«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXVI
uma casa e as suas paredes: pintadas, enfeitadas com desenhos a dourado, manchas de água que hão-de escorrer, no futuro, do telhado, das caleiras rompidas.
são dois, três, quatro, cinco, voltam a ser três, deixam de ser três, para serem dois, depois três, depois dois, uma.
o barulho encheu os corredores, os quartos, todas as divisões da casa, abriram-se todas as janelas, limpou-se o pó pousado de leve sobre os móveis, quadros de imagens, que nunca existiram a não ser na mente de quem os pintou, brilhavam nas paredes.
a chuva batia nos vidros da janela, a luz do largo iluminava os quartos escuros, luz amarela. de joelhos, apoiada na alcatifa: não quero crescer e tu vais ficar sempre comigo. a resposta falsificada e é de novo verão, de novo inverno, de novo a mesma promessa.
muito antes de ser só um, os cães morreram, deixaram as casotas vazias, que acabaram em ruínas, tal como o velho barraco. depois, o ruído foi sumindo pelas janelas, pelas portas e o velho relógio de corda parou.
quando ficou só uma, o silêncio invadiu a casa, pelos vidros tortos, pelas portas entreabertas, misturando-se com a escuridão dos dias. o pó ficou nos tapetes, o cotão amontoou-se nos cantos da sala, o cinzento tinha chegado.
quando a porta da rua se fechou de vez, ficamos sentadas na cozinha, nos bancos de sempre a observar aqueles azulejos brancos, alguns rachados: brincas comigo?

2 comentários:

  1. tu me lembraste um conto do Cortázar chamado A casa tomada,


    beijo

    ResponderEliminar
  2. hum... a mim parece-me que já se nota a leitura voraz do peixoto :)
    um abraço silencioso!

    ResponderEliminar