«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 31 de maio de 2011

deslocamento orbital sobre graal em sangue seco


Fotografia de António Nunes

hoje acordei com nicotina nos lábios e a garrafa entornada ao lado da cama.
o espelho tem a face queimada pelas linhas brancas que embaciam o olhar.
Ah, inspiração, és o sexo do poeta guardado pelo trifauce da obscuridade. é verdade, procurei seduzi-lo, comprar o poema, vender-lhe o corpo – a sobrevivência da plêiade é aquela côdea de pão bolorento que serve de festim às moscas. mas a ambição do inferno é apenas um balde negro e vazio que nem a faísca do olhar prostituto consegue acender.
não soube encontrar o fogo dentro de casa, mas a pólvora persiste em bordejar as pontas dos dedos enquanto o corpo áspero é muito menos que lixa a aguardar pela fricção. não havia fogo cá em casa mas todo o homem é o seu poema, mesmo que inflamável.
malditas, malditas que escorrem negras pela face, as letras que fogem aos dedos entorpecidos, moribundos sobre o papel!
malditas, malditas que me roubam as horas dos dias, as horas das noites!
e a corda enrola-se no pescoço, aperta a pele, comprime os músculos e o sangue em golfadas, pelas veias, assassina as palavras sobre a areia imunda.
às escuras, adivinho a sentença. sei que preciso do meu castigo no intervalo do meu desejo, no interlúdio da minha peça, nas letras vazias do meu poema. mas a música deixou de me tocar e os deuses, do alto da sua torre, mijaram-me em cima.

Bala número seis

já não lembrava a cor do sangue que me corre nas veias
o cheiro a ferro que emana quando corre pelo rosto

a pele arde, a mistura de suor e sangue cobre-me a pele
não vou chorar, há muito que as lágrimas se dissolveram,
para secarem nas cinzas do teu nome

é vermelho vivo, quando morre sobre o paralelo sujo
gotas e gotas e mais gotas pairam sobre o ar, imóveis
gotas perfeitas, redondas de sangue, de suor

reconheço esta vida que corre, que me foge
entre as feridas que despontam
como flores quando chega a primavera

e quando caí adivinhei o pó que me cobria

Manifesto CXXIV

A certeza




talvez o oceano se cale abrupto sobre as rochas
talvez o amanhã seja uma nuvem que vem acariciar os olhos
talvez hoje dispa este corpo gasto cobrindo o esqueleto
talvez a tua voz navegue pelo tempo para me sussurrar as palavras esquecidas, as palavras amargas
talvez o tempo seja o tempo que se passa guardado num segundo
e talvez esse tempo corra a eternidade

talvez o mundo termine amanha na palma da minha mão
talvez jorre sangue do interior da terra e ela fale até não mais se calar
talvez ouça o silêncio que guardas no teu peito
talvez os braços existiam para correr entre folhas, folhas e mais folhas alvas envelhecidas pelos dias que se demoram
talvez a vida seja um pedaço de algodão a voar no asfalto
e talvez esse voo dure o tempo de todo o tempo

talvez a saudade possa ser guardada em cofres fortes, esquecida, divina

talvez amanhã se esvazie o copo sobre a toalha que cobre a mesa
talvez amanhã não exista mesa, toalha, copo
talvez amanhã nada valha a pena, porque o amanhã é apenas um talvez

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/



segunda-feira, 30 de maio de 2011

Manifesto CXXIII

Cegueira ou não cegueira


já não observo o meu rosto ao espelho
conheço de cor todas as manchas que me cobrem a pele
navego nas suas rugas vincadas e sou um naufrago na tua boca

se eu me olhar no espelho
sei do pó que me cobre a face:
é o mesmo que resta da longa espera

talvez encontre uma saída
talvez parta o espelho em milhões de formas geométricas, sem forma

já não reconheço o crânio e a pele que o cobre,
todos os vasos sanguíneos onde ainda circula o sangue,
a boca seca, fechada
o nariz dilatado

talvez os polegares me cubram as orbitas
onde deviam estar os olhos
e eu descubra dois fossos vazios

Marcantonio, Cinco Monotipias 2001

Se eu te dissesse

[e o cheiro que a terra liberta nas primeiras águas
é o mesmo quando o sol teima em permanecer]

escrevo deste lugar distante, entre as horas que passam
que se passam sobre nós
e entre nós, o que se ergueu foi o silêncio

