«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 29 de março de 2012

meus caros amigos, estarei ausente nos próximos dez dias, depois voltarei ao trabalho
até lá e sempre obrigada por me acompanharem nesta viagem, da qual são também participantes
beijo e abraço!

terça-feira, 27 de março de 2012

purgatorium XVIII


Agora durmo tranquila de noite, o seu bafo tornou-se inexistente. O seu murmúrio calou-se, sufocado em soluços.
Já não consigo ver a cidade, ouvi-la, sentir o seu odor. Tenho quase a certeza que se a observasse agora, como outrora, nua e estendida diante dos meus olhos, já não a reconhecia. Talvez seja esse o motivo que me obriga a manter as cortinas corridas, os estores fechados.
Se a visse agora, nem saberia que a via.
Agora tudo, tudo é apenas mera palavra, escrita com o alfabeto que me ensinaram, mas apenas uma sequência vazia de letras e vogais.
[o vazio está aí, caminha para aqui]
Já não tenho medo: do tempo, do dia, da noite, da enfermidade, de ter fome, de ter sede, do ontem, do amanhã, do hoje.
Já não tenho medo de nada, tenho só medo de mim.
Fotografia de Man Ray, Venus Restaure, 1936

segunda-feira, 26 de março de 2012

purgatorium XVII


Deixei de amarrotar as folhas de papel em bolas de aguçadas pontas. Lentamente foram despovoando o soalho de madeira, dando lugar ao pó, um pó fino e cinzento, como testemunho do tempo vagaroso.
Ainda ouvi os seus ecos durante as noites, abafados pelo negro do ar. Distinguia, nitidamente, os ruídos estridentes da sua morte nas primeiras horas da manhã.
Vieram as chuvas, a estação do frio. Veio o vento seco, a estação do calor. E chegaram finalmente os incêndios, agora resto eu: cinza, só.
Fotografia de Laura Alberto

purgatorium XVI


Deixei ficar a roupa tombada ao pé da cama. Uma rodilha de trapos desbotados e gastos. Não fechei a torneira. Teimei em não destapar o ralo da banheira. Mantive os estores fechados, as cortinas corridas.
Não vi, confesso, não existem reflexos meus nas ainda brilhantes superfícies esquecidas pela casa.
Saí, penso que saí, ouço o som da porta a abrir, o som da porta a fechar, o ranger dos dentes de metal na fechadura, no cansaço da mente. Devo de ter saído de casa, relembro passo a passo o ritual.
Cheia de terra é a estrada que me enfrenta, sem piedade. As suas curvas sinuosas perdem-se sob o meu olhar: o primeiro passo e paro. À espera.
Fotografia do filme Naked City, de 1948, realizado por Julis Dassin 

sexta-feira, 23 de março de 2012

purgatorium XV


As coisas não se resolvem: enterram-se.
Não fiz nada de mim própria. Não deixei que nada fizessem de mim própria, a mim própria.
Que valente paradoxo, mas eu não sou eu, sou o outro. Escondido no armário, saindo para rasgar a carne com os dedos infectos, à queima-roupa, sangrar a besta e rir, sem parar.
Quando eu sou eu própria: nenhuma sombra se constrói sob o sol ardente, nenhuma ave pousa nos meus ombros, nenhuma pegada fica marcada na terra, todas se escondem dentro dela: e ninguém: a sonhar.


quinta-feira, 22 de março de 2012

purgatorium XIV

Um murro. Um murro forte: sinto o nó dos dedos contra a pele, a massa dura do osso rasgar a boca do estômago. Estranha sensação de felicidade. Estranha felicidade que me assalta o peito.
Cuspo sangue. Se tivesse um espelho conseguiria ver uma pasta de saliva e sangue acumular-se nas gengivas. Mesmo que chova, nada me fará esquecer este cheiro ferrugento que se liberta das vísceras.
[Ele arrasta os seus sapatos bicudos pela terra, penteia o cabelo, milimetricamente arquitectado com laca. Vejo o seu casaco branco esvoaçar. Rasga um sorriso no rosto sisudo, e sai, silencioso]
Nota para mim: já que tens de viver, não te esqueças que só se morre uma vez, mas aos pedaços, em bocados.
http://youtu.be/rNVzfeKuqtM

