Nem todas as crónicas são filantropas, interventivas, opiniosas. Esta é sobre um senhor que em tempos habitou o sótão de uma casa, no lugar Largo Heróis da Pátria. A mesma casa onde o meu tio, religiosamente, dava corda ao relógio, subindo para as cadeiras estofadas com o grosso veludo de ramagens verdes garrafa.
Enquanto o meu tio dava corda ao relógio, eu fugia pelas escadas até ao quintal, com pouco mais de dez metros quadrados. Naquela altura em que tudo é, excessivamente grande ou pequeno. Para mim o quintal albergava todas as dimensões do Universo.
A minha tia lá andava atrás de mim, com a velha tigela de plástico, vermelho, cheia dos restos, que não eram bem restos e sim todo o meu almoço daquele dia. Entretinha-me a fugir, naqueles escassos metros quadrados, para parar quando ouvia falar no Aranhão. Então era subir as mesmas escadas, entrar pela porta escancarada da cozinha e esperar.
Entre uma colherada e mais outra, procurava o Senhor Aranhão, pela casa, na clarabóia do sótão. Possuía a minha tia a mestria de sempre encontrar uma verosímil desculpa, um afazer para o Aranhão.
Às terças-feiras saiamos para ir à feira, perdia-me entre as arrufadas e na esperança que quando regressasse desse de caras com o Aranhão, vestido de fato e laço preto, com duas das patas servindo de pés e as restantes de mãos. E mais uma evasiva da minha tia.
Comecei por subir ao sótão, primeiro com a minha tia, porque aquelas escadas de madeira feitas pelo meu tio, poderiam não ser seguras. Depois já subia sozinha, com inúmeras recomendações, cuidado com os tubos da água, os cabos da electricidade e o vitral, cuidado, não caias cá abaixo.
Passei tardes inteiras no sótão à procura do Aranhão, pintei o velho armário que lá estava à espera do fim, arranjei um tapete e duas cadeiras. Enquanto olhava pelas aberturas das telhas para o largo, controlava as entradas na barbearia, as saídas da mercearia e os velhos no tasco. Só não controlava o tal do Senhor Aranhão.
Quando cai nas escadas do quintal e parti os meus dentes, a presença do Aranhão parou, minha tia, com medo, deixou de falar nele. E eu andava triste, como seria possível que ele não me tivesse vindo visitar? Quando minha tia descobriu, desvendou que ele estava muito ocupado a tratar dos seus filhos.
Voltaria a passar os meus dias no sótão, à espera.
Mas houve um dia que a minha tia se vestiu integralmente de preto e muitos outros tantos se passaram até que um dia eu lhe lembrasse do aranhão. Já estava cansada, apenas olhou distante e respondeu que tinha sido a forma de me meter medo. Sorri, disse-lhe que tinha tido o efeito contrário.
É, há crónicas que são crónicas e outras que são memórias dos nossos sonhos.
Enquanto o meu tio dava corda ao relógio, eu fugia pelas escadas até ao quintal, com pouco mais de dez metros quadrados. Naquela altura em que tudo é, excessivamente grande ou pequeno. Para mim o quintal albergava todas as dimensões do Universo.
A minha tia lá andava atrás de mim, com a velha tigela de plástico, vermelho, cheia dos restos, que não eram bem restos e sim todo o meu almoço daquele dia. Entretinha-me a fugir, naqueles escassos metros quadrados, para parar quando ouvia falar no Aranhão. Então era subir as mesmas escadas, entrar pela porta escancarada da cozinha e esperar.
Entre uma colherada e mais outra, procurava o Senhor Aranhão, pela casa, na clarabóia do sótão. Possuía a minha tia a mestria de sempre encontrar uma verosímil desculpa, um afazer para o Aranhão.
Às terças-feiras saiamos para ir à feira, perdia-me entre as arrufadas e na esperança que quando regressasse desse de caras com o Aranhão, vestido de fato e laço preto, com duas das patas servindo de pés e as restantes de mãos. E mais uma evasiva da minha tia.
Comecei por subir ao sótão, primeiro com a minha tia, porque aquelas escadas de madeira feitas pelo meu tio, poderiam não ser seguras. Depois já subia sozinha, com inúmeras recomendações, cuidado com os tubos da água, os cabos da electricidade e o vitral, cuidado, não caias cá abaixo.
Passei tardes inteiras no sótão à procura do Aranhão, pintei o velho armário que lá estava à espera do fim, arranjei um tapete e duas cadeiras. Enquanto olhava pelas aberturas das telhas para o largo, controlava as entradas na barbearia, as saídas da mercearia e os velhos no tasco. Só não controlava o tal do Senhor Aranhão.
Quando cai nas escadas do quintal e parti os meus dentes, a presença do Aranhão parou, minha tia, com medo, deixou de falar nele. E eu andava triste, como seria possível que ele não me tivesse vindo visitar? Quando minha tia descobriu, desvendou que ele estava muito ocupado a tratar dos seus filhos.
Voltaria a passar os meus dias no sótão, à espera.
Mas houve um dia que a minha tia se vestiu integralmente de preto e muitos outros tantos se passaram até que um dia eu lhe lembrasse do aranhão. Já estava cansada, apenas olhou distante e respondeu que tinha sido a forma de me meter medo. Sorri, disse-lhe que tinha tido o efeito contrário.
É, há crónicas que são crónicas e outras que são memórias dos nossos sonhos.
Tio Alberto, Tia Laura, Menina do Aranhão
afinal o aranhão não só arranha como morde.
ResponderEliminarbelo texto, bem secundado por uma foto "à la minute" :).
no despertar, nº 62, vai ter de sair a do carrossel, parece-me... sorry.
beijinho!
Laura,
ResponderEliminarpeguei na tua crónica e ainda não a larguei, continua no coração. Fiquei cheia de recordações a conversarem comigo, e umas saudades imensas... porque entre texturas, sons e cores talvez, revi a casa da minha avó e ela própria. Ah quantas saudades... e quase senti as cadeiras de veludo bordeaux, as pinturas, o relógio na parede velha...
P.S. a menina do aranhão era muito corajosa e uma verdadeira ternura.
Beijo Laura