«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 7 de julho de 2022

o animal aproximou-se de repente, de músculos brilhantes devido ao suor que se acumulava pelo corpo, cabelo rapado e mãos desesperadas. deixou antever uma fileira de dentes, enquanto esboçava um sorriso. uma voz rouca e quente questionou, Eu venho do inferno. E tu de onde vens?

ela vinha do ar, não do céu da atmosfera azul que rodeia a Terra. não teve medo perante a figura e pergunta. com dureza na voz lá respondeu, Ando por aí. Não sei bem de onde venho.

aproximou o seu corpo do dela, dobrou-se ligeiramente sobre o seu pescoço. Inspirou e expirou violentamente. ela permaneceu imóvel, sem se desviar. Não me interessa de onde vens. O inferno não me assusta, nem os seres que por lá rodam. Na verdade, sei por onde andei e isso basta-me.

uma gota de suor escorreu do seu rosto para o seu peito, o ar tornou-se abafado, quase que irrespirável. no céu juntaram-se densas nuvens negras e o vento fez-se sentir quente. o animal continuou a falar, num discurso pouco coerente,

Não foi por correr nos caminhos das trevas que sou banido, deixei-me ceder perante as tentações e devorei os prazeres que me foram ofertados. não sou um ser de aspeto asqueroso, se bem que o meu íntimo às vezes o é. saí quando o meu corpo estava saciado, mas a minha alma não. é tarde. as estações não param. eu não parei. agora estou aqui, animal de nome, com a alma confusa e o corpo faminto.

ela permaneceu imóvel, ouvindo-o calmamente. se o seu coração disparou, o corpo soube disfarçar. se o corpo ganhou forma de boca, ela ordenou-lhe que a fechasse. se a sua pele ganhou as suas cores, ela obrigou que se tapasse. se as suas entranhas gritavam por ele, ela ordenou o seu silêncio.

Sem comentários:

Enviar um comentário