«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Gumes


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

vou fingir que não te ouço
para não ter mais os pés frios.
quiseste tudo,
até as varandas da morte
por achares que uma só vida
[esta]
te não chegava.

deitei o corpo em telas brancas
onde pintavas estranhas paisagens,
esperei ao relento
que os teus olhos se abrissem,
rocei ervas daninhas
jurando que bebia as tuas mãos.

tive frio, fome, calor, sede
gritei ao silêncio
[não sou eu]

afiei as lâminas, desinfectei os punhais
rasguei as entranhas
e esperei que o sangue
[não o meu]
corresse

não guardei os lençóis,
não consegui adormecer a tua escova-de-dentes
e não estourei com os teus discos de vinil.
nem os livros que escondi
no teu ventre se fizeram biblioteca,
quanto mais os rabiscos
que ousei arrancar-me enquanto a carpete
já só exibia o pó dos teus pés.

parti os vidros, os espelhos, os cristais
bebi do suor da testa,
esqueci o sal da tua boca
e lavei os dentes até que os pulsos se partissem

depois?
desci as calças
e emprenhei a vergonha
[que nunca reparti contigo]:
comprei romagens,
assinei promessas
e assisti às missas
[mesmo não sendo domingo].
já só me falta beijar o demónio na boca
[nem ele suportaria o hálito do meu corpo].
Jorge Pimenta & Laura Alberto

Interpol-Hands Away

7 comentários:

  1. Laura, bem, vou apenas repetir aqui o que comentei lá no no Jorge:

    E como são afiados esses gumes!Imagens passionais que vão da desolação, passam pelo ressentimento e chegam à "adequação", à aceitação conflitante e repulsiva.

    Lembrou-me "Atrás da Porta" do Chico Buarque. No caso uma porta final. Expressionista!

    Perfeita parceria.

    Beijo.

    Ah, comentei também sobre o perfeito simbolismo dessa bela foto "silenciosa" de Pedro Polónio, sempre tão presente aqui no Im.Possibilidade.

    ResponderEliminar
  2. Ah, não fui eu só, o Marquinho também: lembrei do Chico Buarque, nossa, de cara. No mais, o que já disse no Jorge: composição para duas vozes, belíssima!
    Beijos,

    ResponderEliminar
  3. rapaz, quem empunhou o cutelo? versos des-afiadores: balada sangrenta em dueto


    beijo e abraço

    ResponderEliminar
  4. Muito bom, o poema... Rico em imagens, sensações... e gumes, que tantas vezes nos ferem...
    Parabéns aos dois!

    ResponderEliminar
  5. Laura,

    queria te dar meu silêncio após a leitura desse texto, algo impossível de ser feito nesse ambiente. Por isso te ofereço a mácula dessas mal ditas palavras. Sua poesia é incrível. Sinto não aparecer mais por aqui como gostaria...

    Beijo amigo,
    FT.

    ResponderEliminar
  6. Laura,
    brilhantes as vossas vozes!

    "já só me falta beijar o demónio na boca
    [nem ele suportaria o hálito do meu corpo]..."

    tomara saber esventrar assim os meus demónios por meio da escrita

    Beijo!

    ResponderEliminar
  7. e não é que o diabo não quer saber do hálito do corpo e, quando menos esperamos, beija-nos o corpo?
    quero que os dentes me caiam todos, um por um, na sua boca.
    beijo!

    ResponderEliminar