«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Bala número quatro

quando o tempo começou a apoderar-se do tempo que sobrava, na beira do prato, no fundo da rua, na sombra do carvalho; a enxada revolvia a terra; a pá carregava as pedras, meticulosamente ocultando os olhos daqueles que ainda arrastavam os pés.
quando o tempo cerrou os dentes entre lábios descolorados enfeitados por saliva seca, os ossos quebravam sob a suspeita do fogo e o nome queimava no dorso dos cavalos a abater.
quando o tempo foi o tempo, em círculos sobre si mesmo, a pá revolvia a terra, escavava valas, valas e mais valas, o feno abafava-se pelo pó seco, valas e mais valas, abrindo caminho sobre campos de papoilas, valas e mais valas, diante dos olhos de pássaros, tordos, andorinhas.
quando o tempo se cumpriu, aos meus pés, aos nossos pés, enterrava os amigos perante o olhar abafado de um gigante esquecido.
e o gigante caminha dia e noite, noite e dia com o seu saco de pano no braço

Fotografia de Laura Alberto

2 comentários:

  1. acabo de entrar nas balas pela número quatro. esta abateu-se sobre mim como se de um alvo me tratasse. quem não guarda gigantes de saco de pano debaixo da sola dos sapatos?
    abraço, laura!

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  2. «quando o tempo se cumpriu, aos meus pés, aos nossos pés, enterrava os amigos perante o olhar abafado de um gigante esquecido.»
    Grande texto, Laura! Daqueles de nos deixar com um nó na garganta...
    Beijo!

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