purgatorium XIII


Maldição. Esta prisão sem grades onde me deixaram. Este lugar frio e escuro onde me forçaram a entrar, iludida por lúgubres promessas.
Malditos, os que sorriem do outro lado e alimentam a fome dos seus prisioneiros, libertando o seu odor pestilento.
Maldita seja eu, que sempre vi esta minha cegueira. E amaldiçoada continue, ainda que a raiva se liberte no meu cuspo, no meu sangue, no meu ódio.
Amaldiçoada continue eu, de olhos bem abertos, imóvel.
Fotografia de Raquel Mendes

quarta-feira, 21 de março de 2012

purgatorium XII


O meu corpo minga debaixo da roupa, criando foles no pano desbotado e gasto. Desapareço no corpo que se arrasta, debaixo da pele seca e áspera, entre músculo e carne cansados.
Às tantas a minha morte pertence ao passado, inscrita nos anais malditos. No instante preciso, precioso, em que os relógios pararam de medo ante gritos estridentes de demónios contorcidos.
Afinal não serei eu uma carcaça condenada ao tempo líquido que se espalha, à procura de uns lábios que se beijem?
E as perguntas fazem-se, sem eco de resposta: a vida sangrada, amaldiçoada. [por mim]
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

Polaroid 49

lápide


[sou figura desbotada
pelo tempo da ausência]
e então
percorrias o meu corpo com mãos ávidas
apertavas o meu pescoço rasgando as veias
erguias cidades no violeta marcado na pele
e prometias que um dia o oceano seria nosso
[sou corpo magro
com a mortalha do silêncio]
e então
destruías as cidades que conquistavas
inundavas o peito com manchas de cuspo
e o teu sémen era veneno correndo nas entranhas
[sou frase feita
que não sabe ler]

segunda-feira, 19 de março de 2012

Polaroid 48


homicídio

este peito onde escondo
este musculo cansado, derrotado
estas costelas
que escondem o gemido do meu corpo
esta pele
cobrindo a carne, envolvendo os ossos
esta face
esfacelada de esquecimento
este sangue que me escorre pelo corpo
é o nosso sangue
esvaindo-se pela calçada, sumindo-se na sarjeta


domingo, 18 de março de 2012

purgatorium X


A viagem começa do outro lado, não do oceano, não do continente, de mim.
Esta imagem, a mim só pertence: a língua de alcatrão quente que se estende debaixo dos meus pés, o entroncamento retorcido perante os meus olhos, que já pouco vêem.
A minha imagem, a minha viagem.
Observo as minhas costas, as minhas pernas, a minha cabeça ligeiramente tombada, cansada: a estrada, ao fundo, as montanhas que desconheço o nome, recortando o laranja do fim do dia no céu.
Anoitece, toda a atmosfera veste-se de negro. Uma ameaça de chuva para apaziguar o calor do dia. Nem um resquício de água contudo.
Não devia ter fumado o último cigarro.
O alcatrão some-se violento criando um precipício sem fundo: a decisão, o primeiro passo.
Quando acordo, dou por mim na sala. [Ainda aqui estás?]

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 16 de março de 2012

purgatorium XI


[Já que me vais matar, podias ao menos usar a tua melhor roupa, não?]. Saí da sala sob o violento som da porta a fechar.
Pequenas agulhas percorreram-me todo o corpo, enquanto o vapor da água quente invadia toda atmosfera da casa de banho. Pequenas gotas escorriam pelos azulejos: escrevi o nome, de ninguém.
Não possuía roupa adequada para a ocasião. Vesti um roupão de seda que me trouxeram de Pequim. No espelho o dragão, bordado nas costas, ganhou vida, num reflexo fugaz.
A lâmina estava perfeitamente limpa. Entrei na sala: vazia.
Na parede, a sombra esvanecia perante o cansaço dos olhos. Senti a lâmina forçar a carne: resistência: a sombra caia ao rés da parede.
[Podias ser mais rápida, não?] E então senti que o meu corpo se esvaziava, com a sombra que tombava, de boca aberta.
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quinta-feira, 15 de março de 2012

