«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 31 de março de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXI
as pernas tinham sido cortadas, na linha imediatamente abaixo dos joelhos, enfiava os cotos em duas latas: de chapa prateada, que brilhava entre as pedras da calçada.
vendia amores perfeitos: roxos, lilases, violeta, cor-de-rosa. os seus olhos sorriam perante os ramos atados com gigantes folhas verdes atadas por um cordel.
entre os vendedores de lotaria, de rifas, os aleijados, os pedintes, os alcoólicos, vendia ramos de amores perfeitos e guardava os trocos em latas.

terça-feira, 29 de março de 2011

Manifesto CXII

Disforme

querer dizer:
que amei, bem alto, do fundo
todo o orvalho, toda a chuva que sobre mim caiu

querer dizer:
que tive medo, de toda a luz, da aurora
que me cercou nas madrugadas frias

querer sentir:
o abraço
e os barcos continuam ancorados no porto

Polaroid 27

Nojo
os vermes contorcem-se pelas paredes
e escorregam
afogam-se em águas castanhas, flutuam

arqueiam o sonho invertebrado
entre pastas: de sangue, de cotão
e caem a boiar

os vermes sobem ligeiros pela porcelana:
branca, manchada, estalada, encardida
e alguém manda vir água

domingo, 27 de março de 2011

Pedradas LIV

O casacão

se vestir o casaco
não me posso esquecer:
polir com afinco as medalhas de latão oxidado

se efectivamente vestir o casaco,
convém pegar
em agulha e linhas, não vá o forro despregar

se optar por vestir o casaco,
primeiro terá que arejar
não vão os meus ossos sufocar quando for a enterrar

se vestir o casaco,
não posso ter medo
a nudez desprende-se pela pele, realmente

Manifesto CXI

Inverno tardio

caminhar
e tu caminhas:

de mãos enfiadas nos bolsos
a gola do casaco puxada até ao queixo
a biqueira das botas separa a água que corre,
esmaga as pedras que se soltam

e tu caminhas
nesse teu caminhar:
chove nas feridas abertas,
esquecidas ardem cicatrizes roxas
e os cabelos grisalhos afagam-te o crânio

caminhar
e tu caminhas:
nenhuma mão te pousará no ombro,
não vale a pena virar para trás
nenhuma voz saberá ainda o teu nome

e tu caminhas:
com os sonhos enfiados nos bolsos
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quinta-feira, 24 de março de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXX
olho o telhado que se estende ondulado, sob um céu de nuvens: ramos secos, folhas, e os pequenos pardais aos saltos, aos saltinhos, com medo.
sou um pássaro que foge, por aí, bem longe, bem perto, uma mala cheia de nada e pó nas asas.
olho o telhado, já não sei das horas, das folhas, dos ramos e todos os pardais voaram.

Manifesto CX

Surdez

o vento:
(dizias tu)
penteia as águas do rio, fecha os olhos e deixa-te ir

o vento:
(dizia eu)
entra na pele, limpa os ossos e eu vou sempre

o vento:
(dizias tu)
fala da lenda do tempo, que foge, que fica, que vai, assim

o vento:
(digo eu)
afaga as carcaças abandonadas na estrada

Polaroid 26

EN105

carregam palmas nos braços em arco:
o vento afaga as fitas brancas, cinzentas, roxas
a chuva escorre pelas molduras de cobre oxidado

raspam os chinelos nos paralelos cinzentos:
as rugas desenham o passado nos seus rostos escuros
o seu nome foi esquecido entre estatuas de mármore

agasalham a solidão com velhos xailes negros:
as costas dobram-se nos dias que caíram
a voz perdeu-se na solidão das suas casas à beira da estrada

as ervas marcam a berma
e eu estou atrasada

terça-feira, 22 de março de 2011

Cor: Prateado

líquida, escorre vagarosa:
pelos dedos cansados
pela linha da coluna vertebral

queria dizer-lhe que parasse,
que ficasse aí,
para me deitar no seu frio

queria dizer-lhe que sou eu:
a afagar-lhe as barbatanas
a esquecer o sal da sua boca
enquanto voo nas asas do vento

Manifesto CIX

Derradeiro

[ainda vou a tempo?]
não sei, os ramos das árvores secaram me nos braços

[será que vai estar frio?]
não sei, os tectos deitaram-se sobre as paredes
rasgaram a cal e taparam o nosso corpo

