«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sábado, 28 de abril de 2018


esforço-me para não estar sozinha, desfilando a longa lista de números no telemóvel
esforço-me para não falar sozinha, percorrendo os perfis dos amigos
conforto-me quando sei que ouvem os meus risos

mas encontro-me só, o silêncio da minha voz é cortado pelos gritos do pensamento
a respiração rasga a calmia da floresta
sinto-me e sei-me só e aqui neste lugar tão acompanhada

então o mestre construiu
uns elevados muros de betão
onde as janelas escassas
deixavam adivinhar uma luz fraca
pintada com receio num pálido azul
mandou depois vir correntes de ferro
com as quais prendeu os pés dos esconjurados
e berrou-lhes sempre a mesma cantilena

e eles:
pálidos, magros, de olhos perdidos, de pés descalços, de pernas cheias de feridas, de mentes cansadas, de braços caídos, sem força nas mãos, sem conhecer o sonho

e eles, gritavam:
nem o teu mundo nos consegue conter
nem a tua morte nos faz perder
e essa unha imunda desconhece o que nos faz respirar

depois do Animal, o homem
depois do homem restará sempre o Animal

observo os primeiros rebentos nas arvores
a natureza cumpre se uma vez mais
os Animais regressam e fazem se ouvir

onde antes era frio e sem côr
agora respeitam se as leis nunca impostas pelo homem
da vida nasce a morte
da morte nasce a vida
fácil

quinta-feira, 12 de abril de 2018


a minha caneta escreve aquilo que eu vou-lhe ditando baixinho
por vezes é lenta a fazer o que lhe peço
outras vezes sou eu que não lhe consigo dar trabalho
com ela assino também documentos oficiais
[vénia]
gosto de pegar nela, mostrar o seu corpo de metal e por baixo da tampa deixar adivinhar um aparo
assino rapidamente e guardo-a numa cerimónia pomposa

mas um dia começaram-me a acusar de escrever a vermelho
primeiro não liguei, mas o continuar dos avisos fez-me duvidar da cor da minha caneta
abri então um inquérito para perceber afinal qual a cor
castanho, vermelho, cor de vinho, vermelho-sujo, vermelho-limpo
não encontrei unanimidade



porra, a minha caneta escreve violeta
[cor inscrita na caixa]
alias, escreve todas as cores que eu quiser
fala de todos os lugares que vi
conta todas as histórias que presenciei
diz o que eu quero dizer e disse
diz o que eu queria dizer e não me era permitido
mas repito e insisto:
a minha caneta escreve a cor que eu lhe digo
só tenho pena é que não a saibam ver

[por baixo da roupa eu sei que estou nua e tu?]

terça-feira, 10 de abril de 2018


a maior parte das vezes estou com a luz apagada
hoje foi um desses dias, até que alguém entrou fechou e o interruptor
não gosto de ilusões, nem de luz falseada
esperei voltar a ficar sozinha: apaguei a luz, abri os estores
no quadro de cortiça, um conjunto de pionés sorria-me
devolvi-lhe o sorriso, não estava só

terça-feira, 3 de abril de 2018

quando metade dos pés tocam o ar rasteiro
diante de um fosso que se estende debaixo dos teus olhos
ainda que a gravidade te puxe, ainda que tu tenhas decidido cumprir as leis da física
ergue a cabeça um pouco e verás
que diante do abismo também se estende o céu

fim do dia:
chegar a casa, tirar a máscara do sorriso, sim está tudo bem
colocar a máscara do eu consigo, eu faço, sim está tudo bem
dormir: não, não está tudo bem, não vês?

o homem não pode voar
o homem não respira dentro de água
o homem não é eterno
o homem não pode morrer

mas voa, nada, vive e mata
o homem merece morrer

enquanto acreditar irei levantar-me
se tudo fizer sentido a batalha também o fará
se correrem rios de sangue, que se homenageiem os que padeceram
se a terra for nossa, que se pintem novas bandeiras

quando o amor me faltar, não se preocupem com a minha morte, eu dela tratarei
travessa Fernão Magalhães, 168

o alto muro de dois gigantes encavalitados
é agora um poço que toca o submundo
cheio de água esverdeada que não estaria nos planos
alheios ao passado daquelas pedras, engenheiros medem e medem, traçando riscos em cima de riscos, em cima de números, as máquinas operam sem pensar, libertando apitos sonoros
ergue-se um novo muro, ainda tapado, onde os trabalhadores se equilibram, haja segurança, viva o betão
restam as portas de entrada, onde atravessando por elas descobri toda a terra que foi tirada
24-20, tudo tem preço
amanhã começa o futuro

neste preciso momento eu não estou cá
também não estarei por aí, onde me procuras
eu neste momento não sou eu
também não sou aquela que julgas

neste momento eu não estou e não sou