[e o cheiro que a terra liberta nas primeiras águas
é o mesmo quando o sol teima em permanecer]

adivinho o segundo que se segue, como uma tempestade anunciada
entre as paredes nuas
e desconheço o dia que surgirá, quando a noite se apagar

procuro o lugar onde dormir e não encontro uma cama
para adivinhar os sentidos que perdi,
procuro o lugar para ficar e não encontro os braços
que seguram o meu corpo arrasado de cansaço,
procuro o amanhã
mesmo que trazido cambado pela porta

e é o teu cheiro que ainda resta
entre gavetas, estantes, armários, vazios

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Polaroid 38

Objectos inanimados

amanhã abraço as ondas salgadas e navego nos braços da corrente
do asfalto quente, pintado de traços, de linhas, de abismos, de montes de lixo guardo:

as folhas derrotadas que voam sobre o pó
a areia que enterra as ruínas das cidades
a água serpenteando entre fragas esquecidas
os restos de plástico acenando quando é o vento que corto

amanhã, à deriva num qualquer oceano,
procuro o farol de Alexandria e durmo de olhos abertos

Bala número cinco (Para a Alexandrina)

há quem tome banho de água fria e sorria
há quem tome banho de água quente e vomite escuridão
há quem abrace molhos de flores e respire
há quem colha o vazio, num suicídio interminável
há quem observe os riscos brilhantes do granito
há quem sangre sobre as pedras quentes
há quem flutue entre papas de sujidade
há quem se esconde na deriva

e ainda assim, há quem seja

terça-feira, 24 de maio de 2011

Tendinites VII

os cavalos arrastam-me pela cidade
as cordas atravessam-me a pele
e o meu corpo a terra

o sangue escorre pela armadura
para encontrar o seu lugar no pó
que piso, que me calca, que se aloja no peito

os que olham férvidos sorriem
e escoam lava e lama pela boca

malditos, adivinho-lhes os dentes putrefactos
e o cheiro nauseabundo das entranhas

permito as cicatrizes das estradas
não os dentes nem as garras dos malditos

amanhã saio para dar uma volta de bicicleta
entre as escamas da sua pele

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

Pedrada LXIV

inho

os homenzinhos com as suas bonitas camisinhas engomadinhas
as mulherezinhas com os seus lindos vestidinhos floridinhos
os homenzinhos e as mulherezinhas do cimo dos seus engraxadinhos sapatinhos, enrolam as palavrinhas nas suas linguazinhas de serpentes;
agitam os seus bracinhos branquinhos e brincam com os seus documentozinhos prioritários de inutilidade;
lancham as suas comidinhas gourmet nas mesinhas redondas, onde deixam ficar a sua imundice;
fumam os seus cigarrinhos nas esquinas, escondidos do sol enquanto falam, falam e falam
os homenzinhos e as mulherezinhas, com as suas lindas roupinhas e seus gestos lixivados, metem-me cá um grande nojinho

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Polaroid 37

O homem que não ri

o homem que não ri abafa os risos dos pássaros debaixo do seu casaco negro, arrasta os pés no alcatrão fresco enquanto a noite se aproxima ao fundo, pela cortina do horizonte.
o homem que não ri abre os olhos na escuridão, bebe de copos vazios o medo dos procurados, sacode a chuva dos ombros nos dias afogados
o homem que não ri dorme de pé, de olhos abertos, guarda o silêncio, a noite no seu peito
o homem que não ri, um dia riu.
o homem que não ri, nunca ri, assalta as noites frias com os seus braços esguios,
e mudo ri, na bruma onde se esconde

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cores: Laranja

esperei, esperei até que o dia se estendeu
ao longo da linha que separa o céu da terra
o dia entrava dentro da noite, a noite entrava dentro do dia

a linha ficou lá, ténue esboço, negro, silencioso
a separar o céu da terra, a apartar a terra do céu

o vento moldava os farrapos presos em mastros
escancarava as portas de casas vazias, esquecidas, frias

o vento com os seus gritos mudos, dentro da minha cabeça
de mim, a cortar as entranhas, retalhar a carne, a gelar o sangue
e aquela linha, a linha que separa o céu da terra, dos mortais queimava-me o olhar lentamente

