«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O senhor (a)prova?

O despertador não tocou, porque o meu relógio biológico, vá-se lá saber o porquê, leva-me a acordar sempre uns minutos antes da hora.
Entre o preparar das coisas, arranjar o petiz e arranjar-me, saio, como sempre a correr, para enfrentar mais uma hora e cinco de alcatrão e chegar à escola.
Enfrento as estradas nacionais, municipais, quelhas e no fim de tudo isto, do lado esquerdo, o edifício cor-de-rosa. Chego à escola. A primeira reunião.
Posso respirar, posso respirar porque estou viva, mas não posso respirar de alívio. Hoje, não sei quantos professores contratados, dizem na comunicação social mais de três mil, ou três mil e quinhentos, dirigem-se para fazer uma prova, grande parte deles, morreram a ver a linha da praia, por alguns dias são obrigados a fazer esta prova absurda.
Depois dos inquéritos de opinião, nalguns canais de rádio, grande parte da população é favorável a que seja feita esta prova a todos os professores, quer contratados, quer do quadro. A ser assim, até poderia estar de acordo, poderia, mas não estaria. Tal como não estou agora.
Termina a primeira reunião, depois de toda a papelada e burocracia, os colegas saem com um sorriso nos lábios. A mim é me impossível sequer mexer os lábios. Não sei quantos professores fizeram a prova, ou se esta virá a ter algum valor no final. Penso nos colegas que, após anos nas universidades e nas escolas, como contratados, muitas vezes olhados de lado e como professores de segunda, coisa que eu já senti na pele e às vezes ainda sinto, foram sujeitos a esta pressão.
Partilhei quatro anos com uma colega que suponho estará a fazer a prova. Nesses anos, partilhamos material, experiências, dinamizamos actividades experimentais para os alunos. Eu, com mais de doze anos de tempo de serviço nunca me senti de algum modo mais profissional do que a minha colega de grupo. E agora eu posso escapar ilesa e ela não, injustamente.
Que os professores devem todos ser avaliados? Sim, nós contratados somos avaliados todos os anos.
Que os professores devem fazer formação? Sim, nós fazemos formação nos centros de formação das escolas onde leccionamos.
Que os professores estão sentados nas suas cadeiras acomodados? Sim, nós enfrentamos estradas, longas viagens, alguns são obrigados a mudar de casa, deixar a família.
Que os professores só fazem greve e têm férias? Sim, neste momento estamos todos em casa, as aulas acabaram e nós estamos de férias. Não temos reuniões de avaliação, não temos formações, não temos serviço nas escolas até ao dia 6 de Janeiro.
Que todos os professores devem fazer a prova? É um país democrático, pensem por vocês.
Nós apenas estamos cansados de fazer tudo para conseguir um lugar no ensino, em agosto vivermos o pesadelo do desemprego e passar os meses que se seguem entre visitas obrigatórias à junta de freguesia, listas onde o nosso nome teima em não aparecer e entrevistas onde, algumas vezes, somos enxovalhados.
Venha a próxima reunião.

Marco de Canaveses, 18 de Dezembro de 2013


Esta crónica é escrita com o antigo acordo ortográfico. Prendam-me

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

estilhaços

I
destas mãos que trago
sujas de terra
já nem as cicatrizes se notam

desta face
que abriga distantes portos
nem uma ruga conta história

destes dias
que me sobejam
apenas a densa escuridão

dos outros dias
que já contei
memórias escritas e perdidas

disto que sou
disto que fui

já nem sei quem serei
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/