[ainda tenho tempo?]
não sei, no campo dormem os soldados
e as papoilas raspam o sangue seco

domingo, 20 de março de 2011

Pedradas LIII

Equinócio

não me importa:
dos copos de cristal
das flores em jarras
de janelas, de portas

[os vidros rasgam-me a pele
traçam mapas entre veias cansadas]

não me importa:
da lua redonda (que fosse quadrada)
dos dias que cercam as noites
das noites que assassinam os dias (que fosse o tempo)

[o nome escreve-se com lápis de carvão
e apaga-se com o ácido derramado do peito]

Manifesto CVIII

Pecado

lambo os dedos, a língua é áspera:
a pele sai em escamas,
que não param de cair em silêncio, na noite

mordo a carne, os dentes doem-me:
a carne é dura, gelada
e o frio espreita na esquina, no vazio

bebo do teu elixir, sufoco:
entre o desejo bizarro
entre o calor e o frio

sexta-feira, 18 de março de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXIX
ficava horas, horas seguidas a olhar para a parede: a cal branca, imaculada. os dias estendiam-se, pelas tábuas do quarto, pelas paredes do quarto, enquanto o gigante arreganhava os dentes.
a noite deitava-se no dia, o dia deitava-se na noite: é o estar sozinho, o estar acompanhado, procurar um rosto, um qualquer rosto, que sorrisse, que dissesse, estou aqui, mas não estou. a multidão dilui-nos, dilui-me.
horas a fio desenhavam riscos no branco, riscos e mais riscos até que o branco era negro, o frio era o refúgio e tu, o silêncio. e ficar assim, a olhar de olhos cerrados.

Manifesto CVII

Colisão

mesmo que a eternidade coroe os teus pés
e o sol venha aquecer os teus braços
eu serei pó, pó negro, pó frio, pó esquecido
num qualquer regato, de sangue, de morte

[a cegueira é o maior dos medos]
[o silêncio é o barulho no fundo do poço de ti, de nós]

quinta-feira, 17 de março de 2011

Pedradas LII

O Engano

abriu os olhos para ver:
a névoa cinzenta que se estendia
cobria o dia, a noite, as horas

abriu as mãos para agarrar:
o silêncio que tinha parido
e escorria pelas paredes da casa, vazia, fria

mexeu os pés para caminhar:
sobre os pântanos da escuridão
onde pousava os braços abertos

acordou:
tarde demais

terça-feira, 15 de março de 2011

“Passei por aqui para te deixar um beijinho, tá dado!”

Era uma vez uma cidade e os seus altos prédios graníticos, ladeando ruas íngremes que os seus habitantes, e não só, percorriam, a pé ou nos autocarros cor de laranja. Os miúdos de pés descalços andavam à boleia na traseira do autocarro e fugiam, diluíam-se na multidão, quando aparecia o pica.
Com os meus companheiros de viagem, cujo nome ficou esquecido no tempo, guardávamos os bilhetes de cartão rosa, amarelo ou laranja. Deixávamos a assinatura naqueles que tinham sido marcados pelo fiscal, trocávamos os cartões furados com estrelas ou triângulos entre nós, como se de cromos se tratasse.

Inspirados, provavelmente nos cartões de crédito, os velhos bilhetes de cartão colorido que povoavam a calçada e as ruas, foram substituídos por bilhetes recarregáveis, onde deixaram de habitar os velhos desenhos, os esquecidos poemas, os números de telefone fixo, feitos na mesa de café.

No velho autocarro número 7, agora substituído pelo 800, conheci o velho anarquista e os seus óculos de grosso vidro verde. Durante horas e horas de viagens, sentava-me cá atrás, na cozinha, e ouvia-o falar, até que alguém o mandava calar. E ele continuava, até sair.

Poucas vezes tirei os headphones apenas para falar com os camaradas de viagem nas longas horas que partilhámos, ou quando tinha finalmente coragem para meter conversa com o desconhecido do lugar da frente.

Aos domingos, bem no centro da cidade, onde se ergue a imponente câmara municipal debaixo de um céu sempre cinzento, despedia-me dos meus amigos de café, de escola, de paragem. Levava sempre no saco a tiracolo uma recordação, um maço de tabaco vazio, um guardanapo, uma rolha, uma carica, uma folha, um bilhete de cinema, muitos sarrabiscos de riscos e letras.

