«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

nocturnos

deixa que seja a noite a minha amiga
deixa que seja o frio o meu aconchego na solidão
deixa que o negro seja a cor que eu visto
deixa-me viver nas trevas
deixa-me observar a escuridão

no sangue que corre
na carne quente
no tendão que estilhaça
no bafo frio do monstro
eu sei que vivo

terça-feira, 27 de novembro de 2018

do outro lado que não eu

amava-o
ainda que nunca lhe tivesse dito
ainda que desconhecesse o toque dos seus lábios
ainda que ignorasse o aperto capaz dos seus braços
amava-o

amava-a
sabia de cor a suavidade da sua pele
reconhecia o odor que o seu corpo emanava
sentia o calor que o seu peito libertava
amava-a

amavam-se
corpos violentos contra o outro
costas contra a parede
carne que se moldava
suores, sangue e lágrimas que se misturavam em perfeita alquimia

em silêncio, porque as palavras que se dizem
podem ser perdidas e devem ser esquecidas

amaram-se


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

se ainda que amanhã não encontre em mim forças para sorrir, se a força me faltar e as minhas mãos forem substituídas por outras que não minhas e eu as sentir trémulas 

então quero que saibas que os dentes tenho-os cerrados, as unhas cravam-se na pele da palma das mãos, as pernas fraquejam e tentam ceder à gravidade

então quero que saibas, que o sangue ainda corre e o coração, esse ainda bate

sexta-feira, 22 de junho de 2018


chega-me ao ouvido um lamento comedido
uma doce canção de embalar perdida nos tempos idos
que hoje ninguém sabe cantar
[se é uma canção de embalar não poderá ser um lamento]
se nestas terras é o verão que chega, noutras é o inverno que começa
e a voz doce e trémula vais percorrendo o espaço
ouço-a, ora claramente ora imperceptível
[se não está ninguém contigo, nada podes ouvir]

a chuva parou, não tenho fome, nem sede sei ter
os primeiros raios de sol rasgam as nuvens pesadas
não quero ouvir os que de mim se acercam, apenas aquela canção de embalar



quando chegaram os camiões com provisões, para além do pão que em breve seria consumido seco, descarregamos também caixões, com etiquetas sem nome

agora, o meu amigo, do outro lado da trincheira, acena-me um adeus antes de disparar, devolvo-lhe a graça e cumpro o meu papel nesta crónica sem nome

o céu cor de chumbo cobre o solo lamacento, abraçando os mortos num último conforto possível

ouve-se o silêncio misturado com gemidos que findam em gritos, sinto que o meu coração ainda bate, o ar ainda entra pelos pulmões. não sou de rezar, mas benzo-me e choro simultaneamente.

do outro lado da trincheira os meus olhos não alcançam a mão do meu amigo.

[que nenhuma guerra seja feita em meu nome, alimentada com o meu trigo, eu feliz vivo aqui neste lado, alheia à trincheira, não protesto. não em meu nome]

domingo, 13 de maio de 2018

o poeta que pensava não ser ninguém, escrevia que “não sou ninguém”. bebo as suas palavras, cada uma delas encontra em mim, todo o significado. sinto-as, respiro-as em mim. pego na caneta e tento esboçar o que sinto: um número infindável de riscos, de folhas estragadas.

suspiro, sendo eu de verdade ninguém

quinta-feira, 10 de maio de 2018


o monte não chamou ninguém aos seus trilhos
a chuva não pediu que a viessem beber contrariados
nenhuma estrada suspirou pelos passos que a correram
a erva daninha entre os espaços dos paralelos não pediu para ser destruída

