«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
derrete, lentamente, o gelo boiando sobre a linha do whisky fuma-se, finge-se que se respira, que se espera, que se parte
mais uma pedra, de gelo mais um gole e outro, mais outro esquece-se o cigarro, no cinzeiro, nos dedos que se cruzaram, que se partiram, que se perderam
um copo vazio, numa mesa suja de cinza um banco, abandonado, sobre mosaicos desgastados partidos Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
sorrir sobre o céu afagar as cicatrizes escondidas pela roupa, limpa sentir a pele, beber do suor apertar o sangue que circula nas veias rasgar as nódoas negras, quebrar os ossos
e sorrir sobre o céu deixar: de ouvir o silêncio e morder o medo desenhado nos lábios
XXVII fazer das tripas coração: esperar que ele bata, que circule o sangue, que se respire o ar, que se beba a água. fazer das tripas coração: sair, ir e chegar para voltar a sair, ir e chegar, até um dia. fazer das tripas coração: rasgar a face, esticar os lábios, sorrir, ouvir o riso que sai de dentro e continuar a sorrir. fazer das tripas coração: beber as lágrimas, trincar o sal, morder o medo, esconder a faca. fazer das tripas coração: partir os ossos, queimar a pele, cortar o musculo, deixar o sangue correr, pelas pernas, pela lápide. fazer das tripas coração: coragem e fazer das tripas coração.
invadiu as paredes, tímido tomou conta de todas as pedras até que a cal abandonou todos os quartos, todas as salas, todas as divisões até que nada mais sobrasse,
havia então o silêncio, o frio e a noite entrava, pela porta, pelas janelas fechadas a noite saia dos olhos, gelava o ar, o sonho nada mais restava
ajeitar a almofada, pousar a cabeça esquecer o dia, a hora, agarrar os lençóis deixar o sonho, deixar o sono ocupar a marca no colchão, desde sempre e dormir no beijo mudo da noite
acordar, num repente: o frio do quarto, a água que corre, que cai, sobre a pele, ao longo das costas sair ou ficar? abrir as feridas, sorrir aos estranhos, limpar as mãos cobrir o sonho, cobrir os paralelos com passos céleres, desajeitados
voltar, encontrar: paredes nuas, ar vazio, o silêncio olhar o reflexo em espelhos cansados ajeitar a almofada, pousar a cabeça e dormir
quando aprendi a contar, contei: todos os azulejos da cozinha todas as linhas que via todos ao traços brancos no negro do alcatrão todas as escadas que subi todas as janelas que esqueci abertas todos os pássaros que me fugiram todas as pedras que agarrei todas as portas em que entrei
os teus braços não se movem as tuas pernas estão enterradas, os teus olhos esvaziaram-se, entre os sopros de tempo estão frias as tuas mãos, sobre o peito
[então, se virar a página estarás lá?]
deixei a roupa pendurada, os sapatos cambados, tombados nas escadas descalça, andei, andei e andei, até que: o sangue gelou, as veias gelaram, a pele estalou, perdeu-se o sal, esqueceram-se as lágrimas
engulo em seco ele continua lá, teimoso insisto, mordo a língua e o sangue escorre pela traqueia as cócegas continuam
bebo água, uma mistura de sangue e água salobra escorre pelo canto da boca pouso o copo baço na mesa da cozinha ele abre as asas e afaga o meu interior
[tosse, tosse raio de tosse que não me larga]
meto os dedos na boca, faringe, esófago e laringe nada mas as cócegas continuam o ar tem dificuldade em entrar, em sair, em permanecer
chegará a hora em que o verei, finalmente: numa qualquer lâmina de microscópio cortarei o seu corpo anelar com o bisturi sem espinha, sem esqueleto
jorge pimenta [espigueiros do soajo - p.n. peneda-gerês]
não deixes que este fevereiro faça morada em ti. para que queres o vento se levanta a pele, para que procuras o frio se rebenta os músculos ou a chuva se lava os ossos? [há tantos náufragos sem madeira ou braços com que gritar].