Bala número quatro

quando o tempo começou a apoderar-se do tempo que sobrava, na beira do prato, no fundo da rua, na sombra do carvalho; a enxada revolvia a terra; a pá carregava as pedras, meticulosamente ocultando os olhos daqueles que ainda arrastavam os pés.
quando o tempo cerrou os dentes entre lábios descolorados enfeitados por saliva seca, os ossos quebravam sob a suspeita do fogo e o nome queimava no dorso dos cavalos a abater.
quando o tempo foi o tempo, em círculos sobre si mesmo, a pá revolvia a terra, escavava valas, valas e mais valas, o feno abafava-se pelo pó seco, valas e mais valas, abrindo caminho sobre campos de papoilas, valas e mais valas, diante dos olhos de pássaros, tordos, andorinhas.
quando o tempo se cumpriu, aos meus pés, aos nossos pés, enterrava os amigos perante o olhar abafado de um gigante esquecido.
e o gigante caminha dia e noite, noite e dia com o seu saco de pano no braço

Fotografia de Laura Alberto

terça-feira, 17 de maio de 2011

Tendinites VI

estou à tua espera, neste pedaço de tempo
entre os cinzentos do teu olhar
fecho os olhos
as mãos imóveis acariciam a tua pele

o desejo força-me a vencer o sono
e as nuvens tomam forma
e os dedos ganham vida
e estás onde te não vejo

abraço o teu corpo cansado
displicente sobre a cama
entre os fios de luz baça
que violam a escuridão do quarto

porque te vejo a olhares-me assim
quando é a tua ausência que nos preenche
falamos algumas vezes, lançamos o riso pelo mundo
e regressamos cada um ao seu lugar vazio

o remoinho perpétuo deita-me sobre as casas
e em pedaços escorro pelas traves
a porta, se estiver, deixa-a aberta

Laura Alberto / João Miguel Ferreira



Paula Rêgo

Manifesto CXXII

Abutres

não me servem as botas nos pés
as botas que correram; que pararam; que esperaram
as mesmas botas de sempre, não cabem nos meus pés

olho as extremidades das pernas
não reconheço estes pés, secos, cansados
os dedos alongam-se, entrelaçados e dobram-se na biqueira

quis fugir e não tive estrada
fiquei e não encontro onde dormir

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXIV
a navalha repousa no balcão, romba, cansada da pele seca que a cobre. o pó cobriu-a ao longo dos dias que correram, que ficaram quedos nos raios de luz entre frinchas da madeira.
até os ratos desistiram de procurar a carne
até as aranhas se cansaram das suas teias
até as moscas secaram entre o cotão das roupas
até as centopeias rastejaram sobre a luz do dia
a navalha espera, a ferrugem apanhou-a

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O amor

o amor:
roubou a minha pele
apagou as manchas que me cobriam
secou as lágrimas
cuspiu no sangue quente

o amor:
rasgou os campos de papoilas
apodreceu os frutos na minha boca
pisou o corpo que dormia
acordou o pesadelo da noite

o amor:
arreganhou os dentes amarelos
berrou o ódio pelos oceanos
vomitou bílis infecto
afagou os cabelos com as unhas sujas

o amor:
dobrou a esquina da minha rua
e levou as sobras num saco

(Um apelo: no Camara Clara de ontem, passou um pequeno excerto de um poema onde dizia "o amor roubou..."-que acabou por ser minha inspiração na manhã de hoje- gostava de saber quem é o autor/declamador desse texto. Obrigada)


domingo, 15 de maio de 2011

Pedradas LXIII

A verdade

cada curva na estrada guarda uma réstia de ar
um ar abafado, denso
escondido entre vigas de ferro torcido

quero passar rápido
marcar o pó da estrada com as botas
para que ele se apague quando o sol se esconder

ele está lá: à espreita, silencioso
não sei porque corro
sou sempre apanhada no fim da subida

[de todas as vezes que corri fiquei imóvel a sonhar
de todas as vezes que fechei os olhos observava sempre o arco dos teus braços
de todas as vezes que saí fiquei sempre gelada na ombreira da porta
e de todas as vezes que cheguei nunca soube onde tinha ficado]