Polaroid 47

E u se lavou de nosso pecado.
aquele que há tanto é ´longado,
e por quem morro, ai!
O Físico Prodigioso, Jorge de Sena
cama

confessa, confessa que gostas de me ver
espalhada nos teus lençóis, inerte
fundida com o soalho do quarto

confessa, confessa que desejas
percorrer a minha pele com dedos rudes,
beber o suor que te escorre pela boca

confessa, confessa que me queres
apertar a carne fina do pescoço
adivinhar o sangue que corre debaixo da roupa

confessa, confessa que sou eu quem beijas
nas calçadas nocturnas da tua fuga
e agora o que irás fazer?

 
X-Wife - Across the Water

quarta-feira, 14 de março de 2012

purgatorium IX


Fotografia de Laura Alberto

O diabo mostra os dentes, uma fileira branca de dentes perfeitamente alinhados. Inchada, a linha das gengivas numa explosão sanguínea.


Sinto o bafo, o odor pútrido do desejo pela carne. Escorre-me o sangue pela face. O diabo ri-se.
O espelho reflecte o meu rosto ruborizado. Quem vive em mim? Prisioneiro de um corpo gasto.

segunda-feira, 12 de março de 2012

possível elegia a um anjo sem nome, mas também anjos não existem

















[Fotografia de Laura Alberto]

conquistamos a calçada suja
com os nossos passos sem rumo,
debaixo de estações que nos escorreram pela pele:
o sol que nos traçou linhas no rosto
a chuva que nos matou a sede

tomamos a cidade nossa, construímos casas
com flores roubadas dos jardins:
eu esperava por ti no meio da rua ao som de apitos
tu encontravas-me sempre na minha mesa no café
e juntos fumávamos um só cigarro

hoje, estou na tua rua, à tua porta:
tua casa é agora um prédio devoluto
onde nem os pássaros lhe pousam,
restam poucos vidros nas janelas
e das cortinas já nem a cor se lhes conhece

os jardins foram substituídos por granito
uma extensa língua de paralelos a unir os extremos
e nem uma erva cresce nos espaços ínfimos
a paragem já não existe
os bancos de madeira foram removidos,
substituídos por cadeiras individuais de ferro 
as estátuas são as mesmas, frias, inertes,
mortas
e o relógio bem que podia ter parado

não volto aqui, sem saber o
nome dos versos que escreveste
na concha das tuas mãos

sexta-feira, 9 de março de 2012

purgatorium VIII


[Ela hoje está. Está sentada numa pedra coberta por um qualquer farrapo de tonalidade vermelho sangue, um pouco desbotado. Ela hoje está, sentada.
Saiu de casa, antecedeu-se a rotina habitual: escolheu a roupa, lavou a pele, alimentou a fome de comida.
E hoje está no lugar que não é o seu, sentada.]
De todos os percursos, de todos os movimentos o que mais me custa é este de imobilidade, obriga-me a pensar, em nada.

quinta-feira, 8 de março de 2012

purgatorium VII

Sonhei hoje que morria, mas não acordei. De verdade. O que me despertou do meu sono foi uma tosse violenta oriunda do centro do corpo.
Uma sensação de lâminas frias navegando na corrente sanguínea, que na sua passagem por veias e artérias [que sei eu de corpo humano?] as cortavam. Como se todo o meu sangue fosse fugir de mim, numa explosão pela boca.
Depois uma dor aguda sobre o peito, o estilhaçar das costelas, apenas visível pela deformação da pele. E o ar parecia que nunca tinha existido no quarto.
O barulho da tosse. O anunciar de uma qualquer doença fatal.
Não acordei quando sonhei que morria. Sempre estive preparada para morrer. O que eu não estou é preparada para viver.