és apenas um banco de jardim, onde o gelo trespassa a sola dos sapatos. é frio, frio que te vem cortar os dedos turvar o olhar, cerrar os lábios. apertas a gola do casaco, enquanto rolos de ar se libertam da boca semiaberta. ao teu lado, um velho tronco de árvore adormecido, gasto por histórias escritas nas tempestades de inverno. [ah, que inferno].
não, não deixes que este fevereiro renasça contigo, se faça monstro dentro de ti, te morda o pescoço e te roube a as cidades transparentes que avistas por detrás da retina.
sabes caminhar mas não há caminho a lama cobriu o que o tempo esqueceu, queres ir mas não sabes onde não vislumbras a pedra com que te cobrir. é: os meses são como a roupa da cama: assobiam rebanhos nocturnos e no desejo de adormecer camélias empurram o lençol para o rosto lambem o sonho acariciam o desejo enquanto estendem a mão para a boca brincam às escondidas na solidão da noite [não o sabias?] e não consigo respirar e falta-me o ar e procuro os utensílios, desinfectados e esqueci o frasco de cristal e bebi do veneno e não sei do antídoto e estrebucho em silêncio e arranho o sangue com pele e vomito as entranhas que não me pertencem que não me pertenceram e já não sou eu que choro.
e, ao meu lado, há sempre alguém que morre primeiro. Jorge Pimenta & Laura Alberto
choveu, choveu e choveu imenso choveu e choveu vagas de água, fria, gelada
até que os campos não conseguiram mais e continuou a chover a água transbordou pelas estradas, ruas e vielas são rios, os rios são mares, os lagos são oceanos e os oceanos continuam oceanos
um caminho de pedras, de terra arrastada, alagada rebentaram os muros, explodiram os peitos fiquei à espera, numa grande pedra Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
XXVI uma casa e as suas paredes: pintadas, enfeitadas com desenhos a dourado, manchas de água que hão-de escorrer, no futuro, do telhado, das caleiras rompidas. são dois, três, quatro, cinco, voltam a ser três, deixam de ser três, para serem dois, depois três, depois dois, uma. o barulho encheu os corredores, os quartos, todas as divisões da casa, abriram-se todas as janelas, limpou-se o pó pousado de leve sobre os móveis, quadros de imagens, que nunca existiram a não ser na mente de quem os pintou, brilhavam nas paredes. a chuva batia nos vidros da janela, a luz do largo iluminava os quartos escuros, luz amarela. de joelhos, apoiada na alcatifa: não quero crescer e tu vais ficar sempre comigo. a resposta falsificada e é de novo verão, de novo inverno, de novo a mesma promessa. muito antes de ser só um, os cães morreram, deixaram as casotas vazias, que acabaram em ruínas, tal como o velho barraco. depois, o ruído foi sumindo pelas janelas, pelas portas e o velho relógio de corda parou. quando ficou só uma, o silêncio invadiu a casa, pelos vidros tortos, pelas portas entreabertas, misturando-se com a escuridão dos dias. o pó ficou nos tapetes, o cotão amontoou-se nos cantos da sala, o cinzento tinha chegado. quando a porta da rua se fechou de vez, ficamos sentadas na cozinha, nos bancos de sempre a observar aqueles azulejos brancos, alguns rachados: brincas comigo?
XXV querer escrever e não conseguir: as palavras ficam prisioneiras no peito, rochas cinzentas que se amontoam. todos sorriem à minha volta. passam me as mãos pelas costas, batem-me no ombro, dizem-me olá, acenam-me um adeus. porque é que não se calam? sim, estou aqui, sentada, com frio. à espera que as horas passem, mas elas deslizam longas pelo dia cinzento, pelos dias solitários. sim, estou aqui, sentada ao vosso lado, ouço as vozes que quero distantes, que quero silenciosas, sim, porque estou aqui, estou sozinha.