Bala número três

fumei todos os cigarros: um após um após outro após um. todos os cigarros até que a pele esfolou, colada na pedra do isqueiro e os dedos se tornaram galhos tortos amarelados.
fumei todos os cigarros sentada, passaram os dias, longos, compridos entre as horas da noite, as horas do dia, o frio da sala foi cortado por raios de luz, tímidos de inicio, decididos no final, até ao calor descer pelo tecto, para ser de novo frio
fumei todos os cigarros enquanto castelos de fumo se construíam e destruíam perante os olhos noctívagos
fumei todos os cigarro
e lá fora o giz desenha no asfalto quente a tua face

Polaroid 36

Porto

trago-te sempre comigo
mesmo que seja imenso o alcatrão que nos separa,
aquele onde a água deixa marcas brancas
ou o sol seca os sonhos em farrapos velhos

conheço cada uma das tuas calçadas
as pedras, conto-as todos os dias em sonhos
as pedras, onde sei do sangue dos que foram esquecidos
e as lágrimas derramadas por nomes não mais chamados

sei das tuas casas, dos teus quintais,
dos teus becos, dos teus bairros
sei onde repousa o dia e a noite o cobre os passeios povoados de lixo

tu e eu, estamos sempre mergulhados em silêncio
enquanto os outros passam, cegos e apressados
e tu eu esboçamos sempre um sorriso à navalha afiada

Fotografia de Laura Alberto, Avenida dos Aliados

sábado, 14 de maio de 2011

Balas

Bala número dois

acaricio a tua pele. sinto lhe a forma que se molda nos meus dedos, o frio que invadiu todo o corpo. limpo os traços de suor, agora riscos baços na pele branca.
precisei de vir aqui, sentir o teu corpo que desenha o ar do quarto.
não sei a data, que dia será hoje: ontem ou amanhã. não importa, não quero saber.
a tua pele veste-se pelas horas que se estendem e amanhã ou depois, quando restarem apenas cinzas e pó, também ninguém saberá o que fomos.
e os navios navegam por terra

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Manifesto CXXI

Deserto

o piar dos pássaros chega aos ouvidos
sorrateiro pelas falhas de granito
dissolve-se nos riscos baços de luz

não preciso passar da ombreia da porta:
lá fora o feno liberta o seu odor
entre nuvens grossas de candura

e não sei o que se esconde atrás dos vidros
e não sei onde deitar o meu corpo
e não sei o lugar que ocupo neste mapa desbotado

aqui:
demora-se a seca entre as águas
e as faces apagadas são riscadas por dedos tortos

Fotografia de António Nunes

Balas

Bala

atribuíram um número, o mesmo, as fotocópias do meu bilhete de identidade, do número informativo fiscal, da carta condução. um número, impresso violentamente a negro no verso da folha. um clipe ferrugento, abraçou as folhas que se amontoaram numa gaveta de papeis.
sou mais um número, naquela gaveta de papeis, silenciado por outros tantos papeis e tantos outros números negros.
sou um número, não sei de quantos dígitos, esquecido entre papeis e mais papeis. quando o sangue gelar, a carne minguar sobre a pele, o músculo desprender o osso, sou na mesma esse número, que será descontinuado.
aos olhos do numerador, sou um número, só: uma combinação aleatória de dígitos.
e os cães esquecidos lambem as poças de água seca, na berma

quinta-feira, 12 de maio de 2011


Ganhei um selo!!!
Ganhei um selo do Adriano Mariussi Baumruck do blogue http://queletra.blogspot.com/
Gostaria de dedica-lo a todos que me seguem atentamente nesta minha viagem pela tentativa de fazer poesia.
Por isso este selo é para todos!
Obrigada!
Obrigada Adriano pela distinção!

