«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 22 de junho de 2018


chega-me ao ouvido um lamento comedido
uma doce canção de embalar perdida nos tempos idos
que hoje ninguém sabe cantar
[se é uma canção de embalar não poderá ser um lamento]
se nestas terras é o verão que chega, noutras é o inverno que começa
e a voz doce e trémula vais percorrendo o espaço
ouço-a, ora claramente ora imperceptível
[se não está ninguém contigo, nada podes ouvir]

a chuva parou, não tenho fome, nem sede sei ter
os primeiros raios de sol rasgam as nuvens pesadas
não quero ouvir os que de mim se acercam, apenas aquela canção de embalar



quando chegaram os camiões com provisões, para além do pão que em breve seria consumido seco, descarregamos também caixões, com etiquetas sem nome

agora, o meu amigo, do outro lado da trincheira, acena-me um adeus antes de disparar, devolvo-lhe a graça e cumpro o meu papel nesta crónica sem nome

o céu cor de chumbo cobre o solo lamacento, abraçando os mortos num último conforto possível

ouve-se o silêncio misturado com gemidos que findam em gritos, sinto que o meu coração ainda bate, o ar ainda entra pelos pulmões. não sou de rezar, mas benzo-me e choro simultaneamente.

do outro lado da trincheira os meus olhos não alcançam a mão do meu amigo.

[que nenhuma guerra seja feita em meu nome, alimentada com o meu trigo, eu feliz vivo aqui neste lado, alheia à trincheira, não protesto. não em meu nome]