quando acordei, procurei o teu corpo: os lençóis estavam frios os vincos tinham desaparecido nos dias que escorriam em gotas de água nas janelas fechadas
tossi, precisava de cortar o silêncio, saber que estava ali prisioneira, como o ar pesado que descia do tecto, sobre o candeeiro apagado
quando me levantei, não senti os meus pés nos teus pés, não me mexi, não tropecei nos novelos de pó que se acumulavam sobre as tábuas do quarto
falei, baixo, muito baixo, alto e o eco rodeou-me o peito, apertou-o apertou-o forte, até que os ossos se partiram e era finalmente a noite
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
podia chamar-se Maria ou Madalena, ou até mesmo Maria Madalena. passo e não sei o seu nome, nunca o ouvi porque também nunca ninguém o ousou pronunciar. e eu passo, ao longo da estreita língua de alcatrão, ladeada por muros, que foram muros e agora são ruínas. e passo, todos os dias à mesma hora, sempre atrasada, a correr, entre a língua de alcatrão, os muros e os pinheiros que se agitam a minha passagem. a sua figura de estátua decadente, imóvel, na intersecção de duas estradas sinuosas, com a humidade que escorre entre as agulhas do abandono. passo com os olhos na rotunda, depois da última curva, apertada para a esquerda. um dia acenei-lhe, um olá, um adeus. e porque não? se até as árvores me devolvem o vento que trago, e porque não?
Sim: rim, dois baço, um estômago, um fígado, um pulmões, dois intestinos, gigantes pâncreas, um coração, um
costelas, partidas sobre a mesa peito dilacerado tira-se o sangue com conchas de sopa, pastas e pastas de sangue coalhado pernas, imóveis, ossos desnudos, estilhaçados, rasgam a pele, encarquecida, negra
XXIV venho aqui muitas vezes, desde que me lembro que eu sou eu. não sei onde comecei, onde vou acabar. os corredores primeiro eram gigantescos e eu percorria-os um a um, primeiro com o olhar, depois pelo meu próprio pé, agora com o pensamento. reconheço as paredes, o papel que as cobre, que tapa a tinta que recordo. fiz historias nessa mesma tinta, vivi dias a fio nesse papel de parede. venho aqui muitas vezes, fico sentada na alcatifa laranja até que o sangue não consegue mais circular, até que o frio é a única sensação que fica, tenho o corpo pintado, colorido, escurecido, pisado demais, demais e demais. fico aqui até que alguém se lembre de me procurar, de me procurar e não me encontrar.
E agora o que resta de nós? as paredes beberam o nosso silêncio ficou marcado na cal, escureceu, apodreceu os passos perderam-se entre tábuas, podres, ilusões prometidas
E agora o que resta de nós? nas traves balouça a corda do enforcado, o ar enche-se com o cheiro nauseabundo do cadáver que somos, do corpo abandonado que fomos
E agora que resta de nós? o ruído dos nossos passos não enche o ar e os teus braços não riscam a escuridão do dia, da noite e agora, o que resta de nós é nada
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
vou fingir que não te ouço para não ter mais os pés frios. quiseste tudo, até as varandas da morte por achares que uma só vida [esta] te não chegava.
deitei o corpo em telas brancas onde pintavas estranhas paisagens, esperei ao relento que os teus olhos se abrissem, rocei ervas daninhas jurando que bebia as tuas mãos.
tive frio, fome, calor, sede gritei ao silêncio [não sou eu]
afiei as lâminas, desinfectei os punhais rasguei as entranhas e esperei que o sangue [não o meu] corresse
não guardei os lençóis, não consegui adormecer a tua escova-de-dentes e não estourei com os teus discos de vinil. nem os livros que escondi no teu ventre se fizeram biblioteca, quanto mais os rabiscos que ousei arrancar-me enquanto a carpete já só exibia o pó dos teus pés.
