«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sábado, 4 de junho de 2011

Manifesto CXXV

arquitectura de uma sombra

(para o José Luís Peixoto)

fundi-me na cal da parede, alva, intocável.
ali, colei as costas à parede e deixei que o meu corpo fosse sugado pela cal, a pele, a carne, os ossos, uma massa que se misturou na pedra.
os pés entraram dentro da terra, o pó são os meus pés, os meus pés são de pó.

em silêncio, adivinhei a sombra crescendo, desde o rés da parede, um ténue traço contornado de penumbra, depois um rectângulo, depois um quadrado de sombra perfeito e depois continuou a crescer, a fugir entre a terra e a calçada escondida, um gigante pedaço de sombra a diluir-se, grande, grande.

alguém limpa o quadrado e a sombra permanece
alguém perde um sapato e não há contos que possam ser escritos
alguém cai e o sangue escorre entre os espaços do paralelo, as ervas secas, ressequidas, o pó pesado
alguém chora lágrimas que desaparecem
alguém fica prisioneiro naquele quadrado

cai a noite, a sombra invade toda a rua, todas as casas, todos os quartos, todos os corpos, todos os espaços vazios, todos os espaços cheios

a noite deita-se em lençóis extremosamente asseados, ao lado da solidão
a noite é o quadrado de sombra que dorme ao nosso lado

Fotografia de António Nunes

3 comentários:

  1. Moça do além vagas... = )

    Minha sombra tem as formas das luzes que clareiam meu caminho... enxergo melhor quando leio almas como a tua!

    Não há como impedir a Luz de extravasar com palavras de incentivo iguais as tuas...

    Muito feliz com teus sorrisos deixados no Luz! Ficarei atenta a teus chamados...

    Beijinho luminoso de fim de semana!

    ResponderEliminar
  2. Saudações, Laura,
    linda a fotografia, lembra as ruas e casas de nossas cidades históricas aqui das Minas Gerais.

    Este Manifesto também me lembrou da roça, onde as moradas são caiadas com cal e para dar uma cor diferente ao branco acrescentam bosta de boi/vaca e daí surge o verde

    "a noite deita-se em lençóis extremosamente asseados, ao lado da solidão
    a noite é o quadrado de sombra que dorme ao nosso lado"

    tocante, inquietante, belo,

    beijo pra ti

    ResponderEliminar
  3. O teu texto é fabuloso.
    Parabéns pela tua criatividade e talento.
    Boa semana, beijos.

    PS: há cerca de 2 semanas que não te conseguia comentar, mas desta vez o enguiço quebrou-se...

    ResponderEliminar