«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

estilhaço número VI

os sonhos que se guardam
aqueles que fazem chorar
aqueles que nos deixam em claro
aqueles que deixamos cair
e aqueles que teimamos agarrar

as palavras que se aprendem
como são difíceis no primórdio
como se tornam fáceis no último sopro
como perdem o seu sentido
como ganham novos significados

e essa palavra
que vou apreendendo, dia após dia
escrevo-a com mão tremula
humedeço-a com o olhar
deixo que cresça nos gritos surdos

e estes dias cinzentos
que fogem e correm
de mim, sem mim
que se cumprem frios e solitários
entre sorrisos, verdadeiros e falsos
entre bom dia e até logo

este tempo que não me pertence
e que fora de mim

se ausenta do meu ser

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

estilhaço número V

Saberemos cada vez menos
O que é um ser humano.
Livro das previsões

que conheço eu
da imagem que me olha
quando conto as rugas
num qualquer espelho

as roupas que trago
escolhi-as eu
e agora são me largas
e outras são-me apertadas

já não sei quem vejo
quem procuro em gavetas
vazias de sonhos

os riscos que fiz
as palavras que disse
as palavras que por dizer
foram ficando esquecidas

os outros reconhecem-me
o meu corpo, o meu rosto
dizem o meu nome
e saúdam-me com um caloroso sorriso

que sou eu ainda
caminho em terrenos inóspitos
em vertigem sobre mim
os fios cortei-os há muito
e agora é deles que preciso

esta espiral aperta-se
ao menos que o ar teimasse em falhar
morrer não me custa

viver é que se torna doloroso

notas para viagem interminável

I
dizem que o tempo
não espera por mim,
por ninguém

II
toma as precauções
necessárias
não se sabe quando ela chega

III
mas essas folhas
ainda não
foram por mim viradas

IV
enganada
confio
que os dias não passam

V
iludida
acredito
que amanhã será diferente

VI
velocidade vertiginosa
passo
sem saber olhar, minto

VII
lá vai o pastor
com o seu escasso
rebanho, incomum

VIII
ajeito as costas
olho em frente
o horizonte quer-se distante

IX
o mesmo homem
à mesma hora
sem os mesmos sonhos

X
alguém que passa
saúdam-se
e o céu precipita-se em mim

XI
miúdo novo
de cajado na mão
mais um guardador de rebanhos

XII
de quando em vez
um acidente
um cadáver de um animal que ninguém quer

XIII
a linha termina aqui
posso respirar

e o tempo vai passando, para mim

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

estilhaço número IV

todas as tempestades
terminam em ti
guardadas no pequeno peito
que descobre golfadas de ar

todos os vendáveis
correm doces
entre as curvas involuntárias
dos teus dedos frágeis

e todos os nomes
escondem o teu em silêncio
e todos os sonhos
são agora tua pertença
e todos os medos
são agora tão pequenos, aos teus pés

um dia saberás ver
os pássaros que cruzam o céu
e deixarás que passem sem notar

um dia a chuva será
apenas água fria
que te gela o corpo

um dia o vento
trará
a memória dos que perdeste

um dia os teus sonhos
serão de outros,
e que tu sejas sempre tu

e o sorriso a ti pertença