«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Imperial revisitado (para a Maria Emilia)

Com 33 anos provavelmente não terei a circunspecção nem a lucidez necessárias para reflectir sobre a adolescência. Nem tão pouco saberei orientar terceiros a lograr os seus objectivos de vida. Contudo, penso ter a perspicuidade necessária para conseguir uma humilde reflexão de vida.
As dicotomias pautaram a minha adolescência, aliás ainda hoje o fazem. Muitas vezes fui apelidada de cosmopolita, por aqueles, poucos, que, entre pequenas conversas, acabam por me perceber.
Tive a sorte de na infância viver numa cidade, ainda que envolvida numa certa ruralidade. Minha tia chegou a criar galinhas, no mesmo quintal em que plantava algumas couves e legumes para consumo próprio. Para além disso, como o meu tio era caçador, desde cedo me habituei a ocupar as casotas dos cães como meu local preferido de eleição para uma boa tarde de brincadeira. O mundo rural estava a uma meia dúzia de passos da cidade. Muitos foram os passeios que dei pela cidade, sempre acompanhada quer pelo Pacheco, quer pela Laura, se bem que com a minha tia eram mais frequentes as idas primeiro a mercearia e ao mercado, e com a evolução dos tempos ao supermercado.
Estando a cidade do Porto logo ali, para onde os meus pais se deslocavam diariamente para trabalhar, foi com grande facilidade que frequentei as escolas no centro, apesar de viver nos arrabaldes, ainda pouco desenvolvidos, daquela grande cidade.
Ao fim de semana continuava a andar de bicicleta por terrenos baldios, onde agora se encontram urbanizações. Nas férias grandes jogava futebol na rua, que na altura não ligava a lugar nenhum a não ser aos nossos sonhos de super-herois.
Quando os resultados escolares satisfatórios, aliados à minha idade começaram a permitir alguma liberdade, passei a frequentar alguns cafés da baixa acompanhada dos meus amigos da cidade.
Um mundo novo abria-se diante dos meus olhos, todas as tardes apareciam pessoas novas, que com o tempo se tornavam conhecidas e posteriormente amigas. Na mesa do café não se corre atrás de aranhas, nem se pisam as canelas por causa de aventuras disparatadas. Na mesa de café fuma-se, lê-se, mas sobretudo discute-se.
Com os meus amigos citadinos as conversas eram as mais variadas. Sem qualquer ordem estabelecida, conseguíamos sempre organizarmos e expor a todos o que na altura era mais relevante. Cada um falava sobre o livro que lia, lembro-me que uma das minhas amigas gostava bastante de poesia, Fernando Pessoa, terá sido através dela que eu despertei para esse poeta, não para a poesia pois na altura o meu poeta de eleição era, ainda é entre muitos outros, o Eugénio de Andrade.
Alguns frequentadores da nossa mesa, ou melhor mesas, eram alunos de artes e começávamos também a falar de pintura, os mais afortunados colocavam a disposição de todos um ou outro livro de determinado artista, que por serem caros para as nossas mesadas, partilhávamos religiosamente.
Penso que a minha especialidade era a música, em parte por causa da vasta discografia disponível em casa, mas começava a interessar-me por diferentes pensadores, filósofos e era uma defensora acérrima de Sócrates e Platão. Teimava sempre em ler excertos nessas tardes longas de domingo. Sim, porque com algum esforço de argumentação, consegui convencer os meus pais para aos domingos à tarde ir de autocarro, numa viagem de cerca de uma hora até ao Porto, passando a tarde mesmo em frente à paragem onde embarcaria numa viagem de regresso, de mais uma hora.
Apareceram os primeiros filiados em partidos, e como é obvio a politica também era centro das nossas conversas, se bem que todos somos filhos da revolução, nunca sentimos as privações de um regime ditatorial, mas era como se estivéssemos parados no tempo, ou melhor retrocedido.
Naquele tempo travei conhecimento com algumas pessoas sem abrigo, levadas àquela situação devido ao álcool, ou droga. Relembro o Republica que hoje lamento não saber o seu nome verdadeiro, para que fique registado. O Republica media quase dois metros, pelo menos assim me parecia, e tinha uns lindos olhos azuis que sobressaíam numa cara queimada de sol e numa carapinha desgrenhada. Recordo o Anarquista, que foi a alcunha que um de nós lhe pôs, por não conseguir estar sentado mais de dois minutos sem se levantar e ver os pés da cadeira, e por ter conversas, sem sentido, ou melhor com pouco sentido, sobre a igualdade de oportunidades.
Cada um deles, cada tarde no café, todas as aulas de filosofia, fizeram-me crescer naquilo que sou hoje. Não tenho opressão em mim, não vivo mergulhada em fascismo com medo da censura. Vivo no nosso mundo, na nossa sociedade, no meio do Homem. Do homem que teima em não ver, em não sentir, cumprindo as regras, ambicionando mais uns zeros na sua conta bancária e um carro topo de gama. Tenho cartão de contribuinte e pago o meu I.R.S. sem conseguir saber como ir buscar mais dinheiro, para além de um simples P.P.R.. Estou totalmente diluída nesta sociedade que sempre recriminei nos meus tempos de café. Mas sou aquilo que sempre fui. Não posso mudar todo o mundo, como inocentemente pensávamos, mas posso mudar aqueles que estão ao meu lado.
Alguém me disse um dia: “…sempre que achares que tens razão, luta. Sempre que achares que é injusto di-lo, não tenhas medo.” Hoje, é o que eu faço. Sem medo. Porque acredito no Homem.

O café que me refiro é o Imperial, na Avenida dos Aliados. Agora é um restaurante MacDonald`s. Nunca mais lá entrei.

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