tu vieste, insistindo em contrariar a ordem natural das coisas
agora terás de lidar com isso: aguenta-te
olhou-me então nos olhos, deixou-me adivinhar umas órbitas líquidas, cheias de caminhos sinuosos ladeados de altos abetos, eucaliptos e pinheiros do monte, juro que senti o cheiro a terra molhada. com as suas mãos ossudas agarrou as minhas, eu que não sabia o nome da guerra, desconhecia a dor de ter fome, ignorava o que seria ver morrer os entes que nos são queridos.
enquanto da morte falas, enquanto a morte temes, recorda que um dia serás tu do outro lado e o fim escreve-se com ponto paragrafo, cabe-te a ti escolher o caminho que lá te levará.
deixei-me ficar em silêncio, imóvel, a pensar, os dias a contar e ainda hoje penso o que desespero
quando ontem peguei na rola cinzenta que estava no meio da estrada, tremia por dentro. fugiu das minhas mãos uma vez, para cerca de meia duzia de centimetros. pensei que ia morrer quando vi o sangue dela nas minhas mãos. desci a rua até à casa dos meus pais, durante esse pequeno percurso chamei-a Lázaro. minha mãe tinha a janela aberta, como tinha Lázaro nas minhas mãos, chamei por minha mãe para me abrir a porta.
logo arranjamos um ninho, com um pano de flanela. lavei o sangue das mãos e desde aí não vi mais esse liquido vermelho. fiz festas no pescoco da Lázaro, que me respondeu com um fechar de olhos.
voltei ao local onde apanhei Lázaro para perceber se tinha perdido muito sangue e encontrei três distintas poças de sangue.
passei o resto do dia a ir ver Lazaro que já se tinha mexido varias vezes.
voltei a casa sempre a pensar que iria fazer quando recuperasse. troquei mensagem com minha mãe, continuava na mesma.
hoje de manhã Lázaro estava quentinha, mas não comia. minha mãe disse me que se não comesse iria morrer.
meio dia, Lázaro não comia, era bébé, não o sabia fazer.
continua sem comer, dizia me minha mãe do outros lado do telemóvel. olhei o ceu cinzentoe disse para mim, não és Deus.
minha mãe ligou me, 14:22, atendi e disse Lázaro morreu. minha mãe disse que morreu entre as suas mãos e as do meu pai, não sofreu ainda era bebé.
tentei não chorar, estava na escola, subi as escadas a pensar, não és Deus, não és Deus, não podes fintar a morte, não podes. Ponto!

237

o homem que hoje se enterra
teve pai, teve mãe
brincou, muito ou pouco
chorou, muito ou pouco
teve medo, muito ou pouco
teve coragem, muita ou pouca
terá amado, terá sido amado


teve um pai, teve mãe
foi o sonho de alguém
que o universo lhe desejou

o homem que se enterra
há muito que morreu
leva um numero, só
e que levo eu
filha da mãe
filha do pai
mãe de um universo

um dos sítios onde nasci é agora um fosso de terra amarelada e uma gigante poça de água, onde se firmam os alicerces de um hotel
não consegui guardar tudo o que queria, mas o que foi possível.
uma chave sem fechadura, uma placa sem porta

aprendo dia após dia que as nossas bugigangas apenas tem valor para nós
perante a fundura das novas fundações descubro me viva

sábado, 28 de abril de 2018


esforço-me para não estar sozinha, desfilando a longa lista de números no telemóvel
esforço-me para não falar sozinha, percorrendo os perfis dos amigos
conforto-me quando sei que ouvem os meus risos

mas encontro-me só, o silêncio da minha voz é cortado pelos gritos do pensamento
a respiração rasga a calmia da floresta
sinto-me e sei-me só e aqui neste lugar tão acompanhada

então o mestre construiu
uns elevados muros de betão
onde as janelas escassas
deixavam adivinhar uma luz fraca
pintada com receio num pálido azul
mandou depois vir correntes de ferro
com as quais prendeu os pés dos esconjurados
e berrou-lhes sempre a mesma cantilena

e eles:
pálidos, magros, de olhos perdidos, de pés descalços, de pernas cheias de feridas, de mentes cansadas, de braços caídos, sem força nas mãos, sem conhecer o sonho

e eles, gritavam:
nem o teu mundo nos consegue conter
nem a tua morte nos faz perder
e essa unha imunda desconhece o que nos faz respirar

depois do Animal, o homem
depois do homem restará sempre o Animal

observo os primeiros rebentos nas arvores
a natureza cumpre se uma vez mais
os Animais regressam e fazem se ouvir

onde antes era frio e sem côr
agora respeitam se as leis nunca impostas pelo homem
da vida nasce a morte
da morte nasce a vida
fácil

