«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 2 de maio de 2019

desFiar nos anos

Nasci em Abril, o mês bipolar, isto porque desde que me lembro de ser eu sempre confundi as estações do ano neste mês, ora era o Sol que me presenteava, ora era a chuva que me presenteava, quando soprava as velas no bolo caseiro.
Ao longo destes anos que conto, quarenta e três sem qualquer pudor, o primeiro aniversário que me recordo foi o dos meus seis anos. A minha mãe fez questão que eu estreasse roupa, isto numa tentativa de disfarçar os três pontos que tinha na testa, resultado das minhas corridas malucas no estreito corredor de casa. Durante todo esse dia, o meu cabelo continuou a ser penteado vezes e vezes sem conta, para que os totós com laços de cor pérola, tivessem o ar de que tinham sido feitos por uma profissional.
Nesse ano recebi um relógio, pois já ia para a escola dos grandes depois das férias e um peluche do Topo Gigio, que me acompanhou durante anos e hoje está no quarto do meu filho, desde o dia em que fez seis anos.
Dos anos que se seguiram tenho poucas lembranças, os dezasseis anos com a festa na garagem interdita aos adultos, onde se deram os primeiros beijos com língua, os vinte e um anos com uma festa onde se juntaram os membros da família mais chegados.
Mas eu queria lembrar-me dos dezoito anos e não consigo, da mesma forma que não me lembro dos trinta anos. Lembro-me dos quarenta anos, onde fui trabalhar normalmente, não sou mais do que os outros e o resto do dia passei-o em casa.
Ao longo destes anos, perdi os meus tios, os meus avós, alguns amigos… Os meus pais continuam presentes no meu aniversário, como todos os que se ausentaram, cumprindo a vida.
Muitas vezes olho os meus pais, vejo-os como quando tinha dez anos, quero que corram, que brinquem, que cheguem a casa tarde depois do trabalho, sem paciência, que me levem a passear aos domingos, que se zanguem comigo, que me protejam sempre que tenho medo, porque agora eu já não posso ter medo.
Vejo o meu pai a andar de bicicleta aos domingos de manhã, enquanto a minha mãe se ocupa do assado, vejo a minha mãe a sorrir sem medo de doenças, vejo as férias grandes passadas em casa, os passeios de família e os almoços no restaurante de sempre.
No espelho o reflexo já não é da miúda adolescente de outrora, consigo aceitar as mudanças e aceito o que os anos me foram dando.
Olho os meus pais e recuso vê-los, quero-os com sangue novo, cheios de força e coragem para levantar a filha nos braços.

1 comentário:

  1. o que mais me custa também é ver a minha mãe envelhecer - já não tenho pai - e não poder ser já aquela que me pegava ao colo...

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