«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

domingo, 7 de agosto de 2011

Duas estações

Naquele tempo, os dias longos iam começar a minguar, a prova viva de que a Terra se aproximava cada vez mais de encontro ao Sol. Sabia isso, por que a minha sombra alongava-se pelo alcatrão quente e eu observava as minhas pernas ganharem um, dois, três, quatro metros, naquele pedaço preto que me prendia as passadas.
Os mesmos caminhos tinham ganho uma tonalidade diferente, como se de repente, sem contar, todas as cores brilhassem e o seu brilho fosse tal que era impossível não reparar num pequeno pedaço de papel, jogado ao acaso, por um miúdo travesso, da janela do carro do seu pai.
Todas as portas, que sempre conheci fechadas a sete ou oito chaves, estavam abertas, de par em par. Adivinhava os corredores, as salas, as cozinhas das casas que já não libertavam o seu odor a mofo.
Nessas mesmas portas escancaradas, dispunham-se pessoas, com os seus rostos sorridentes. Falavam com o vizinho da frente, do lado, o amigo, o familiar. Contavam as histórias do ano que tinha passado, longo e frio, enquanto bebiam os, para si escassos, minutos de tempo que sabiam ainda possuir. Seguravam os cães, que ladravam numa língua estrangeira, no seu colo. Enchiam o olhar com a neta, que pulava no quarto de rua, da qual a porta era apenas uma fronteira ganha.
Os campos encheram-se de erva verde, milho, flores silvestres. Juro mesmo que me cortei numa silva da qual nunca tinha dado conta. Tinha o ar perdido o seu odor saturado e pássaros de todas as espécies e mais uma riscavam o céu azul sem nuvens.
Maria Milagre acenou-me da sua janela. Gritou-me um olá, o primeiro de sempre e único. Consegui ver o seu rosto: não tinha mais quase cem anos, tinha agora talvez, no máximo, uns vinte e dois anos.
Nesse instante, o alcatrão que pisava transformou-se em paralelo gasto. E o paralelo gasto que pisaria uns quilómetros à frente, transformou-se em terra batida.
Compreendi que um dia mais à frente, começaria a nova estação: a ausência.

2 comentários:

  1. Laura,gostei tanto!
    beijos

    p.s. Laura, há um desafio no meu blogue e pensei em ti, se puderes, tinha muito gosto, mas compreendo se não for possivel :-)

    ResponderEliminar
  2. laurita,
    por que será que este cenário calcário com rostos difusos me parece mais interior do que exterior?
    há ausências que renovam as presenças.
    beijo rápido já a caminho de esposende :)

    ResponderEliminar