«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 28 de agosto de 2012

desAlinhado XXXVI

todos os cigarros que fumei [e todos os que não fumei]
todo o álcool que bebi [e todo o álcool que pela mesa ficou]
todos os passos que dei [e todos os caminhos onde me perdi]
todos os abismos onde mergulhei [e toda a redenção onde me desencontrei]
todos os palmos de terra que segurei na mão [e todos que atirei sobre mim]
todos os gritos que calei [e todos os silêncios a que dei liberdade]
todas as cicatrizes que desapareceram [e todas as cicatrizes que nunca dei conta] 

nenhuma bala saiu ontem, nenhuma sai hoje 
[ e ]

 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

balada XVIII

de negro se tinge o meu sangue
de vazio se enche o meu peito
e toda uma cidade desfalece no pensamento
entre vultos que se esfumam em cadáveres

de nada servem as memórias
que se guardam em esquinas da memória
esquinas sujas, obliquas, quase cegas
sombrios são os dias que tento despir, os dias 
 líquidos e viscosos que ainda me faltam contar

 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

notas para pseudónimo em forma de lista de compras



I
não esquecer:
de fechar os olhos antes de adormecer
a cegueira teima em atacar as negras noites

II
não esquecer:
de dormir acordada
os sonhos são cantos envenenados onde perecemos

III
trazer sempre no bolso
uma lâmina bem afiada
pois nunca se sabe quando o espelho se parte

IV
perguntar sempre
quanto de mim se fecha num nome
que não sendo meu, sempre me coube

V
abandonar, tentar esquecer
a graça do batismo
que nos leva pela vida que se vai desfazendo

VI
aprender
a dormir com os fantasmas
mortos no ventre

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

[Queridos amigos, companheiros desta minha viagem as férias têm-me afastado dos vossos blogues, apesar de os continuar a ler, é-me difícil deixar comentários pois o tempo é escasso. Tentarei, o mais breve possível, deixar as minhas marcas nas vossas viagens. Muito obrigada a todos.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

notas para naufrágio em Ítaca

I
não será precisa a tua
lamina afiada
disferindo misericórdia

II
de nada serve
coser as tua pálpebras
pois tua cegueira é perene

III
recolhe então à concha
imunda
onde te escondes

IV
pois os braços que se erguem
na tempestade do oceano
trazem mão de degolador

 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

notas para amor ébrio


"eles não sabem que vão morrer"
José Saramago

I
são as sombras que nos desenham
nos paralelos de qualquer cidade
nas noites em que nos perdemos

II
não sei dançar, nunca soube
não sabes dançar, esqueceste-te
os mestres há muito que se foram

III
esvazia as tuas garrafas
enche os teus copos
alguém saberá como limpar os despojos da noite

IV
sem voz, sem silêncio
[as trevas penetram pelas paredes do quarto]
rápido, antes que a última golfada de sangue seque

V
os que brincam com as cinzas
não são os mais destemidos
são talvez os mais tolos inconsequentes

VI
no fim
não haverá urna
que nos sirva

purgatorium XXXIV


XXXIV
Há noites que consigo adormecer. A rotina habitual, o cerrar mecânico das pálpebras: estou a dormir, finalmente.
Durante o sono sonho que morro e não há mais nada, um ponto final paragrafo, uma história que vê o seu fim, uma história que não soube como escrever. Faltou-me a tinta. Embrulharam-se as palavras. Emudeceram-me os silêncios.
Só isto, morri e nada mais.
Mas o temido acordar acaba por se tornar realidade e a vida é essa que se segue, apresentada numa bandeja que nunca consigo alcançar.
E quantas mortes encerrarei nesta vida de grades?

bala número dezoito


um dia
quando todas as casas ruírem
quando todas as pedras forem nuvens de pó
quando o silêncio desconhecer os ouvidos onde se abrigar
restarão as cruzes castigadoras de pedra

e de que adianta a sua sombra no incêndio do tempo?
e quem plantará flores de plástico nas estradas de alcatrão?
o meu nome não cabe numa folha de papel

e de minha fotografia apenas um ténue resquício