«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

purgatorium I

Afinal é esta a minha função, aguardo os que tombam pela estrada, entre a cidade e o fumo. Uns serão poupados, outros não. São sempre em maior número aqueles que não resistem. Vá-se perceber o motivo. Poucos foram os que levantei, afastando o nariz em sangue do alcatrão, que me devolveram um brilho no olhar. Apesar da dor, um sinal de que a vida ainda existia e resistia.
Grande parte deixou a derrota sair vitoriosa e entregaram-se.
Precioso o momento, em que sentiam toda a sujidade do asfalto, quando o seu sangue se misturava com a água da sarjeta, fazendo boiar as beatas e os pedacinhos minúsculos de papeis.
Dois parágrafos e duas vezes a palavra sangue. Acaso poderia ter escrito de uma outra forma? Provavelmente sim, mas não o quis. Para mim o homem é feito de sangue, de carne, de pele. Alma? Alma se existe, corre nas veias, só.
Quando se desiste, o sangue esvai-se até se perder numa qualquer calçada, se for numa cidade estrangeira, perfeito.
Já me habituei a ser ignorada. As cortinas que se correm, as portadas que se batem, as portas que se fecham. Do outro lado, sinto o seu respirar ofegante e o medo que se apodera das suas mentes.
Um dia ficarei sozinha nesta cidade. Descobrirei por fim a tal felicidade. Todas as casas, vazias. Todas as ruas, desertas. Em todos os espelhos, a minha invisível imagem.
[Fotografias de Laura Alberto]

4 comentários:

  1. Ei, Laura,
    de uma força que impressiona tua escrita em conjunto com as imagens
    o título, as placas, a escada em caracol, putz, quantas visões se misturam às crenças e não crenças, à realidade, ao ilusório
    sempre marcante

    beijos ♥

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  2. se não muitas vezes, quase sempre, sei que sozinha, percebo e sinto com autenticidade o núcleo de todas as coisas

    beijos!

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  3. Não sabia que trabalhavas no INEM...
    Beijo, querida amiga.


    PS; as letrinhas...

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  4. "Um dia ficarei sozinha nesta cidade. Descobrirei por fim a tal felicidade. Todas as casas, vazias. Todas as ruas, desertas. Em todos os espelhos, a minha invisível imagem."

    e não seria isso a alma?

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