«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

domingo, 7 de agosto de 2011

Oráculo da memória

Cada vez mais tenho dificuldade em adormecer calmamente. Cada vez mais acordo de madrugada e conto as horas que se tornam vagarosamente longas, até ao Sol beijar o rosto de todos aqueles que se cruzam nas praças das aldeias e das cidades.
Cada vez menos passo as horas a dormir. Cada vez menos passo as horas acordada. Talvez durma quando tenho os olhos abertos e desperte precisamente quando cerro as pálpebras.
Acordo.
Passaram-se 100 minutos? Ou passaram-se 100 anos?
Ao certo não sei dizer, talvez o tempo não se conte de forma correcta. Talvez um ano seja apenas um segundo e cem anos caibam na palma da mão de uma criança.
Enquanto esfregava as pálpebras que me cobrem os olhos, recordei a minha infância, num esgar. Todo o passado cabia numa folha de papel, amarrotada dentro de uma garrafa de vidro à deriva no alto-mar.
Cá fora, as pessoas vestiam as mesmas roupas, calçavam os mesmos sapatos e exibiam os mesmos sorrisos, disfarçando o desdém que nutriam pela pessoa que se sentava à sua frente no autocarro, ou que, a seu lado, se preparava para atravessar a rua.
Olhei-me, de alto a baixo, de baixo a alto. Reconheci cada milímetro de pele, identifiquei cada marca nas mãos. Não conseguia observar a minha face, mas com a ponta dos dedos adivinhei, uma-a-uma as linhas, as rugas que se poderiam contar desde que sai do ventre da minha mãe, até àquela precisa oscilação do pêndulo do relógio. Dessem-me um pincel e tinta, que saberia colocar no meu rosto, todas as manchas, com mestria, ordenadamente até a tela estar completa.
Apesar de tudo, passava invisível entre as pessoas sozinhas, ou quando caminhavam em grupos impostos. Nenhuma me fitou uma só vez. Nenhuma me via. Seus rostos eram esboços: contornos de olhos, de lábios, de narizes, de orelhas. As suas figuras pareciam estátuas envolvidas em fumo.
De repente, o lusco-fusco que me envolvia tornou-se cada vez mais definido. Entre sombras, fumo e contornos esbatidos apareciam-me rostos familiares.
Caminhava na cidade, cada uma das pessoas apressadas era uma memória, da família, dos amigos, dos conhecidos, dos desconhecidos. Cada um deles, que estava encerrado em baús criteriosamente esquecidos, tornava-se agora mais claro, até o seu brilho ser impossível de suportar pelos meus olhos.
Quando me preparava para acenar a um deles, compreendi que tinha acabado de acordar e naquele segundo, minuto, hora, dia, sei lá, estava decididamente atrasada.

Sem comentários:

Enviar um comentário