«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 27 de julho de 2012

notas para assalto noturno interior



I
tardes sombrias estendem-se pela janela
as perguntas saltam em queda
até à hora da morte quantas vidas lá cabem?

II
os homens uivam na escuridão da noite
arrastam as sobras do banquete de ontem
mas esqueceram os túmulos dos seus antepassados

III
uma mosca pousa-me no braço
ginástica acelerada com as patas dianteiras
de que lado é que me observa?

IV
até à hora de dormir
são muitas as peles que arrasto
ignoro as que deixo sobre o chão do quarto

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

quinta-feira, 19 de julho de 2012

notas para post scriptum

O Futuro Sai da Fenda e da Ferida

a geometria abre a linha para deixar passar a Imaginação.
O FUTURO sai da FENDA e da FERIDA.
Do que antes foi, hoje sai Sangue. Inundar o VAZIO: o FUTURO inunda o VAZIO.
Porque todo o vazio tem por INIMIGO a Imaginação.
Porque todo o vazio tem o Inimigo. 
Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"


I
abeiro-me das árvores sem sombra
boca seca, dentes sujos de pó
um sol que faz arder, sem tréguas

II
a figura negra da cidade
tatuada nas pedras
disforme com o deslizar da tarde

III
não há luz que guie
não há noite que aconchegue
não há lugar no ventre

IV
a mente torcida em becos
sem saída, sem retorno
talvez seja precisa uma guerra


 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

purgatorium XXXIII



E amanhã?
Ainda haverá vento fazendo as bandeiras esvoaçar bem alto nos mastros? Ou será que foram todas queimadas nas noites geladas, pintando o céu escuro em tonalidades cor de laranja?
E amanhã?
Quantos serão os pés que pisam as calçadas, com seus sapatos luxuosos? E quantos são os que correm de pés descalços? E quantos deles se abrigam nas sombras dos becos, esquecidos, como que enterrados?
E amanhã?
Quantos serão os túmulos que irão ser abertos? Quantos os registos queimados? Quantas valas comuns? E quantos os que morrem sem nascer? E quantos os que nascem para morrer?
E depois de amanhã? E hoje? E depois de hoje?
[Apenas à espera que o tempo se cumpra, somente. E todo esse mar imenso onde saberia por certo perder.]
Que se calem as vozes, definitivamente. Apenas tenho saudades de mim.

esventrado XVIII


esperaste que a luz viesse banhar o teu chão
mas esqueceste o caminho de regresso
quando bateste com a porta

jogaste aos dados
numa mesa sem ninguém
onde apostaste os teus dias longínquos

bebeste todo o vinho da adega
comeste toda a comida da despensa
juraste nunca mais falar

do futuro emprenhado
apenas a ilusão:
os demónios não existem

esqueceste, finges esquecer
o teu nome, a tua raça
e quando te perguntam, finges-te surdo

aguarda então que seja a terra
a cobrir as tuas narinas
e os vermes a beijarem-te na boca


 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

notas para noites de insónias


I
podes guardar os copos no armário
enquanto fumas o último cigarro,
de nada te serviu o roupão de seda

II
cerra os olhos à imensidão do luar
há muito tempo que aceitaste
a escuridão no teu peito

III
balança o braço que pende do sofá
aconchega o medo contra o frio do corpo
em breve dormiras sem que ninguém te acorde

IV
tenta o sono, tenta acordar
disfarça a tua solidão e liga o rádio na varanda
ninguém virá até à tua porta

V
ensaia beijos no espelho do quarto
experimenta caricias no lençol da cama
nada mais podes inventar enquanto mirras para dentro de ti

domingo, 8 de julho de 2012

desAlinhado XXX



respondo a um acenar de braço do outro lado da rua
busco o sorriso mil vezes ensaiado de fronte do espelho
e falo, mantenho um dialogo simpático e afável

ah, maldito tempo que me atraiçoas
forçando-me a um papel que me cansa
desejo um rápido aperto de mão, os dois beijinhos de praxe

por que não se esquece o tempo de mim?
Por que teima em marcar as suas passadas na minha mente exausta?
Por que não me deixa esquecer de mim?

só quero atravessar a rua, para o meu lado do passeio
só quero saber esquecer-me de mim

[todas as palavras, todos os gestos, todos os gritos, todos os silêncios, todas as inacções, todas as partidas, todos os regressos, todas as vozes, todas as carícias, tudo é apenas nada]

toda a maldição de uma vida vazia

sexta-feira, 6 de julho de 2012

esventrado XVII

sonhaste
frescas areias pintadas de azul
lábios quentes em nuances de vermelho
calmas ondas recortando o céu que um dia saberias alcançar

planeaste
o tempo segundo as tuas mãos
moldando os dias, assassinando a noite

bebeste
o néctar da tua adega com brindes ruidosos
em banquetes de deuses desnudos

hoje estás
prisioneiro de uma cidade que jamais te conheceu
amaldiçoado pela luz pálida dos candeeiros
perdido entre as quatro paredes simples do teu quarto, a tua casa

limpa a maquilhagem com que cobriste o teu rosto
despe a roupa com que proteges o teu corpo envelhecido
um desafio: olha de frente, encara o espelho
percebes o que vês?

 

segunda-feira, 2 de julho de 2012

purgatorium XXXII



Inicio. Meio. Fim. E fim.
Por mais roupa que dispa, por mais pele que vislumbre, por mais rugas que se marquem na pele, por mais máscaras que caiam, que se levantem, por mais que tudo e mais que nada, sou sempre o mesmo reflexo cansado no espelho.
Inicio. Meio e fim.
Por mais que te queira dizer, não consigo: fui inicio, fui meio, mas não encontro o fim. E preciso, preciso de te dizer que os danos são aqueles que nunca sentiste, nunca imaginaste. Hoje vivo na impossibilidade de um fim, na ilusão vaga de te cravar a faca e ficar à espera que te esvaias em sangue e eu finalmente vejo-me livre de ti, de nós sem nós.
Mas o fim é apenas o meu, só.
Fotografia de Laura Alberto