«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

purgatorium XLIII


Como foi que aqui vim parar? O abismo escuro apoderou-se da minha mente. Busco os momentos, os passos, os caminhos e apenas encontro mãos vazias, o nada que me enche as mãos.
Não sei em que acreditar. Em ti não acredito. Em mim, sou obrigada a acreditar.
Porra, mas como foi que aqui vim parar?
Não bebi, não bebo.
Não fumei, não fumo, já não fumo.
Não abusei, não abuso.
Não vivi, não vivo.
Uma réstia de esperança no tampo imundo de uma mesa. Dobrar de esquinas confusas, ruas sem nome, ruas sem ninguém.
Não sei como aqui vim parar, mas talvez saiba como daqui sair. Sem estar sentada em cima do meu rosto.
Decisão tardia, no instante certo.
Esta foi a história possível, a que se escondia na tinta que hoje seca, perene. Talvez volte, talvez de mim se fale. Ou talvez ninguém me reconheça mais. Não importa, não me interessa: reconheço-me do outro lado de mim, do outro lado do espelho.
Todas as vidas encerram mortes anunciadas, uma morte apenas. E os nascimentos escondem mortes sibiladas.

Fotografia Laura Alberto

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

desAlinhado XXXV

30ºC
início a descida pela avenida
envolta em nevoeiro
o frio afugentou as pessoas
ou talvez a hora não ajude
torna-se difícil respirar este ar gélido
que invade os pulmões, que corta as costelas

ninguém cruza o meu caminho
ninguém se avista ao perto, ao longe
onde está a cidade
dorme escondida com uma cruz no peito
na noite anterior lavou o sangue das mãos

[sou vulto cinzento de rosto tapado
figura disforme que sublima na memória
há muito tempo que me esqueci]

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

notas para cidade adormecida


I
ah, os desconhecidos
vultos que arrastam os pés
sobre a minha janela esquecida

II
maranha de pele suja, sangue e ossos
os animais deixam-se nas valetas
da cidade que finge fingir

III
tinge-se em definitivo o céu
de cinzento chumbo
luzes pálidas no contorno dos corpos

IV
o frio cola-se no corpo
aí resta, sereno
corroendo o que sobeja

V
tiro a melhor roupa
ensaio sorrisos frente ao espelho
calço sapatos engraxados

VI
enfrento o eterno inverno da cidade
contorno as putas, os chulos, os mendigos
evito o vómito, os escarros, a urina das ruas

VII
as flores de plástico não murcham
as pedras não se erguem
e a boca esconde-se de pétalas

VIII
fantasio que alguém chame o meu nome
no cruzamento de duas ruas
mas apenas posso beijar os meus dedos

IX
afinal
aquilo que realmente fiz
foi contornar o meu silêncio: sempre
Fotografia de Gérard Castello-Lopes