Deixo ficar aqui nove blogues:
http://fouadtalal.blogspot.com/
http://andy-luaprateada.blogspot.com/
http://viagensdeluzesombra.blogspot.com/
http://club-silencio.blogspot.com/
http://azultemporario.blogspot.com/
http://mileumpoemas.blogspot.com/
http://emapretoebrancoouacores.blogspot.com/
http://cronicasderobertolima.blogspot.com/
http://domingosbarroso.blogspot.com/

terça-feira, 10 de maio de 2011

Manifesto CXX

A roupa que trago

a roupa que trago:
mostra os vincos das calçadas onde descanso
recolhe o pó das estradas onde corro
brilha ao sol com as suas manchas de sal

a roupa que trago:
carrega o peso das palavras
abriga o orvalho que já secou
lembra o frio dos dias compridos

a roupa que trago:
acaricia a minha pele, a minha carne
ouve o lamento dos meus ossos
e sabe que nas veias o sangue ainda corre

a roupa que trago: é só minha

a roupa que trazes: é só tua

e por baixo dela estamos todos despidos




Ganhei um selo!!!
Ganhei um selo do Adriano Mariussi Baumruck do blogue http://queletra.blogspot.com/
Gostaria de dedica-lo a todos que me seguem atentamente nesta minha viagem pela tentativa de fazer poesia.
Por isso este selo é para todos!
Obrigada!
Obrigada Adriano pela distinção!

Pedradas LXII

O enigma

fecha o portão rápido
os sonhos há muito que voaram
entre as falhas do granito que se estende sob os nossos olhos

corta a erva que cresce
sorrateira no teu jardim,
nenhuma bota merece a sua seiva pura

escuta o murmúrio do vento
os belos gigantes vomitam palavras tolas
e hão de cair em pó

[e eu sei quem tu és]

Fotografia de Pedro Polónio,http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Polaroid 35

O corredor

entre as paredes de cal e mais cal e cal
perdemo-nos no encontro fugaz

entre tu e eu
todo o oceano brando
os navios partem sem rasto nas ondas prateadas

entre eu e tu
o ar que se inspira, que se expira
amanhã o capitão engraxa as botas pela última vez

entre nós
a cidade construída rasgando o céu
e o sangue que corre nas sarjetas

entre nós: o corredor
entre nós: o vazio

sábado, 7 de maio de 2011

Pedradas LXI

O vento que fica

abraço o vento que passa
e o arrepio percorre toda a minha pele,
vejo-a cansada da secura do teu beijo

esbugalho os olhos
mas é só vento que passa
sem trazer o odor dos teus braços

tiro a roupa que me cobre,
o sangue pára entre os músculos e a carne
e é só o vento que passa

[nem a escuridão me devolve a tua face
nem o silêncio me cobre com o teu canto
nem o frio aquece nas horas vagas]


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

Manifesto CXIX

Desassossego

e agora:
escava-se uma vala no chão de cascalho
até que seja terra o que as mãos abraçam

e agora:
deitamos os ossos jovens na lura escura
gritando ao vento que foge?

e agora?
os deuses brincam com dados
e nós esquecemos os seus rostos

Fotografia de Gérard Castello Lopes, Londres, Julho de 2007

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Manifesto CXVIII

Hodierno

vi os teus cabelos grisalhos
que brilham entre os outros negros
sei que nunca os toquei, os chamei em silêncio

vi as pequenas rugas tímidas
entre a pele seca ao longo do tempo
e todo o sal lavou-se nos lençóis que cobrem a noite

sei dos teus olhos:
a cor, a forma, a sua voz
quando é o horizonte que fitas com as pálpebras cerradas

terça-feira, 3 de maio de 2011

Polaroid 34

Manequim

o sorriso dilui-se no tempo
entre todas as horas que iluminaram
os olhos mortiços
entre todas as horas que cegaram
os ouvidos surdos

ninguém disse que os cadáveres ficam sempre nos armários
escondem-se em silêncio, gelados
arreganham os dentes quando as portas se abrem
e assustam aqueles que deles se esqueceram

e nós:
dormimos com os olhos abertos
caminhamos com as luzes apagadas
esperamos com os braços cruzados sobre o peito

é:
as cores caem
pelos caminhos de terra
entre as memórias baças, distantes
[o coração guarda-se no frigorifico]

Manifesto CXVII

Saltar

as horas passam e os dias passam
estendem-se pelas tardes frias
e rompem a cortina da noite que cobre
pesada os pés inertes

ninguém disse que as nuvens correm ligeiras,
escondem-se entre os dentes dos gigantes
e vivem nos dedos partidos dos deuses

e fico aqui ao calor
até que as pernas se movam
pelo estreito corredor, negro

e o salto é já ali

Pedradas LX

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