Ainda passeio pela cidade, agora a pé e quase sempre sozinha, com os meus headphones, à procura latas velhas de folha que povoam os armários lá de casa. Nas latas guardo os velhos bilhetes, cartões, folhas e mais folhas amareladas e mais folhas quase ilegíveis, cigarros assinados, esmagados por mais bilhetes e mais cartões. Repousam aí todos os meus amigos, os meus velhos amigos que perdi de vista, a que esqueci o nome e que, quando os visito, escrevem na minha memória, na minha parede. E os meus amigos cheiram a mofo, perderam a cor, deixaram o brilho, mas falam em silêncio sempre que os visito.

Resisti ao facebook, até ao dia em que me cruzei com o meu professor de Filosofia, afinal também ele tem perfil no facebook. Ah! Agora o meu perfil também está lá, com uma fotografia de um grafito numa velha parede.

Tenho cento e tal amigos, palavras que me tentam descrever, frases feitas, coladas de uma qualquer página da internet, convites para eventos, uau!

Os meus novos amigos gostam de tudo e eu gosto de alguma coisa.

Os meus novos amigos viajam por todo lado, são felizes, penso, não que ouça o seu riso ou veja o seu sorriso, apenas fotografias para o comprovar.

Os meus novos amigos, que tudo viram, será que ainda recordam a minha face?

Pedradas LI

No frigorífico

no frigorífico há:
leite, iogurtes e queijo
legumes, maças, laranjas e peras
uma embalagem de natas, fora do prazo
uma embalagem de massa quebrada que o prazo termina amanhã
uma garrafa de vinho azedo

no frigorífico há:
prateleiras vazias, vazias
gavetas partidas, vazias e partidas
todas as noites, todos os gritos, todos os gestos,
e todo o frio que guardo nos ossos

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

Cor: Beije

quando o sol rasgava riscos nas janelas
o tempo estendia-se pelos corredores
e afagava as nossas faces com dedos quentes

[do canto da casa: vi chegar o silêncio]

as horas cobriram a cal com manchas de bolor
e os dias esvaziaram o ar dos quartos

[sentada nas escadas: vi chegar a noite]

através das paredes ainda conseguia ouvir:
as vozes,
os passos,
os risos,
o choro,
os outros

[as flores morreram dentro da terra]

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 9 de março de 2011

Manifesto CVI

Saudade

se sorrires:
já não conheço os teus lábios
o ar espesso cobriu o olhar, vazio

se falares:
não vou ouvir a tua voz,
a terra húmida sepulta o último suspiro

se andares:
não sabes onde ir
as vagas cobriram a réstia de pó

se pedires, não o faças
os frutos apodreceram nas árvores

segunda-feira, 7 de março de 2011

Pedradas L

Ironia

deixo a cabeça tombar para trás
desenha-se uma luz pálida, amarela,
coada entre rolos de fumo

aqui:
é o silêncio
e o ruído dos jogos infantis

fecho os olhos, abro os olhos:
tudo ocupa o mesmo lugar
imóvel entre linhas de pó

aqui:
é o frio que agasalha
e o vento invadindo as entranhas

procuro o buraco no peito,
entre pele, carne, ossos
e um fio de sangue que escorre

é:
o riso,
o choro,
o sal,
o doce,

agora:
só o nada se rouba
entre a lâmina assassina do tempo

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXVIII
sentava-me naquele corredor, gigantesco na altura, sobre a carpete fofa: de pernas cruzadas, de joelhos, de lado. aquele corredor era o meu país e eu: ditava as leis, construía cidades, destruía casas e tocava no meu piano de plástico.
naquele corredor, separado de toda a casa por portas vi, pela primeira vez, o meu sangue escorrer pela testa, vi o meu pai e a minha mãe: de costas, de frente, zangados, chateados, a sorrir muito, quando tocava o meu piano de plástico.
naquele corredor, de paredes que não lembro a cor, vi todas as pessoas que entraram, que saíram e tornaram a entrar, que entraram, que saíram e que nunca mais vi.
naquele corredor, feito de nada, só de portas, descobri o sonho, o frio, o medo: o medo de ter medo, o medo de não ter medo, o medo de dizer que não se tem medo.
o piano vermelho partiu-se, o corredor viu todos partirem e todos me esqueceram lá

