«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 1 de abril de 2015

1 de abril

A minha tia Laura era baixinha e gordinha, de cabelo encaracolado, sempre curto e pintado de preto, quando a idade começou a pregar as suas partidas. Não usava calças, pois não era do tempo delas, mas tivesse ela nascido nos dias de hoje e de certeza que estas seriam peças do seu guarda-roupa. Contudo, a minha tia Laura, não ligava à roupa e só se aperaltava quando tinha de sair de casa, ou para ir às compras, ou ao médico, ou então quando ia sair connosco, era eu miúda e não sabia sequer que aquela seria a minha grande tia Laura. Já com o cabelo era diferente, durante o dia penteava-o várias vezes e, das situações mais caricatas, se tivesse de ir de urgência ao hospital, tentava sempre ir arranjar o cabelo.
Nunca vi a minha tia chorar, mas deve ter chorado muito, mas eu nunca vi. A tia que eu conheci estava sempre a sorrir e a cantar, músicas que eu suponho serem inventadas por si, ainda que não fossem, hoje canto-as como se fossem dela.
Então a minha tia era a pessoa mais alegre que eu conheci em toda a minha vida, brincava comigo e nos jogos, que não sabia as regras, deixava-me sempre ganhar. Sem saber ler ou escrever, apenas o nome, sabia a tabuada como ninguém. Certo é que tentei ensina-la a ler, mas nunca aprendeu nada, percebo agora que talvez não quisesse, pois os segredos do universo ela já os sabia.
Enquanto os meus pais trabalhavam eu ficava na casa dos meus tios, quando fui para a escola, o meu tio Pacheco (Alberto) ia-me buscar até à hora dos meus pais chegarem e me levarem para casa. Nesses dias eu brincava de manhã à noite e a minha tia lá me ia aturando, enquanto fazia as lidas domésticas. Era vê-la no tanque, inverno ou verão, a lavar toda a roupa, apesar de ter máquina de lavar, nunca era usada, e eu cá em cima na brincadeira, Ó tia, o telefone está a tocar! e a minha tia, que era um pouco surda, vinha a correr e nada. 1 de Abril. Era eu escondida na sala à espera que a minha tia passasse e buu, 1 de Abril. Era a minha tia à minha espera e buu, 1 de abril. E era assim o dia todo, que se viria a repetir no ano seguinte.
Talvez tenha sido num desses dias 1 de abril que me prometeu que nunca iria morrer e ficaríamos sempre juntas, talvez num desses dias tenha criado o amigo aranhão, para eu ter medo e comer, acabando por passar os dias a pedir para o conhecer e à sua espera.
Ainda resistiu a uma série de enfartes, nunca emagreceu como lhe mandaram os médicos, Que emagreça ele, e contou comigo muitos dias de partidas e de brincadeiras.

Cresci tia, aprendi que tudo encerrará um fim em si, mas até lá, bu, dia 1 de abril.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

esventrado XXXII

acordo: uns cêntimos no bolso
levanto-me: um rosto que não sei
tento a subida: são cinzas que chovem

deixei que o tempo fugisse
entre as mãos sem o saber
agora que movo os dedos
já nada tenho para agarrar
não sou este corpo, não sou este retrato
sorrio e não me sei eu
choro e não me sei encontrar

penso: que quero eu então
penso: eu que tudo tenho
penso: procuro-me enquanto me perco
penso: vou-me perdendo enquanto me reconheço

e a tinta da china tudo é bonito
e com flores tudo tem um novo aroma
e com música todos os medos se retraem

e eu com alguns cêntimos no bolso

e sem sonhos para comprar