«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
quinta-feira, 3 de março de 2011
alexandria
Fotografia de Berenika
os livros que li chegaram ao fim
como os restos de bebida.
é impossível resistir à dor de cabeça
quando o álcool
é a insónia a roubar o olhar
e a inaugurar a noite
igual à de ontem,
a mesma de amanhã.
os livros que li amontoam-se
pelos corredores.
são pilhas que rasgam o tecto,
e cobrem as paredes da casa
onde antes fugiam
os teus lábios de sal.
os livros que li escreveram o fim
como o copo derramou a bebida no tapete.
deixei de entender o sol de outono
e as árvores que agora anoitecem mais cedo.
os livros que li perderam a tinta
como as rugas que me marcam o rosto.
deixei as páginas voar por janelas fechadas
e o frio deita-se sempre comigo.
os livros que li envelhecem comigo
abrigam traças esfomeadas
que hão-de morrer, apodrecer e secar,
os livros que não li
agitam os ventos das tempestades,
os livros que me lêem
escarnecem de mim
no canto do quarto.
ao meu lado, o silêncio.
o mar adormeceu
e com ele
todos os barcos
e seus três mil marinheiros.
e os livros, calados,
regressam à narrativa
como eu regresso às histórias que não tive
indiferente aos partos brancos
aos casamentos despidos
e aos funerais a arder.
sinto que escrevo
por entre os buracos das telhas
aquém do céu.
e tinge-se o papel
e a faca talha a carne
e o peito quebrado silencia a voz
para deixar entrar o amanhã.
tarde de mais:
todos os livros morreram comigo.
[Jorge Pimenta e Laura Alberto]
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cada livro termina.
ResponderEliminarcada história tem um semi-fim.
em cada biblioteca, um incêndio.
alexandria!
alexandria!
e o desejo babilónico de arder apenas homem.
beijos, amiga-parceira!
Parabéns aos dois pelo poema!
ResponderEliminarLi... e reli...
E fui deixando que as palavras se me cravassem na pele, como se fosse ela mesma uma folha já escrita por outras tantas palavras... [e isso só acontece com os poemas/textos/livros que me(nos) marcam, penso eu...]
Beijinhos!
Lindíssimo, sempre, o trabalho de vocês dois!
ResponderEliminarAbraço.
Laura e Jorge,
ResponderEliminaras vossas vozes embalam o silêncio da minha...
"ao meu lado, o silêncio.
o mar adormeceu
e com ele
todos os barcos
e seus três mil marinheiros.
e os livros, calados,
regressam à narrativa
como eu regresso às histórias que não tive
indiferente aos partos brancos
aos casamentos despidos
e aos funerais a arder."
Beijinho Laura!
Saudações, Laura,
ResponderEliminarmais uma bela composição que vocês fazem
imagens, palavras e sons
deixo um trecho de um livro, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos – Rubem Fonseca
Sonho com a mulher de pivô escuro, o pé sobre o ralo. “Agora diga”, ela diz, “se você se lembra ou não do dia em que dançamos sobre o azulejo frio.” “Você tem a cara da Claudette Colbert”, digo. “Quero saber da dança, você não se emenda, rapaz, sei muito bem como é a minha cara!” “Você tem peitos redondos pequenos”, digo. “Ora, ora”, ela diz. “Claudette Colbert representando Cleópatra no museu de Arte Moderna”, digo. “Você foi longe demais”, ela diz tirando o pé do ralo. Vou sendo sorvido e antes de entrar no vórtice grito: “E cheiro de flor de maça!”. Mas não há mais tempo de me salvar. Começa a agoniante sensação cega de queda, a agonia física.
grande abraço e levo o im.possibilidades para por onde vão meus olhos