam-se os fantasmas,
quebram-se os ossos,
com o odor do breu bafiento,

é só uma questão,
uma questão de tempo

Fotografia de Pedro Polónio, http://www.club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Pedradas IV

Lavar as mãos

quando somos chegados a casa,
depois das velhas necessidades fisiológicas,
pensando no almoço a jantar,
no fim de remover o terra, o cascalho,
o melhor até será desinfectar,

não esquecer:
lavar sempre a navalha, também


Fotografia de Jorge Molder

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Pedradas III

Uma vez ou Simplesmente

abrem-se as flores,
morrem as libélulas,
desprendem-se as rochas,
saboreia-se o fruto,
apodrece o pão,
cheira-se o mar,
bebe-se o bolor,

cai-se contra os joelhos,
voa-se sobre nada,

Pedradas II

quer o gnomo fatiar o lodo, charcos envoltos em vapores de enxofre
patas assentes em pântanos de terra, seca sobre as nuvens cinzentas
quer o anão evaporar, cordilheiras de rochas soltas
asas libertas no céu de aço, sublimando aos tártaros

quer o poeta tinta para a pena, quando tinta não é o que lhe falta

Pedradas I

Como ficar?
Como ir?
Como chegar?

Onde se vislumbra o fim?
Onde se teve o inicio?

São as folhas que sobem, de encontro aos ramos?

Um dia há-de o mar beijar a nascente.
Uma semana hei-de ficar no baloiço,
até que os dias mirrem e se cansem as noites.

Manifesto XXVIII

Salteador

mão direita na algibeira, bolso vazio,
mão esquerda oculta, segura-se o revolver,
olhos turvos de pó, limpa-se a alma com o lenço imundo,
ouvidos afiados, atenta-se no eco do pensamento,
todo o pano cobre a boca, os lábios que não sabem,
coxeia, coxeia
enfim, para a prateleira vazia que ocupas

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Manifesto XXVII

Perguntar, diz o povo, não ofende.

-Qual é o sito certo para se colocar um parêntesis?
(Provavelmente para colocar meia, ou até mesmo uma dúzia de palavras, soltas ou não)

-As palavras que se escondem entre esses sinais curvos não são muito importantes no texto onde nadam?
(Firmes muros de tinta, abrigando as letras que se temem, que nunca se dizem, nunca se dirão)

-Então? Quando devo de usar os parêntesis?
(Definitivamente, sem qualquer réstia de duvidas, quando a coragem apodreceu nas tuas entranhas)

Manifesto XXVI

Saídas

Silêncio,
Cansei de te ouvir!

Memória,
Enjoei de tanto te sorver!

Respirar,
Rebentei de tanto evitar!

Ver,
Sujei as órbitas com o teu pó!

Sentir,
Vomito o teu odor!

-Sai!
(E saí)

Manifesto XXV

bocaDOS

o cheiro a azedo domina,
os cestos aguardam, vazios,
sobre o soalho, ressequidos vermes,

músculos abandonando os ossos quebradiços,
tendões lassos desistindo perante dias caleidoscópicos,
olhos vazos em lixo,

não há vento que sacie a sede,
não há mar que me abrace o peito,

não há punhal que trespasse a visão
lá longe, ao fundo


Fotografia de David Lynch