«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

E agora Bertolt?

[Prazeres

O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável.
Bertold Brecht, 'Do Pobre B.B.']

[escrito a partir do poema Prazeres de Bertolt Brecht]

e agora Bertolt,
tenho a pele limpa
visto roupa lavada
conheço de cor o lado de lá da minha janela
sei o nome
de muitas estrelas,
de todos os planetas e algumas galáxias,
das estações,
dos cães que cruzam o meu caminho,
das músicas que tocam no meu rádio,
de quase todas as terras dos outros continentes (que grande mentira)
dos que me dizem bom dia
dos que me desejam boa noite

e eu?
e eu sorrio Bertolt,
se fosse homem e o usasse, tirava o meu chapéu
a todos que me saúdam
a quem me engraxa os sapatos
a quem me coze o pão

e eu sei tudo Bertolt
só não sei de mim

LauraAlberto

I am a stranger here myself -Kurt Weill /One touch of Venus

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tendinites X

o céu pressiona os ombros,
o ar cinzento sufoca-nos e o peito
é pedra, peso e perda,
o peito é pó

damos pontapés na estrada,
esse plano inclinado
que nos leva ao ponto zero
inicial

calçada fora, neste granito cinzento
prisioneiros de sombras estendidas, líquidas,
esta chuva colada à pele
entranha-se na carne, queima-nos os ossos.

a humidade conquistou os pés.
tomou-nos as pernas, as coxas, o tronco.
só a cabeça quente nos evapora a inquietude.

cuspimos na sarjeta, continuamos:
o desconhecido, o medo
uma mão fria sobre o ombro
paramos, olhamos
a nossa figura disforme fita-nos
dentes arreganhados,
a viela ao lado mostra o caminho.

da face morna rolam-nos as lágrimas, desdobradas,
não lhes sabemos a temperatura, mas conhecemos-lhes o nome

João Miguel Ferreira e Laura Alberto
[com a pressa não publiquei os dois autores deste texto, desculpa João]

Victoria de Los Angeles - Thy Hand, Belinda

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

o jogo, sem peças, sem tabuleiro

já não há amanhã
partiram-se os relógios, arrancaram-se as paginas dos calendários
amanhã de manhã
nem o dia, nem a noite cumprirão a sua rotina
porque amanhã não será mais amanhã

apanham-se as roupas caídas à sorte pelo chão
abrem-se as janelas, abre-se o ar dentro do quarto
tiram-se os lençóis, fecham-se as gavetas
encerram-se os gritos nos armários ao fundo
lava-se a pele com água a escaldar
disfarçam-se os corpos com máscaras de seda

amanhã não será amanhã
nem hoje será ontem

desAlinhados IX


IX
fecho os olhos e sinto-me deslizar
líquida pelo mármore gelado
os teus dedos percorrem as minhas costas
num arrepio lunar

[sem tecto, sem paredes]

ouço a tua voz muda segredar-me ao ouvido
linhas tortas de contos esquecidos
é doce o teu hálito
que me embala na noite
é quente o teu toque
quando rouba um pedaço de pele

[sem ti, sem mim]
o meu pecado és tu

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

o meu amor tem asas de pássaro quando se esconde nos abetos
voa em círculos no azul e oferece presentes ao infinito
o meu amor tem forma de nuvem que se desfazem aos meus pés
e cai em gotas de açúcar pelo meu corpo
o meu amor sobe no dorso das ondas e desaparece no horizonte
enquanto durmo na noite
o meu amor tem a forma da areia nas minhas mãos
e escorre lânguido pela minha boca

o meu amor tem a frescura do relento quando me aquece na solidão
o meu amor traz o brilho de todos os sois que iluminam o silêncio
o meu amor gravou o meu nome na sua carne quando ardeu sozinho

Jorge Palma - Estrela do mar

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

desAlinhados VIII

VIII
enrolo o corpo numa espiral, tentativa de me aquecer
lá fora o dia vai longo com a sua apagada luz cinzenta
sei que tenho que me levantar, que me vestir
tropeço constantemente na roupa, visto, dispo e visto
e continuo nua
olho-me ao espelho, que posso querer mais eu ainda?
com o indicador desenho o trilho esquecido
lá fora o dia segue, horas longas, escuras e frias
os meus olhos já estão habituados a esta escuridão
a minha pele conhece de cor os pálidos sorrisos
o sangue ainda corre, só que cansado

fico por casa, o erro é sempre menor

Jorge Molder Linha do Tempo/Time Line, 2000

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

desAlinhados VII

VII
subo e desço estas escadas, encontrões, ombros que desenham linhas imaginárias contra os meus braços, sinto uma dor ligeira, um rubor vermelho, uma aureola na pele branca
subo e desço estas escadas, alguém me chama, alguém grita o meu nome, não estou aqui
seguras a minha anca com as tuas mãos firmes, sou um pássaro que é capaz de voar com as tuas asas, bebo o ar do ponto mais alto onde me levas, arqueio as costas e ainda sinto a pele dos teus dedos na pele das minhas ancas
um toque nas pernas, leva-me de volta às escadas
o cheiro da tua boca sublima-me no ar
estou aí, enrolada no teu corpo enquanto lês a história dos meus ossos

a verdadeira perdição está guardada em sonhos inconfessáveis
ninguém me conhece integralmente, mas juntem-se todos os que partilharam a minha mesa e todos os eus perdem-se em fumo

