«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Balada XXI

então, mandaram vir os médicos
mil médicos vieram e nada disseram
então, mandaram vir os físicos
mil físicos chegaram e rastos de nada encontraram
então, chegou a mensagem aos alquimistas
mil alquimistas morreram pelo caminho

as mulheres carpiam, soluçavam
no frio quarto adjacente ao seu
durante todo o tempo chovia
e o frio ganhava lugar no pele, na carne e por fim nos ossos

deixaram então de procurar
primeiro veio o silêncio da sua voz
os gemidos desapareceram debaixo do cantar da chuva
acenderam-se as lareiras
as mulheres cobriam o corpo com sujas mantas de lã
abafavam o rosto com negros véus

na solidão dos corredores:
o estalar da pele
o mirrar da carne
os ossos torcendo-se
rasgando músculo, deslaçando tendões
os lábios secos num sorriso moribundo
o sangue escorrendo lento pelo que resta do rosto 

então a chuva parou
e os sinos tocaram

chamaram os coveiros
chamaram os padres
chamaram os bruxos
chamaram as beatas
todos foram chamados, mais de mil

pesadas pás ferrugentas
jogaram-lhe mais de mil pazadas de terra
uma a uma ouviu-as cair
um baque surdo sob as tábuas
depois terra sobre terra sobre pedras sobre terra
de olhos bem abertos abraçou a escuridão
afagou o fato preto de fazenda: esperava

o meu homem
cessou no passado

 

11 comentários:

  1. mil médicos, mil físicos, mil alquimistas, não são capazes de curar o homem que mora ( e morre sempre) no passado.
    bj, da fã de L.A

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  2. Uma balada muito forte, não encontro agora palavras para lhe responder, mas digo-te: gostei de ler.

    Beijos, boa noite e bom resto de semana.

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  3. segui esta balada até ao último silêncio...

    beijo, Laura!

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  4. tu escreves cada vez melhor, extasiante



    beijo

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  5. Nossa Laura.

    Impactante como sempre. Adorei essa balada até o fim.

    Beijos.

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  6. Só faltou chamar o abafador, para demorar menos tempo...
    Uma escrita desconcertante.
    E excelente.
    Querida amiga, tem uma boa semana.
    Beijo.

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  7. Vertiginosa tua escrita, Laura! Impossível passsar incólume por ela.

    Beijos,

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  8. mil arrepios, mil arrepios, mil arrepios... depois respirei!

    Beijo, poeta de lira intensa!!

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