«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

esperei toda a minha vida para ver
o por-do-sol refletido nos teus olhos
deixei-me cair no convés do navio
navegando ao sabor da tempestade
 
fiquei com a pele queimada do sol
vi os ossos mirrarem do frio
enquanto que a carne deles se soltava

quando em terra me vi
descobri a tua lápide sem nome


naufragámos em nós, distantes

terça-feira, 18 de outubro de 2022

sabe tu, animal, que é nas noites que assaltas o meu pensamento, entras sorrateiro conduzido pelo vento de leste e penetras no meu íntimo. tu animal, de carne, de musculo, de sangue. sabe que tens em mim uma amante cega que te conhece pelo cheiro, pelo respirar, pelo paladar do teu corpo.
estremece o animal. estremecem os dois. aproxima-se o fim, presságio das densas nuvens cor de chumbo. o fim alinhava-se nas altas montanhas e ganha forma no vento.
o animal caminha. ela caminha. diferentes lugares. falhadas horas.
a tempestade e o desenho da carne, lado-a-lado. a tempestade.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

o animal aproximou-se de repente, de músculos brilhantes devido ao suor que se acumulava pelo corpo, cabelo rapado e mãos desesperadas. deixou antever uma fileira de dentes, enquanto esboçava um sorriso. uma voz rouca e quente questionou, Eu venho do inferno. E tu de onde vens?

ela vinha do ar, não do céu da atmosfera azul que rodeia a Terra. não teve medo perante a figura e pergunta. com dureza na voz lá respondeu, Ando por aí. Não sei bem de onde venho.

aproximou o seu corpo do dela, dobrou-se ligeiramente sobre o seu pescoço. Inspirou e expirou violentamente. ela permaneceu imóvel, sem se desviar. Não me interessa de onde vens. O inferno não me assusta, nem os seres que por lá rodam. Na verdade, sei por onde andei e isso basta-me.

uma gota de suor escorreu do seu rosto para o seu peito, o ar tornou-se abafado, quase que irrespirável. no céu juntaram-se densas nuvens negras e o vento fez-se sentir quente. o animal continuou a falar, num discurso pouco coerente,

Não foi por correr nos caminhos das trevas que sou banido, deixei-me ceder perante as tentações e devorei os prazeres que me foram ofertados. não sou um ser de aspeto asqueroso, se bem que o meu íntimo às vezes o é. saí quando o meu corpo estava saciado, mas a minha alma não. é tarde. as estações não param. eu não parei. agora estou aqui, animal de nome, com a alma confusa e o corpo faminto.

ela permaneceu imóvel, ouvindo-o calmamente. se o seu coração disparou, o corpo soube disfarçar. se o corpo ganhou forma de boca, ela ordenou-lhe que a fechasse. se a sua pele ganhou as suas cores, ela obrigou que se tapasse. se as suas entranhas gritavam por ele, ela ordenou o seu silêncio.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Tool - Invincible Live

a Tempestade II

tu sabes que vais entrar na tempestade
e ela vai trespassar o teu interior
esmagar os teus músculos
dilacerar os teus ossos

dentro da tempestade
não sangras
não choras
apenas dói e dói muito

e aí, dentro da tempestade
eventualmente
tu irás tornar-te na própria tempestade

terça-feira, 27 de abril de 2021

do outro lado do passeio
misturado entre o cinzento do muro de granito
e a neblina matinal
um desconhecido caminha sem pressas
observo-o
levanta os braços
coloca as mãos sobre a cabeça
e contempla o céu
esperei 45 anos por isto
sem saber

terça-feira, 30 de março de 2021

se a noite é longa e fria
o dia é longo e quente

o silêncio reina na rotação

a voz torna-se rouca
as pernas ganham força

terça-feira, 16 de março de 2021

em loop


sigo o trilho que resta

entre um rio que não se acalma

um corte no joelho lembra-me

de que não se brincam com as pedras

se não te respeitares

respeita ao menos o que te rodeia

digo para mim

um último encher de ar

os pulmões cansados

olhar à volta

ter tudo a andar à volta

e o rio nos meus pés

e as pedras com quem não se brincam