se sorrio, não sorrio
se calo, não calo
se sou, não sou, eu

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

desAlinhados VI

aproxima-se o inverno
sei-o: pressinto-o na pele gelada, no vapor que sobe a partir dos gritos encerrados, nos olhos imóveis perante a neblina que se estende

estalam os ossos, a clavícula desalinhada, os dedos entorpecidos, o rosto engelhado de frio

uma chuva forte insiste em cair, escorre em grossos rios pelas casas, pelas estátuas, pelos candeeiros de luz amarela, pelo pêlo e pelas patas dos cães vadios, pelas latas de lixo, pela cidade

teimo em aqui ficar, como uma estátua
se me esquecer, também os outros de mim se esquecem

inverno: há já muito tempo
há muito tempo que me esqueci de quem era

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

desAlinhados V

V
tenho o direito de andar à chuva sem guarda-chuva
tenho o direito a beber a chuva com a boca aberta e sorrir
tenho o direito de saltar nas poças de água e molhar toda a minha roupa
tenho o direito de falar alto numa biblioteca
tenho o direito de me remeter ao silêncio quando me questionam
tenho o direito de correr quando todos estão imóveis
tenho o direito de ficar quieta quando por mim chamam
tenho o direito de sorrir, de chorar, de falar, de me calar quando o direito é meu, só por direito

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

desAlinhados

IV
de que me servem os sorrisos que me observam do outro lado da rua
de que me servem as palmadinhas calorosas que me dão nas costas
de que me servem os teus olhos apagados nestes dias negros
de que serve a tua voz do outro lado se não sei qual a forma do teu rosto

ao que parece estou condenada a caminhar entre sombras familiares que espreitam do outro lado da porta
não atendas o telefone quando te ligar

desAlinhados

III
não sei que montanha subir
quanto mais alto olho, mais se abre o abismo sob os meus pés
tenho as asas quebradas pelo vento das tuas mãos
quando voltar a nascer, serei um pássaro
se tiver que nascer, serei um pássaro de coração negro, outra vez

desAlinhados

II
este rio que corre do meu peito, que corre do nosso peito
é sangue vermelho, calor
faz arder a pele quando nele nos afogamos
arrasta os ossos quando nele nos lavamos

este de rio de sangue somos nós, à deriva

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Crimes amorosos

XVII
último crime: o ódio
deixámos estas paredes, deixamo-nos ficar nesta cal e as nossas botas pisam a terra e seguem separadas
outros virão habitar entre os fantasmas pálidos de tudo o que nos bastou, outros dormirão nos nossos lençóis, de suor, de sangue e sal, outros falarão também a mesma língua de falácia
será sempre inverno, teremos sempre frio
quando olhar o meu corpo no espelho reconhecerei o contorno da tua mão na minha pele, quando abrir os lábios procurarei sempre os teus e encontrar assim a tua língua nos dedos entorpecidos
um crime qualquer: a ignorância
primeiro crime: existirmos

[terminam aqui os crimes amorosos, escritos tendo por base uma história entre dois amantes, hoje é o dia em que finalmente se separam, obrigada]

desAlinhados I

descobri ontem a forma das tuas mãos
cobertos pela fina pele branca, dedos nem excessivamente grandes, nem excessivamente pequenos, os mesmos dedos com que sempre seguraste o cigarro

tenho andado muito, as pernas cansadas, a mente confusa
nem penso, nem sei, o que sei eu ainda?
a língua de alcatrão cansa-me com seu cansaço repetitivo

ouço as vozes, os outros
riem, falam, conversam, riem mais alto
mas não encontro as palavras, a voz encerrou-se há muito neste peito gelado
e o frio é tanto que tento o calor de mil verões e continuo a encontrar o frio

e as tuas mãos ficam guardadas nos bolsos das calças
para que mais ninguém se perca nelas

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Crimes amorosos

XVI
o dedo percorreu a parte exterior da coxa por cima da roupa, mas mesmo assim sabias que a pele é branca e que o arrepio percorreria todo o corpo
[tu sabes, tal como eu sei]
a mão deslizou suavemente pela parte interior da perna até ao preciso local onde tudo é proibido
[já sabemos, o que sempre soubemos]

todo o tempo, todo o escasso tempo que nos resta é aqui, escondidos entre estas paredes mudas, sobre estes lençóis frios que se mancham com o calor dos nossos corpos, todo o nosso sangue corre sobre o soalho do chão
somos vapor negro que se dissolve entre o silêncio do quarto
[sabemos, como sempre soubemos o que ninguém sabe]
amanhã, quando abrirem as portas perras, o vazio fugirá aos mortais

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

como o céu se desmorona em segundos inúteis a meus pés

hoje o céu olha-me com um ar jocoso, até a própria lua arreganha os dentes aguçados entre densas nuvens que a ocultam
e chove, tal como ontem choveu, e anteontem, e antes de anteontem, tal como amanhã irá chover e esta cruel realidade impede-me de contar o tempo

caminho, sei que caminho porque os pés se arrastam no alcatrão molhado, todos se afastam em figuras de contornos escuros, primeiro perfeitamente definidos e depois esbatidos, quero olhá-los, senti-los, dizer-lhes: estou aqui, mas somem-se entre os olhos cansados

ultimamente tenho a companhia das sombras que nascem na ponta dos sapatos e se estendem em fantasmas que assombram as próprias valetas, também elas habituadas à escuridão, aos escarros, ao lixo, ao sangue infecto

eu tenho uma navalha no bolso e não tenho coragem de a usar
eu tenho uma navalha no bolso e está cheia de ferrugem
eu tenho uma navalha no bolso e não sei onde a perdi


Sigur Ros - Gong