«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 15 de março de 2011

“Passei por aqui para te deixar um beijinho, tá dado!”

Era uma vez uma cidade e os seus altos prédios graníticos, ladeando ruas íngremes que os seus habitantes, e não só, percorriam, a pé ou nos autocarros cor de laranja. Os miúdos de pés descalços andavam à boleia na traseira do autocarro e fugiam, diluíam-se na multidão, quando aparecia o pica.
Com os meus companheiros de viagem, cujo nome ficou esquecido no tempo, guardávamos os bilhetes de cartão rosa, amarelo ou laranja. Deixávamos a assinatura naqueles que tinham sido marcados pelo fiscal, trocávamos os cartões furados com estrelas ou triângulos entre nós, como se de cromos se tratasse.

Inspirados, provavelmente nos cartões de crédito, os velhos bilhetes de cartão colorido que povoavam a calçada e as ruas, foram substituídos por bilhetes recarregáveis, onde deixaram de habitar os velhos desenhos, os esquecidos poemas, os números de telefone fixo, feitos na mesa de café.

No velho autocarro número 7, agora substituído pelo 800, conheci o velho anarquista e os seus óculos de grosso vidro verde. Durante horas e horas de viagens, sentava-me cá atrás, na cozinha, e ouvia-o falar, até que alguém o mandava calar. E ele continuava, até sair.

Poucas vezes tirei os headphones apenas para falar com os camaradas de viagem nas longas horas que partilhámos, ou quando tinha finalmente coragem para meter conversa com o desconhecido do lugar da frente.

Aos domingos, bem no centro da cidade, onde se ergue a imponente câmara municipal debaixo de um céu sempre cinzento, despedia-me dos meus amigos de café, de escola, de paragem. Levava sempre no saco a tiracolo uma recordação, um maço de tabaco vazio, um guardanapo, uma rolha, uma carica, uma folha, um bilhete de cinema, muitos sarrabiscos de riscos e letras.

Ainda passeio pela cidade, agora a pé e quase sempre sozinha, com os meus headphones, à procura latas velhas de folha que povoam os armários lá de casa. Nas latas guardo os velhos bilhetes, cartões, folhas e mais folhas amareladas e mais folhas quase ilegíveis, cigarros assinados, esmagados por mais bilhetes e mais cartões. Repousam aí todos os meus amigos, os meus velhos amigos que perdi de vista, a que esqueci o nome e que, quando os visito, escrevem na minha memória, na minha parede. E os meus amigos cheiram a mofo, perderam a cor, deixaram o brilho, mas falam em silêncio sempre que os visito.

Resisti ao facebook, até ao dia em que me cruzei com o meu professor de Filosofia, afinal também ele tem perfil no facebook. Ah! Agora o meu perfil também está lá, com uma fotografia de um grafito numa velha parede.

Tenho cento e tal amigos, palavras que me tentam descrever, frases feitas, coladas de uma qualquer página da internet, convites para eventos, uau!

Os meus novos amigos gostam de tudo e eu gosto de alguma coisa.

Os meus novos amigos viajam por todo lado, são felizes, penso, não que ouça o seu riso ou veja o seu sorriso, apenas fotografias para o comprovar.

Os meus novos amigos, que tudo viram, será que ainda recordam a minha face?

1 comentário:

  1. Laura,
    que saudades desses tempos, sobretudo dos pequenos pormenores que tão bem retrataste nesta crónica.

    aqui fica mais do que um beijinho, um sorriso :-)!

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