«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

notas para cidade adormecida


I
ah, os desconhecidos
vultos que arrastam os pés
sobre a minha janela esquecida

II
maranha de pele suja, sangue e ossos
os animais deixam-se nas valetas
da cidade que finge fingir

III
tinge-se em definitivo o céu
de cinzento chumbo
luzes pálidas no contorno dos corpos

IV
o frio cola-se no corpo
aí resta, sereno
corroendo o que sobeja

V
tiro a melhor roupa
ensaio sorrisos frente ao espelho
calço sapatos engraxados

VI
enfrento o eterno inverno da cidade
contorno as putas, os chulos, os mendigos
evito o vómito, os escarros, a urina das ruas

VII
as flores de plástico não murcham
as pedras não se erguem
e a boca esconde-se de pétalas

VIII
fantasio que alguém chame o meu nome
no cruzamento de duas ruas
mas apenas posso beijar os meus dedos

IX
afinal
aquilo que realmente fiz
foi contornar o meu silêncio: sempre
Fotografia de Gérard Castello-Lopes

14 comentários:

  1. "VIII
    fantasio que alguém chame o meu nome
    no cruzamento de duas ruas
    mas apenas posso beijar os meus dedos

    IX
    afinal
    aquilo que realmente fiz
    foi contornar o meu silêncio: sempre"


    fantasiar e contornar silêncios!!

    beijo, poeta querida!!



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  2. o silêncio que nos tinge os gestos e a voz...

    beijo, querida Laura!

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  3. Contornar o próprio silêncio é mais que sabedoria, é arte!

    Bjos

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  4. Poema forte.
    E excelente. Gostei muito.
    Laura, desejo-te uma óptima semana.
    Beijo.

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  5. há muito que vivo no inverno, minha cidade está repleta de vultos congelados, eu ando contornando tudo, até a mim mesma.
    Todas as notas caminham por minhas veias
    bj, minha poeta de todos os dias

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  7. Laurinha,
    silêncio compartilhado entre o eu e nós mesmos.

    Beijos muitos e com saudades imensas!!!

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  8. Nossa Laura

    Digno de nota mil. Compactuo com o seu silêncio.
    Beijos.

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  9. contornar silêncios é uma arte dos poetas...

    tuas notas me adentram como o outono que já se mostra por aqui, entendo o aviso: é tempo de "invernecer", e nele os silêncios são mais profundos.

    beijosss

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