quinta-feira, 12 de abril de 2018


a minha caneta escreve aquilo que eu vou-lhe ditando baixinho
por vezes é lenta a fazer o que lhe peço
outras vezes sou eu que não lhe consigo dar trabalho
com ela assino também documentos oficiais
[vénia]
gosto de pegar nela, mostrar o seu corpo de metal e por baixo da tampa deixar adivinhar um aparo
assino rapidamente e guardo-a numa cerimónia pomposa

mas um dia começaram-me a acusar de escrever a vermelho
primeiro não liguei, mas o continuar dos avisos fez-me duvidar da cor da minha caneta
abri então um inquérito para perceber afinal qual a cor
castanho, vermelho, cor de vinho, vermelho-sujo, vermelho-limpo
não encontrei unanimidade



porra, a minha caneta escreve violeta
[cor inscrita na caixa]
alias, escreve todas as cores que eu quiser
fala de todos os lugares que vi
conta todas as histórias que presenciei
diz o que eu quero dizer e disse
diz o que eu queria dizer e não me era permitido
mas repito e insisto:
a minha caneta escreve a cor que eu lhe digo
só tenho pena é que não a saibam ver

[por baixo da roupa eu sei que estou nua e tu?]

terça-feira, 10 de abril de 2018


a maior parte das vezes estou com a luz apagada
hoje foi um desses dias, até que alguém entrou fechou e o interruptor
não gosto de ilusões, nem de luz falseada
esperei voltar a ficar sozinha: apaguei a luz, abri os estores
no quadro de cortiça, um conjunto de pionés sorria-me
devolvi-lhe o sorriso, não estava só

terça-feira, 3 de abril de 2018

quando metade dos pés tocam o ar rasteiro
diante de um fosso que se estende debaixo dos teus olhos
ainda que a gravidade te puxe, ainda que tu tenhas decidido cumprir as leis da física
ergue a cabeça um pouco e verás
que diante do abismo também se estende o céu

fim do dia:
chegar a casa, tirar a máscara do sorriso, sim está tudo bem
colocar a máscara do eu consigo, eu faço, sim está tudo bem
dormir: não, não está tudo bem, não vês?

o homem não pode voar
o homem não respira dentro de água
o homem não é eterno
o homem não pode morrer

mas voa, nada, vive e mata
o homem merece morrer

enquanto acreditar irei levantar-me
se tudo fizer sentido a batalha também o fará
se correrem rios de sangue, que se homenageiem os que padeceram
se a terra for nossa, que se pintem novas bandeiras

quando o amor me faltar, não se preocupem com a minha morte, eu dela tratarei
travessa Fernão Magalhães, 168

o alto muro de dois gigantes encavalitados
é agora um poço que toca o submundo
cheio de água esverdeada que não estaria nos planos
alheios ao passado daquelas pedras, engenheiros medem e medem, traçando riscos em cima de riscos, em cima de números, as máquinas operam sem pensar, libertando apitos sonoros
ergue-se um novo muro, ainda tapado, onde os trabalhadores se equilibram, haja segurança, viva o betão
restam as portas de entrada, onde atravessando por elas descobri toda a terra que foi tirada
24-20, tudo tem preço
amanhã começa o futuro

neste preciso momento eu não estou cá
também não estarei por aí, onde me procuras
eu neste momento não sou eu
também não sou aquela que julgas

neste momento eu não estou e não sou

domingo, 18 de março de 2018

bilhete de identidade

o meu nome é ninguém, tenho 41 anos de vida, quase 42
nasci em Abril como tantas outras pessoas
tenho uma família, tenho uma profissão que gosto, tenho emprego
continuo a ser ninguém, com os meus 41 anos
tipo sanguíneo A +, ADN em espiral como todos da minha espécie
não sei o significado da fome, nem da guerra
o meu nome é ninguém e apesar de os meus amigos me tratarem pelo meu nome
o meu nome continua a ser ninguém e estou só
egoísta

enquanto à sua volta morrem os animais
enquanto à sua volta padece a natureza
enquanto à sua volta morrem inocentes
enquanto os outros são apenas números que desfilam nos rodapés dos noticiários
enquanto são os outros e não ele
enquanto ele não se torna num cadáver como os outros
vai desfiando a vida e lamentando a vida que cumpre

quarta-feira, 14 de março de 2018



ainda que me cubram com a mais pesada terra
vinda dos quatro cantos do mundo
ainda que se esqueçam dos míseros cêntimos
para a divida pagar ao barqueiro
não serão os vossos rosários gastos que me vão salvar
não serão as falsas rezas que me trarão descanso eterno


