«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

notas para genesis dissemelhante


I
talvez ainda devore o pão
amassado no suor do meu rosto
temendo o pó que me assalta a sepultura

II
teimo em ordenar aos bichos
novas regras
organizando-os a meu bel-prazer

III
ainda assim resta a lembrança
do jardim, dos céus e da terra
da chuva impossível  que fez brotar as sementes

IV
longe estão já
os tempos do diluvio
quarenta dias e também quarenta noites

V
os que se salvaram
são os heróis prometidos
que carregam punhais escondidos

VI
geraram-se filhos, geraram-se filhas
e eis que fomos corrompidos
numa terra tingida de sangue

VII
duzentos e cinco anos
com as mesmas palavras
atravessadas na garganta

VIII
e toda a eternidade
com o estranhar
do dialeto do vizinho

IX
assim me marcas: homicídio não consumado
assim me desculpas: mas os outros não
assim me condenas: entregue a mim próprio

X
apenas quis perceber o teu lugar
apenas quis saber o que pensar
mas o teu rosto não assome no horizonte

Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

10 comentários:

  1. Tocante, assim como a fotografia!

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  2. mesmo que as chuvas lavassem os solos
    e o sangue brotasse em folhas de alecrim
    o homem ficaria
    condenado a si
    e à memória

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  3. Que vontade de comer essa poesia, pra ficar entranhada.
    Todas as verdades e o perder-se que cabe a cada olhar que a gente ganha.
    Lindo :D

    Laura, tou de espaço novo!
    http://ape-trechos.blogspot.com.br/

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  4. a fogueira dos rostos que se não divisam no horizonte, dez mandamentos de são-esquecer nesta terra queimada e profana para poder semear as raízes do que salva: rostos humanos que eternizam, desses que geram e são gerados, numa dialética sem dilúvios, punhais escondidos, ou heróis prometidos.

    leio-te dez vezes e de todas elas há cicatrizes que [ainda ]estalam [n]a pele.

    beijo, laura!

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  5. o jogo da dialética e os seus contrários: a tudo se serve para nenhum fim,



    beijo

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  6. Referes-te às invasões francesas?
    Embora tétrico, gostei imenso do poema.
    As tuas imagens poéticas são excelentes.
    Laura, tem um bom domingo e uma boa semana.
    Beijo.

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  7. Laurinha,querida
    Poesia que sempre me impacta, e hoje estou gripada e febril, então o soco parece mais intenso! Mas é um soco bom.
    Parabéns pelas tuas letras, sempre.

    Beijos com um saudadão de ti!

    PS.: Pretendo fazer uma postagem em março, ou abril e colocar como incipt um fragmento de poema teu, citando tua autoria, claro. Espero que não tenha problema para ti. Tudo bem? É que tua poesia é tão imensa que quero te citar lá na minha casa virtual.
    Mais beijos!

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  8. Longe os tempos do dilúvio, talvez, mas as marcas da tempestade perduram...

    Mais um poema excelente, parabéns!

    Beijos

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  9. A arte da vida tem que se lhe diga, mas tu teimas em entendê-la, libertando-te de viscosidades diversas. Ainda bem.

    Beijo :)

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  10. Querida Laura
    Mais um estrondo de poema. Vejo o ribombar do dilúvio que ainda não terminou.

    Beijos.

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