Fotografia de Pedro Polónio,  http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 5 de março de 2012

cores: todas as cores que sei

hoje vesti-me de azul
para mergulhar nas ondas do teu sabor

hoje vesti-me de laranja
para sentir o calor dos teus lábios

hoje vesti-me de verde
e quase jurei afagar a frescura do teu corpo no fim da tarde

hoje vesti-me de vermelho 
e saboreei o teu suor que outrora me escorreu pela pele

hoje vesti-me de negro
para te deixar partir com a minha paleta abafada no teu abraço

[hoje terminam as cores, obrigada!] 

purgatorium VI


E esta é que é a tal saída escondida? A libertação. anunciada nos livros proibidos das bibliotecas vazias?
De que adianta acreditar? Nos dias? Nas noites? No tempo? No amanhã? Não existem pás suficientemente grandes para carregar com tudo isto. Esta sujidade que se acumula aos nossos pés e nos faz tropeçar.
E agora somos o corpo debaixo do lençol.
Distantes estão os ruídos da infância, quase mudos: os testos, as panelas, as gavetas, a chuva que assustava. Os nossos risos. Nunca te perguntei se choravas? Nunca te vi chorar.
Tu choravas? [Tu fingias, eu finjo agora.]
O sabor exageradamente doce da cevada. O calor da água dentro da garrafa de vidro verde. A melhor sobremesa de sempre.
Não, não sou eu que estou deitada no asfalto. Não merecias que o fizesse, nunca. Eu estou aqui, apenas aqui, à espera.
Estou apenas aqui à espera, só não sei de quê.

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/


sexta-feira, 2 de março de 2012

Obrigada Jorge Pimenta!

O meu amigo Jorge Pimenta do blogue, http://viagensdeluzesombra.blogspot.com/, deixou-me uma das suas  etiquetas de mestre.

Quando fui colocada na escola de Viatodos, o Jorge Pimenta foi, provavelmente, a última pessoa com quem falei.
As primeiras impressões que guardo dele, eram de alguém distante, com um ar um pouco a fugir para o convencido. Provavelmente as primeiras impressões que o Jorge tem minhas, são de alguém um pouco estabalhoada e lunática. Nessa altura, a Laura ainda não tinha nascido, mas começava o seu embrião.
Não recordo as primeiras palavras que trocamos, mas quase posso garantir que remontam ao dia em que ganhei coragem para lhe pedir um livro do António Gedeão.
Com o decorrer do ano, começaram e continuaram, as trocas de cds, de livros e claro, de amizade.
Sem pensar duas vezes, aceitei o seu convite para trabalhar no jornal da escola, O Despertar. Nascia também a Laura Alberto, data de nascimento: 21 de Fevereiro de 2008. O Jorge sabe bem o motivo.
[Amigo, não sou tão boa como tu com as palavras, mas a minha gratidão não se consegue expressar da forma que tu bem o merecias. Obrigada]
Da vida e da poesia.

quinta-feira, 1 de março de 2012

purgatorium V


















Fotografia de Laura Alberto


Um dia deixei de comprar o jornal. Assim economizaria uns trocados, deixaria de sujar as mãos, e também não me iria tornar numa vendedora de castanhas. Por isso, o jornal era perfeitamente dispensável.
As notícias deixaram de me interessar, de nada e em nada me afectavam. Não que vá cair na frase feita de que, são noticias de ontem, apenas tinham deixado de ser importantes nos meus longos dias, que se iam estendendo pela breve eternidade que me restava, dolorosa na minha mente.
Ainda li folhas esquecidas ao acaso pelas ruas da cidade, enquanto esperava pelo autocarro. Ainda fiz o papel de parasita, ao ler as notícias que o passageiro do banco da frente me oferecia involuntariamente.

Depois?, depois desisti. Desisti do mundo, de todos.
E no fundo desisti de mim.
Eu? Desconheço-me.