no meu peito sinto as entranhas em fogo
que nasce do fundo escondido e se alastra
pelos ossos, pela carne, pela pele
soltando-se num interminável grito

e se hoje é a dor que me cobre as pálpebras
e se hoje é negro o meu corpo
amanhã ou depois erguer-me-ei
para me enfrentar, para me vingar
por que aquilo que me consome é o que me dá vida

terça-feira, 13 de março de 2018

desenho do silêncio

tudo em ti é silêncio:
as mãos que agarram
os braços que apertam
os abraços que não dás
a palavra que deixas morrer
as frases que esqueces antes do começo

tudo em ti é silêncio
tudo em ti sucumbe sem saber nascer
tudo em ti é silêncio, é morte, é saber nascer

terça-feira, 6 de março de 2018

dia de tempestade

as árvores não dobram com o peso da chuva
as árvores não quebram com a força do vento
as árvores sucumbem com a estupidez dos homens

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018


venha cá, venha cá, consegue ver ali? que lhe parece?

hum, não sei bem, não se consegue visualizar bem.

ali, ali ao fundo, não vê? ah, torna-se claro como água, ora vejo

vai-me desculpar, mas não consigo

oh, não me diga isso, colega, vê se perfeitamente

pois, mas eu não

vá, abra bem os olhos, ali...

abertos, bem abertos já eles estão e nada

meu caro amigo, então observe outra vez

nada

ah, meu grande amigo, meu querido amigo é só querer

nada de nada

ora deixe-me dar-lhe um grande abraço enquanto você espreita para lá

continua, nada de nada



[e nisto estiveram, horas, dias, tempo e tempo]




bem, agora talvez eu consiga ver qualquer coisa

ah, que alegria

sim, nada muito bem definido, mas de certeza que algo se avista

ah, como folgo em saber

sim quase de certeza que vejo

sabia que a razão o traria para o meu lado

custou pois, e que me diz a um café, meu amigo

ah, desculpe tenho de ir, há mais para fazer ver
esperança:
todos os dias, à mesma hora, passo por uma senhora que espera pelo autocarro, calmamente na paragem. chamou-me atenção, quer pela idade, quer pela cor do traje, negro. pelo seu olhar parado e quase vazio, pelo dobrar das costas, pelos lábios que se encontram a mirar o chão, suponho ser viúva. durante 16 meses vi esta imagem, às vezes nem precisava de olhar, pois sabia-a lá. anteontem estava, como era sua função, no seu posto, mas desta vez trajando um casaco beje, com o olhar à procura do autocarro. e é só.
deu-lhe uma pequena caixa preta, rematada com uma tampa prateada e uma pequena chave. disse-lhe:
aqui deverás guardar os teus sonhos, os mais ridículos e impossíveis de ver a luz do dia. depois quando nada tiveres a fazer, vens aqui e tiras um à sorte.
pegou na caixa que observou de todos os ângulos possíveis e replicou:
e se perder a chave, como farei?
do outro lado ouviu:
não me digas que essa caixa chega para todos os teus sonhos...
nos campos de algodão a felicidade é simples, com o céu como guardião aceitam-se as estações tal como elas são, tal como elas surgem
depois veio o poliéster e tudo se tornou mais complicado, o homem que anteriormente oscilava entre bondade e maldade, olha agora para o seu centro de massa e tende a cair para aí...
e isso brilha? ah sim, brilha, consigo ver ali
claro que não brilhava, mas não era eu que a ia desapontar, por isso disse-lhe, sim brilha, é só quereres que vês brilhar, olha ali.
contente foi se embora, com o cintilar no olhar.
eu fiquei por lá, ainda havia de me cruzar com alguns cegos amargurados, mas depois vi outra vez o gobelé brilhar


quando te sentires sozinho, faz-me um favor

olha bem lá para cima e descobre que onde vês escuridão podes bem encontrar uma galáxia para numerares

precisas apenas de acreditar e olhar, ela aparecerá

se noutro dia sentires medo, procura a tua galáxia e lembra- te de como tiveste de aprender para a encontrares, aí talvez eu exista apenas guardada no teu olhar