«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018


venha cá, venha cá, consegue ver ali? que lhe parece?

hum, não sei bem, não se consegue visualizar bem.

ali, ali ao fundo, não vê? ah, torna-se claro como água, ora vejo

vai-me desculpar, mas não consigo

oh, não me diga isso, colega, vê se perfeitamente

pois, mas eu não

vá, abra bem os olhos, ali...

abertos, bem abertos já eles estão e nada

meu caro amigo, então observe outra vez

nada

ah, meu grande amigo, meu querido amigo é só querer

nada de nada

ora deixe-me dar-lhe um grande abraço enquanto você espreita para lá

continua, nada de nada



[e nisto estiveram, horas, dias, tempo e tempo]




bem, agora talvez eu consiga ver qualquer coisa

ah, que alegria

sim, nada muito bem definido, mas de certeza que algo se avista

ah, como folgo em saber

sim quase de certeza que vejo

sabia que a razão o traria para o meu lado

custou pois, e que me diz a um café, meu amigo

ah, desculpe tenho de ir, há mais para fazer ver
esperança:
todos os dias, à mesma hora, passo por uma senhora que espera pelo autocarro, calmamente na paragem. chamou-me atenção, quer pela idade, quer pela cor do traje, negro. pelo seu olhar parado e quase vazio, pelo dobrar das costas, pelos lábios que se encontram a mirar o chão, suponho ser viúva. durante 16 meses vi esta imagem, às vezes nem precisava de olhar, pois sabia-a lá. anteontem estava, como era sua função, no seu posto, mas desta vez trajando um casaco beje, com o olhar à procura do autocarro. e é só.
deu-lhe uma pequena caixa preta, rematada com uma tampa prateada e uma pequena chave. disse-lhe:
aqui deverás guardar os teus sonhos, os mais ridículos e impossíveis de ver a luz do dia. depois quando nada tiveres a fazer, vens aqui e tiras um à sorte.
pegou na caixa que observou de todos os ângulos possíveis e replicou:
e se perder a chave, como farei?
do outro lado ouviu:
não me digas que essa caixa chega para todos os teus sonhos...
nos campos de algodão a felicidade é simples, com o céu como guardião aceitam-se as estações tal como elas são, tal como elas surgem
depois veio o poliéster e tudo se tornou mais complicado, o homem que anteriormente oscilava entre bondade e maldade, olha agora para o seu centro de massa e tende a cair para aí...
e isso brilha? ah sim, brilha, consigo ver ali
claro que não brilhava, mas não era eu que a ia desapontar, por isso disse-lhe, sim brilha, é só quereres que vês brilhar, olha ali.
contente foi se embora, com o cintilar no olhar.
eu fiquei por lá, ainda havia de me cruzar com alguns cegos amargurados, mas depois vi outra vez o gobelé brilhar


quando te sentires sozinho, faz-me um favor

olha bem lá para cima e descobre que onde vês escuridão podes bem encontrar uma galáxia para numerares

precisas apenas de acreditar e olhar, ela aparecerá

se noutro dia sentires medo, procura a tua galáxia e lembra- te de como tiveste de aprender para a encontrares, aí talvez eu exista apenas guardada no teu olhar