«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 23 de junho de 2014

estilhaço X

deixa que o tempo continue a cobrir
a memória do que fomos, a sombra do que somos
os olhos já não sabem o horizonte
quedaram-se noutras paragens
o vento que corre já não tem o sabor de outrora
ainda o sei sentir: é amargo, quando de ti esboça notícias

deixa que a terra seja bem pesada
sete, setenta palmos de terra
bem seca, bem molhada
não procures o instante, ele foi-se
como tu e eu já cá não estou

fomos o sonho que nunca soube existir
e hoje somos o pesadelo das noites frias

deixa morrer, deixa-nos morrer

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Balada XXIX

[balada para a mãe que tenho]

nunca me apercebi que
as flores brotassem por esta altura,
as flores do vaso que sempre disseste
que iria morrer cedo
nunca vi, talvez nunca as quisesse ver
da mesma forma que não vejo as rugas
que no teu rosto se acumulam
da mesma forma que minimizo
o cansaço de que falas
e obrigo que sejas
aquela menina nas fotografias de família
em aniversários, férias
a mãe de cabelo curto e ruivo

quando para ti olho
o que vejo é a mãe de uma menina
que brincava e sonhava com a vida que viria
não te quero ver assim
não te quero sentir assim
então engano-me a mim e a ti
já não vivemos nessas fotografias
já não existem os negativos
vejo me ao espelho, tal como sou
a envelhecer, a crescer
como nunca julguei que o faria
e vejo-te a ti como sempre

e para toda a eternidade que a vida me der

quinta-feira, 5 de junho de 2014

eatilhaço X

quis ser o chão do teu quarto
o lençol da tua cama
os retratos na tua parede

deitei-me debaixo dos teus pés
fiz da minha pele os restos do teu prato
prendi te os braços
agarrei-te os lábios
adocei-te a tua boca

esqueci-me que afinal tens asas
e a tua língua buscava outros lugares

fiz do meu corpo teu corpo
e agora relembro o que não tive

e sinto saudades do que não vivi