sexta-feira, 4 de março de 2011

Manifesto CV

Mãos

são sulcos cravados: na pele, estalada
são abismos que se abrem: entre teias de tendões
são ossos quebrados: na garganta inflamada
são beijos gelados: sobre a estátua de mármore

olhar: através da neblina, entre fragas geladas
olhar: o vulto escurecido, negro e o negro que sai
olhar: a escuridão que rodeia, aperta o peito
olhar: a escuridão invadir, invadir e sumir

no fundo do corpo é o frio que nos agasalha

é:
o silêncio,
o negro,
o vazio,
a escuridão,
o espelho partido,
o sangue

quinta-feira, 3 de março de 2011

alexandria


Fotografia de Berenika
os livros que li chegaram ao fim
como os restos de bebida.
é impossível resistir à dor de cabeça
quando o álcool
é a insónia a roubar o olhar
e a inaugurar a noite
igual à de ontem,
a mesma de amanhã.

os livros que li amontoam-se
pelos corredores.
são pilhas que rasgam o tecto,
e cobrem as paredes da casa
onde antes fugiam
os teus lábios de sal.

os livros que li escreveram o fim
como o copo derramou a bebida no tapete.
deixei de entender o sol de outono
e as árvores que agora anoitecem mais cedo.

os livros que li perderam a tinta
como as rugas que me marcam o rosto.
deixei as páginas voar por janelas fechadas
e o frio deita-se sempre comigo.

os livros que li envelhecem comigo
abrigam traças esfomeadas
que hão-de morrer, apodrecer e secar,
os livros que não li
agitam os ventos das tempestades,
os livros que me lêem
escarnecem de mim
no canto do quarto.

ao meu lado, o silêncio.
o mar adormeceu
e com ele
todos os barcos
e seus três mil marinheiros.
e os livros, calados,
regressam à narrativa
como eu regresso às histórias que não tive
indiferente aos partos brancos
aos casamentos despidos
e aos funerais a arder.

sinto que escrevo
por entre os buracos das telhas
aquém do céu.
e tinge-se o papel
e a faca talha a carne
e o peito quebrado silencia a voz
para deixar entrar o amanhã.

tarde de mais:
todos os livros morreram comigo.
[Jorge Pimenta e Laura Alberto]

Cor: Azul-Verde/Verde-Azul

há fundo:
serpenteando entre rochas disformes,
dedos de algas acariciam o corpo
escapam-se bolhas de ar
à procura da saída, distante, negra

a carne encolhe, dilata
e os peixes esfomeados tiram-lhe a pele,
olhos esbugalhados, enxovalhados de ar
caem,
no fundo

o veneno dilui-se entre vagas geladas


Fotografia da peça de teatro "A Beleza do Pecado" pela companhia de teatro ArtImagem
(entretanto em cena, de 3 a 13 de Março, no Teatro Sá da Bandeira, 3ª a sábados às 21.30h, domingo às 16h, a peça "A Acácia Vermelha" pela companhia de teatro ArtImagem)

terça-feira, 1 de março de 2011

Polaroid 25

Cowboy

desenha na terra com a biqueira das botas
mas a terra é seca e voa no vento

tapa o rosto com o chapéu de abas puído
mas o sol queima a alma sem piedade

enrola um cigarro de palha que fuma lentamente
mas os pulmões rebentaram sobre o peito

tosse, escarra, procura o lenço de pano com quadrados vermelhos, azuis e amarelos
mas aquela miúda roubou-o enquanto fechava um olho

ergue o tronco montado no cavalo
mas os ossos quebram ao peso do céu

foge de encontro a um sol de fim de tarde
mas na montanha desenha-se o fim

Fotografia de Robert Frank: Rodeo, New York City

Polaroid 24

Paragem

tenho:
a cara fria apoiada na palma das mãos e é Verão,
os cotovelos apoiados nas coxas, a face apoiada nas coxas, o corpo apoiado no tempo

o osso do cotovelo enterra-se na carne,
o sangue pára
adivinha-se uma nódoa negra, duas: direita, esquerda

observo os pés tortos
que desenham um triangulo na terra de cor esquecida
e de novo o vento, seco

longe, longe do olhar o pó assome,
corre pelo alcatrão a ferver
estaca-se no meu corpo

sinto os pés que desaparecem
as pernas adormecidas,
toda eu sou o cansaço, à espera

Fotografia de Robert Frank, Landscape, Peru,1948