«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

domingo, 22 de abril de 2012

purgatorium

XXI
No silêncio da sala, na escuridão fria que me envolve, recordo as casas em que vivi e onde hoje sou fantasma na imensidão das noites.
As altas e baixas paredes. As cores vivas, desbotadas nas tintas e no papel de parede. O sótão proibido. As escadas traiçoeiras. Os quintais e os jardins. A casota. Os animais. Os cães. A roupa branca a corar na erva. Os tanques de águas sujas, de águas limpas. O barulho dos plásticos acariciados pelo vento forte. O último rodar dos dentes no metal da fechadura. Uma chave acobreada, arrumada numa caixa de lata.
[Como chovia quando de mim fugias e eu via a tua imagem diminuir entre as grades da janela. Nessa altura ainda sabia rezar.]
Agora, saem do seu lugar nos mapas: dos largos, da rua, do lugar. Ocupam um espaço livre na minha mente que eu visito quando me lembro. Na realidade visito-me a mim, criança sem medo, com a incerteza do amanhã.
Fotografia de Leonardo B., http://odiariodasausencias.blogspot.pt/

[ Deixo ficar o meu sincero agradecimento ao Leonardo B. dos blogues: 
que me deu a liberdade para usar as suas fotografias.
Conhecendo eu o trabalho do Leonardo,nomeadamente pelo blogue onde publica textos de sua autoria. Sempre achei que as minhas palavras não fossem merecedoras do seu trabalho. Contudo fui surpreendida, não só pela sua permissão, mas também pela sua amizade. Obrigada Leonardo.]


8 comentários:

  1. Compreendo-te, é bom ser criança sem medos e sem incertezas... Faz parte do "preço" do crescer...

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  2. visitar-se no melhor que há do passado...

    beijinho com carinho, Laurinha amiga poeta!

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  3. Tão Grato, Raquel

    por mutuamente nos permitirmos que essa incondicionalidade que se transporta na amizade nos incite a trocar as voltas às linhas das fronteiras, aos impossíveis, e nelas deixar fluir o que sabemos reter nas imagens, nas palavras... "deixando-as ir", libertas e sem condições: tão grato fico por recolher essa incondicionalidade e devolvendo-a em igual medida, na medida possível que contenha

    Um imenso abraço, Raquel

    Leonardo B.

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  4. A escuridão, as paredes, os quintais, os sótãos, as escadas, eis elementos comuns a todos nós. O que fazer com eles é um desafio individual, a não ser quando as paredes são comuns. E muito há a fazer, cada vez há mais paredes, cada vez há mais sombra. Paradoxalmente, talvez essa seja uma boa forma de nos começarmos a ver.

    Beijo :)

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  5. Esta poema desperta meus silêncios...
    leio e releio, e sinto os dedos finos e frios do tempo a acariciarem meu peito por dentro... o que é bom e dói.

    toda esta série purgatorium é de uma densidade palpável e instigante.

    perfeito o casamento com a imagem do Leonardo, amigo dos mais amados, alma das mais imensas que eu já percebi...
    fico feliz com esse encontro ;)

    beijinho, querida poeta!

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  6. Laurinha,
    lindo!
    Nós somos nossas próprias casas, todas elas, todas as malditas e benditas paredes que já nos aprisionaram ou protegeram.

    Beijinhos, te cuida!

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  7. são essas visitas a nós próprios, crianças, que nos aproximam do que não queremos perder, ainda que seja um fio de memória que nos faça acreditar...
    beijinho, querida Laura!

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