parti os vidros, os espelhos, os cristais bebi do suor da testa, esqueci o sal da tua boca e lavei os dentes até que os pulsos se partissem
depois? desci as calças e emprenhei a vergonha [que nunca reparti contigo]: comprei romagens, assinei promessas e assisti às missas [mesmo não sendo domingo]. já só me falta beijar o demónio na boca [nem ele suportaria o hálito do meu corpo]. Jorge Pimenta & Laura Alberto
em silêncio: aperto as botas, com força puxo os atacadores, traçam-me os dedos e é sangue que cai sobre a carpete sinto o tornozelo estilhaçar ouço os pedaços de osso que se separam
do outro lado: alguém fala, alguém diz: distância
brilham os olhos da ratazana enquanto espera o momento certo, para beber, do sangue que é lágrima, suor e sal
gosto de ficar assim: imóvel, a respirar lentamente, parada sentir o frio que me toca a pele e penetra as omoplatas, as costas, as coxas
gosto de ficar assim: em silêncio, esquecida, gelada, de fundo, o ruído do eléctrico carrega rolos de lã que não são meus
gosto de ficar assim: enquanto lá longe os barcos sobem e descem e sobem para voltar a descer o rio cinzento e sou eu que mergulho nele, até aos bancos de areia
gosto de ficar assim: a afagar o ventre, deslindando paralelos de granito, tristes alguém passa descalço, pés sujos sobre o ferro oxidado e sou eu que te bebo de uma só vez, até ficar sem fôlego
vómito: mancha esquecida sobre o chão de tijoleira, conspurca o pensamento, molda as imagens com o seu raiar de sangue velho, satura o ar com o seu odor acre
vómito: fervem os espaços do tempo, quebram-se os espelhos em ruído, e os vermes rastejam numa tentativa de libertação, de alienação
o vómito continua lá, seco [deito a mão ao peito o coração ainda lá está]
se te contar um segredo, prometes que o esqueces? ainda ontem senti as costas arquearam-se quando por mim passavas: vento e tive frio, sede, fome e frio
se to disser bem baixinho, finges que o ouves? hoje mergulhei bem fundo, na banheira onde fomos: tango e vi-me perdida, esquecida, sozinha
arrasto os pés pelo quarto, pela sala, pela casa até à porta: o sangue que corre é gelo e silêncio
XXIII aquele tanque parecia uma piscina gigantesca. aquela água gélida, conseguia escaldar-me o corpo. naqueles dias, em que tudo tinha dimensões exageradas, eu era um ponto. pequenino, à deriva, ao sabor de todo aquele vento, que corria, que ainda corre mas agora lento, cansado. ouvia a lâmina romba, afastar violentamente a terra, o torto cabo de madeira a deslocar o ar, a terra gemia, sofria e ficava assim, remexida. agitavam-se as roupas na corda, ressequidas pelo vento e a terra continuava a sofrer. aquele tanque, aquela água, limpava-me os joelhos, desinfectava-me as feridas, alimentava a minha boca. E eu tenho saudades daquele quintal, esquecido.
já não há princesas neste pedaço de terra, nunca as houve, ostentam as orlas dos vestidos conspurcadas enquanto mostram falsos sorrisos de gengivas com escorbuto
respiram enxofre pálido, agitando leques de seda gastos, esquecidos, envelhecidos falam de montes, de prados húmidos pelas manhãs de nuvens que lhes tocam a face e do sol que lhes aquece o peito
já não há princesas de verdade neste quinhão, secou a tinta nos aparos e a historia não se pode continuar a escrever
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
trago-te sempre às costas e como eu gosto dos teus dedos. suspiro quando percorrem a minha coluna, brincam violentamente com a espinha nos lugares onde as metáforas fazem ninho.
as costas são o litoral do corpo. estendem ímanes sobre as mãos e todos os frutos silvestres por roer mesmo se nenhum de nós sabe o jogo onde se lançam dados viciados, mesmo se nenhum de nós sabe o fogo onde navegam os deuses alados.
e eu quero perder-me aí, onde os mapas se rasgam ao vento e a areia molda os nossos corpos [e quero que passes, quero que fiques]. e eu quero perder-me aí, na tempestade das pernas e na orla dos joelhos que ardem e quero fugir, quero ficar].
se mergulhar um dia sei que não vou ficar, aí [as horas lentas escorrem pelas paredes mancham os lençóis].
se cair um dia sei que não voltarás, aqui [o pássaro será de papel girando em órbitas de giz atadas às linhas da tua mão].
e esse espaço que o teu corpo ocupa jamais será meu.